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Arte

Gisberta: o apagamento trans que se repete

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Por Josué Gomes, com colaboração de Helvio Caldeira, para Jornalistas Livres

 

Já é possível perceber que a figura do “desconstruído” das pautas identitárias foi absorvida por um mercado que vende através da sensibilização, onde a visibilidade se disfarça de representatividade e uma onda de silenciamento arrasta para trás das telas e palcos a oportunidade de minorias poderem falar por si.

Em 27 de dezembro de 2017, foi anunciado que o Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) de Belo Horizonte receberia a peça de teatro Gisberta, espetáculo que conta a história de vida da artista transexual Gisberta Salce, símbolo LGBT que viveu nas fronteiras entre o Brasil, França e Portugal e foi assassinada de forma brutal em 2006. Se, por um lado, a peça tem sido elogiada desde sua estreia em outros estados, o mesmo não pode ser dito sobre a vinda do evento para BH: em tempos onde a sombra do conservadorismo se espalha pelo país, era de esperar que uma grande quantidade de frequentadores do CCBB reagisse de forma intolerante à sua divulgação, semeando palavras de ódio sobre as peças publicitárias e o suposto “incentivo” a uma agenda trans.

 

Porém, para além das reações de intolerância à diversidade, os posts divulgados pelo CCBB serviram para reacender outro debate: afinal, por que uma peça que retrata a história de uma mulher trans está sendo representada por um homem cis? Nessa linha, diversos comentários evidenciaram o incômodo da população, em sua maioria LGBTQ, com a controvérsia. “Quem tem consciência, não vai assistir e vai pedir também que uma pessoa trans faça o papel da Gisberta, ganhando tão bem quanto este ator está ganhando!”. Outra internauta também mencionou o tema em seu comentário. “Uma mulher transexual que viveu em prol de uma luta, sua morte se torna marco para as discussões de acessibilidade da população trans em todos, TODOS os meios sociais, inclusive da arte e quem vai dar vida a ela nos palcos e um artista homem cisgênero! Enquanto a classe artística não reconhecer seu lugar de fala não podemos nos calar para esses silenciamentos”. 

Mais uma vez a discussão sobre o local de fala foi retomada. Afinal, um espetáculo em memória de uma mulher trans não deveria em primeiro lugar se preocupar em representar e agradar a população T?

 

Gisberta: um nome, um símbolo

Foto: .Blastingnews

Assim como a da maioria das pessoas trans, a vida de Gisberta Salce não foi simples. Nascida no bairro de Casa Verde, em São Paulo, Gis – como era chamada pelos mais próximos – passou pelos desafios de ser uma criança que não correspondia às expectativas da sociedade por seu sexo biológico. Dócil, apaixonada por divas da música e já com tendências para o mundo artístico, logo chamou a atenção dos familiares: era diferente. Na época ainda Gisberto, foi amparada pelas mulheres da família, principalmente a mãe e as irmãs, que a auxiliaram no processo de entender quem realmente era. Os pais e os irmãos, por sua vez, assumiram a postura oposta (o que é comum nestes casos): duros e intolerantes, exigiam a todo custo que a garota se comportasse como um “homem de verdade”. O terreno da masculinidade, porém, não era para ela.

 

Foi somente após a morte do pai que Gisberto se tornou Gisberta de fato. Aos quatorze anos, iniciou a vida em casas noturnas e não parou mais. Nos dezoito, já era um nome conhecido na maioria das boates de São Paulo. Assim como suas apresentações precoces, a transfobia lhe foi apresentada cedo: em uma onda de violência contra pessoas LGBT da região, seus dois melhores amigos foram mortos. Após o episódio, Gis se viu destinada a deixar o país como forma de segurança, o que a levou para os solos franceses.

E não parou por aí: da França, foi para Portugal, e se fez presente na cena LGBTQ local. Apresentou-se em boates, passou por dificuldades, mas não cogitou voltar para o Brasil. Por fim, cedeu à prostituição. A descoberta do HIV veio depois, assim como o desemprego e a falta de dinheiro para pagar as contas. Acabou encontrando abrigo em um edifício abandonado de Porto e por ali ficou. O lugar improvisado e deteriorado, logo depois, deu lugar ao que seria a cena de seu assassinato: por três dias, Gisberta foi agredida, abusada sexualmente com o uso de objetos e queimada por cigarros. Inconsciente, foi embalada em um pano e arremessada ao fosso do prédio pelos agressores, todos menores de idade. O mais velho dos assassinos tinha dezesseis anos.

 

O crime foi tratado como uma ‘brincadeira de mau gosto’ pelas autoridades e o único penalizado foi condenado a oito meses de prisão. Até mesmo após a sua morte Gisberta foi tratada pela imprensa portuguesa como Gisberto, o travesti.

 

Silenciamento trans na arte (e por que precisamos falar sobre isso)

Entenda mais sobre transgêneros, travestis e transexuais! Foto: Josué Gomes | Jornalistas Livres

Mais do que nunca, parece óbvio que contar as dores de uma mulher que passou por tanto seria mais interessante se feito por uma pessoa também trans. Assim, além do artista poder ocupar seu local de fala, este também ocuparia o lugar que muitos jamais conseguem chegar: as luzes de um holofote. Pensando nisso, o movimento trans de BH organizou uma manifestação no dia da estreia do espetáculo na porta do CCBB. O objetivo do evento, boicotado diversas vezes no Facebook, era não questionar apenas se um ator cis poderia interpretar um trans (visto que esse também é o papel da arte), mas chamar atenção para a dificuldade que pessoas trans enfrentam para conseguir interpretar papéis nos produtos televisivos, teatrais e cinematográficos.

 

Justamente no mês da Visibilidade Trans, uma peça sobre trans sem uma pessoa trans na produção sequer parece ainda mais estranho, para não dizer problemático. “Por que temos que aceitar que atores e atrizes cis interpretem personagens trans? Estamos na moda, na crista da onda. Quer ser moderno no teatro, cinema ou televisão? Coloque entre os personagens uma pessoa trans. É tão moderno um grupo dar visibilidade ao tema, não? Que autora maravilhosa falando sobre nós, você viu? Que filme contemporâneo com essa história, hein? Mas quando vão escolher alguém para representar um personagem trans quem é contratado? Um ator ou atriz cis…”  destacaram, em nota, os constituintes do movimento. “Por que não tem atores cis interpretando as heroínas das histórias? Ou atrizes cis fazendo papel de galã? Não faz sentido, né? Então por que, quando se trata de personagens trans, convidam pessoas cis para os papéis? É liberdade artística? E sobre o ator não ter sexo? Nós artistas trans gostaríamos de conhecer de perto essa tal liberdade artística.”

Foto: Josué Gomes | Jornalistas Livres

Durante o ato na porta do CCBB, que reuniu cerca de 30 pessoas, mensagens de resistência foram entoadas pelos artistas trans de Belo Horizonte. Duda Salabert, presidente da ONG TransVest, fez um discurso contextual e pontuou, ainda, a falta de empregabilidade para os T. “Nós, pessoas travestis e trans, queremos protagonizar nossa própria história e questionar algumas estruturas que nos excluem. Quantas pessoas travestis e trans trabalham no CCBB? E na peça? Nenhuma. Se a peça estivesse realmente preocupada com a causa, que nos contratassem”. Também para o ator Rodrigo Carizu, o problema nunca foi a história, mas todo o sistema excludente. “Já é difícil para as pessoas chegarem no meio da arte, para os trans e travestis chegarem ao teatro. Nossa história precisa ser contada sim, mas precisa ser contada por nós. O problema não é um ator cis interpretar uma trans: o problema é que isso [a possibilidade] só funciona para quem é cis. O trans não tem espaço nem para fazer o trans, imagina só fazer o outro”, destacou.

 

Entre os presentes na manifestação, o diretor de cinema Ricardo Targino, autor de Quase Samba – filme com a temática trans – fez questão de explicar que o ato não era, de forma alguma, uma censura à liberdade artística. “Acho que em todas as falas dos envolvidos, isso está bem claro. Ser a favor da liberdade artística e, ao mesmo tempo, reivindicar o lugar do trans na arte não são questões excludentes. Só que a arte hoje só existe para os cis e as pessoas que conservam seus privilégios: as pessoas brancas e bem nascidas. Isso aqui para mim é significativo”, concluiu.

Foto: Josué Gomes | Jornalistas Livres

No fim da peça, os manifestantes também fizeram um ato de protesto em silêncio. Nus e levantando bandeiras nas cores azul, rosa e branco, os sujeitos permaneceram de pé, chamando atenção da plateia. “Prazer, eu sou uma verdadeira Gisberta”, eles se apresentaram ao público.

 

“Para os que são como eu, existir é sinônimo de resistência”

Foto: Divulgação

É com esses dizeres que Luis Lobianco, ator que apresenta o monólogo, destaca as dificuldades e desafios de ser um indivíduo trans num mundo heteronormativo. Com texto de Rafael Souza-Ribeiro, direção de Renato Carrera e produção de Cláudia Marques, o profissional coloca em cena diversos personagens que tiveram contato com Gisberta ao longo de sua vida. Das idas ao psicólogo na infância até os terríveis últimos dias de vida, o espectador acompanha uma tia, a irmã, o médico, um colega de trabalho, um admirador da moça e o juiz responsável pelo caso. Entre jogos de luz e efeitos musicais, Lobianco até interage com a plateia fora do personagem. A história de dor, por vezes, dá brecha para momentos engraçados entre o ator e os que o assistem. “Quem aí já foi criança viada? Anda, gente, levanta a mão!”.

Foto: Josué Gomes | Jornalistas Livres

Não reconhecer que o espetáculo está lindo seria injusto. No decorrer das cenas pude sentir a tristeza de ver uma vida ser tirada de forma tão cruel, a esperança de ouvir que Gisberta também foi feliz, dar risadas nos momentos de descontração e ouvir clássicos da MPB. A história contada de forma tão detalhista se empenha para que o publico entenda a realidade da vida das pessoas trans, as suas alegrias, orgulhos, dores e dificuldades. Para quem está inserido ou não no universo da questão LBGTQ a peça oferece uma viagem que faz compreender que dentro de números e estatísticas existem sonhos, vidas, humanidade e infelizmente sangue.

Mas você pode estar pensando: então ele não interpreta a Gisberta? “Menos mal”. Será? Embora o ator e toda a produção da peça diga que a primeira escolha feita foi a de não interpretá-la, durante muitos momentos entre cenas podemos perceber que naquele palco há uma presença simbólica de Gisberta que fala e que canta mesmo que essa não seja a intenção. Em especial a cena final, onde há uma performance musical, entra-se em um conflito de pensamentos: é ela? Impossível não imaginar o quanto seria mais fidedigno, justo, lógico e ético se naquele momento de intensa fruição soubéssemos que no trabalho diante de nossos olhos há as mãos de pessoas que são como Gisberta. 

 

Houve diálogo com pessoas que passavam pela Praça da Liberdade Foto: Josué Gomes | Jornalistas Livres

De forma geral, a peça pode até arrancar lágrimas, mas é no momento em que as luzes se acendem que tudo fica claro: a plateia branca e padronizada parece ter saído de uma novela da rede Globo. Antes de comprarmos o ingresso é necessário pensar: como o espetáculo, colocado em um ambiente de luxo onde trans, negros e periféricos não se sentem acolhidos pode ajudar na luta contra a transfobia? Quantas pessoas serão tiradas da prostituição e da situação de rua devido a essa peça? Como esse trabalho valoriza o talento de pessoas trans? Após essa reflexão a decisão de assistir e financiar essa produção ultrapassa o campo do entretenimento e adentra a política.  O comentário de um observador, sentado logo atrás deste que vos fala com o namorado, pareceu a última parte do quebra-cabeça. “Essa tribo, né, ela é meio exótica”.

 

Eles não aprenderam nada, Gis. Eles ainda não aprenderam.

 

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2 Comments

2 Comments

  1. Lucas

    08/01/18 at 22:49

    Olá, tinha feito aqui uma pergunta, mas acho que não ficou registrada. Faço novamente: Há jornalistas trans na equipe do site? Obrigado!

    • Laura Capriglione

      12/01/18 at 18:18

      Sim, Lucas… Temos alguns jornalistas livres trans e queremos muito reforçar as narrativas desse grupo ainda tão invisibilizado. Um abraço!

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Djonga é o primeiro rapper brasileiro indicado a disputar o BET Hip Hop

Músico vai concorrer, nos Estados Unidos, ao troféu de melhor artista internacional

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O músico mineiro Djonga foi indicado para concorrer ao troféu de melhor artista internacional no BET Hip Hop Awards, especializado em hap e hip hop. O rapper, compositor e historiador é o primeiro brasileiro a ser reconhecido pelo evento. O BET Hip Hop Awards é uma premiação norte-americana anual realizada pela Black Entertainment Television e voltada para rappers, produtores e diretores de videoclipes de hip hop e Rap. 

Ele vai disputar o prêmio com Kaaris (França), Khaligraph Jones (Quênia), Meryl (França), MS Banks (Reino Unido), Nasty C (África Do Sul) e Stormzy (Reino Unido). O BET Hip Hop Awards revelará os vencedores do ano no dia 27 de outubro.

Neste ano, Djonga lançou seu quarto álbum de estúdio, Histórias da Minha Área, onde conta um pouco sobre o bairro Santa Efigênia, onde mora em Belo Horizonte. O trabalho conta com participações de MC Don JuanBia NogueiraCristal, NGC Borges e FBC

Depois de surgir como grande astro na cena do hip hop nacional e colocar seu nome entre os principais personagens da cena do rap no país, Gustavo Pereira Marques (seu nome de batismo) acaba de fazer história aos 26 anos tornando-se o primeiro brasileiro a ser indicado ao prestigiado BET Hip Hop Awards, premiação musical focada na cultura negra. 

A indicação de Djonga aconteceu nesta terça-feira, 29, e ele concorre na categoria Melhor Artista Internacional. “Cravando o nome na pedra, sem emocionar!”, escreveu Djonga no Twitter ao dar a notícia. Na postagem, ele publicou um vídeo em que fala à MTV sobre a importância do rap no período da pandemia: “O rap tem que continuar fazendo o papel de sempre. O primeiro papel, e mais importante, é o papel de arte, de música, de levar alegria e reflexão para as pessoas. Em segundo lugar, continuar denunciado o que a gente sempre denunciou. Dedo na ferida, dedo na cara de quem tá errado”.

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A polêmica das estátuas no 7 de Setembro

A estátua equestre de Pedro I foi erguida na mesma praça em que Tiradentes foi executado no Rio de Janeiro, fato que seria desagravado apenas com o advento da República, que mudou seu nome para homenagear o inconfidente

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Estátua equestre de Theodore Roosevelt, a ser removida da frente do museu de História Natural de Nova York

Não é possível comemorar a Independência do Brasil hoje sem pensarmos sobre um dos temas mais debatidos em nossa relação com a história: a polêmica das estátuas. Em 22 de junho de 2020, por exemplo, o Museu de História Natural de Nova York anunciou a retirada de uma estátua equestre de Theodore Roosevelt localizada em frente ao museu desde 1940. Vejam na fotografia acima que razões não faltaram, pelo modo subalterno com que negros e índios são representados.

Por Mayra Marques, Mateus Pereira e Valdei Araujo (UFOP)*

O diretor do Museu afirma que a recusa é ao monumento, e não à figura de Roosevelt, que continuará sendo homenageado pela instituição por seu pioneirismo na luta pela conservação do meio ambiente. Segundo a reportagem, um dos descendentes do ex-presidente, declarou:

“O mundo não precisa de estátuas, relíquias de uma outra era, que não refletem os valores das pessoas que pretendem honrar, ou os valores de igualdade e justiça”. 

Em 2017 uma comissão estabelecida pela cidade de Nova York para reavaliar a pertinência de monumentos públicos havia decidido, em votação dividida, pela manutenção da estátua, apesar dos protestos de que já vinha sendo alvo e das promessas do museu em  “atualizar” (update) suas exibições. Em 2019 o museu tomou a iniciativa de promover um debate com a comunidade e inserir elementos que pudessem contextualizar e criticar os aspectos racistas e colonialistas do monumento, bem como reavaliar as posições do próprio Roosevelt.

A iniciativa ficou registrada no projeto “Addressing the Statue”, que pode ser ainda visitado no site da instituição. O projeto é um excelente exemplo de como o interesse renovado pelos monumentos e personagens históricos, provocados por polêmicas, podem ser respondido pela produção de conhecimento e diálogo com a comunidade em busca de atualização. Algo que poderia não acontecer se a estátua tivesse que ser removida violentamente. 

Com a onda de protestos que se seguem após o assassinato de George Floyd, os administradores do museu decidem finalmente retirar a estátua, em um desfecho que exemplifica como a atualização da monumentalização pública pode ocorrer em um ambiente democrático ampliando o seu sentido histórico, no lugar de apagá-lo, como acusam ligeiramente alguns críticos.    

https://lh5.googleusercontent.com/n4LEpIBYOzlLoCw3PECR7ta5UA9eQBqAA_3fdtQ41N5aY_ZFczU7wGjWgfZyEyOUkAaWW94uTk_lg9y_TdNMqjBqWdlD7ClFO1btfIvisdXENLyD2Iv0LiIg4VNYeA

Estátua equestre de Theodore Roosevelt, a ser removida da frente do museu de História Natural de Nova York

Esse fato, que tem como centralidade a figura e a estátua de Roosevelt, nos remete à  também polêmica estátua equestre de Pedro I, que se encontra na atual praça Tiradentes, na cidade do Rio de Janeiro. Ela carrega a mesma estrutura evolucionista e hierarquizante criticadas na estátua de Roosevelt.

Estátua como “mentira de bronze”

O monumento comemorativo da Independência foi erguido em 1862, e desde seu nascimento provocou fortes protestos, ainda que por razões diferentes. Mesmo que sua instituição tivesse por objetivo a consagrar Pedro I como o herói que libertou a nação, dando-lhe uma carta constitucional,  ela não deixa de materializar as concepções evolucionistas e racistas das elites brasileiras. Ao mesmo tempo, esse episódio nos mostra a complexidade da instituição de monumentos: desde o início a estátua foi vista por grupos liberais como uma impostura contra a memória de outros movimentos e heróis da independência, o liberal mineiro Teófilo Ottoni lança no mesmo dia da inauguração um panfleto crítico em que chama a estátua de “a mentira de bronze”, ao mesmo tempo em que recuperava a figura de Tiradentes como o verdadeiro herói da Independência.

A estátua equestre de Pedro I foi erguida na mesma praça em que Tiradentes foi executado no Rio de Janeiro, fato que seria desagravado apenas com o advento da República. Nesse caso, no lugar de remover a estátua do ex-imperador, bastou às elites republicanas ressignificar o contexto da praça em um gesto ao mesmo tempo provocativo e de conciliação. Deixava de ser praça da constituição para ser Praça Tiradentes. Ironia ou conciliação?  

Até hoje a posição subalterna da população indígena no monumento permanece invisibilizada, e sua atualização poderia passar, também, pela promoção de debates e, mesmo, pela remodelagem documentada do monumento. A estátua equestre, com o Imperador segurando a constituição, poderia, por exemplo, descer de seu pedestal evolucionista-racista e, em paralelo, outras formas de comemorar/celebrar os povos indígenas e denunciar sua opressão poderiam ser produzidas.      

Estátua equestre de D. Pedro I na praça Tiradentes, Rio de Janeiro

Estátua equestre de D. Pedro I na praça Tiradentes, Rio de Janeiro

Retirar as referências de um passado sensível não nos deixaria com uma falta de “locais de memória” nas ruas? A solução, neste caso, seria a sua substituição e/ou convivência com novos monumentos aos grupos historicamente oprimidos e sub-representados, como mulheres, indígenas e negros. Mas é preciso pensar em que tipo de monumentos seriam esses.

Estátuas como selfies de celebrities

Segundo o crítico de arte britânico Jonathan Jones, derrubar estátuas é uma performance admirável, mas a ideia de substituir as estátuas derrubadas por outras de pessoas mais “merecedoras” da homenagem seria fruto de um pensamento artístico conservador. A estátua, para Jones, já não seria uma forma artística adequada para homenagens desde que Marcel Duchamp enviou um urinol para uma exposição de arte em Nova York. O mais adequado seria, então, dar espaço para que a arte contemporânea pudesse representar as vidas roubadas pela escravidão, pois a estátua reduz a história a apenas um rosto, um personagem, podendo apenas reforçar uma concepção simplista e conservadora de como a história acontece.

As estátuas, de modo parecido com as selfies, fazem parte de uma cultura de celebridades que não faz sentido para retratar horrores como a escravidão ou o Holocausto. De algum modo, a representação monumental dos personagens históricos parece evocar a concepção de um indivíduo linear, solar, sem falhas.  

Considerando as cidades ou os países como grandes museus, precisamos pensar sobre as decisões em relação às seleções feitas pela curadoria que, em última instância, vai decidir sobre a relevância desse ou daquele objeto presente nestes espaços. Ou seja, estamos diante de figuras fundamentais nessas escolhas: os/as curadoras, que, no caso das cidades, geralmente são as autoridades políticas, mas que também podem ser pessoas comuns que reivindicam a inserção ou a retirada de um monumento.

Sobre essa questão o historiador Fábio Faversani nos lembra que, na Roma Clássica, a noção de cidadão era excludente, o que significa que as representações eram, apenas, de pessoas consideradas cidadãos importantes. Assim, a questão sobre quem deve ser homenageado com uma estátua ou com um monumento está diretamente relacionada ao fato de se ter reconhecidamente o direito a ocupar os espaços da cidade, isto é: quem, por algum critério de legitimidade, é reconhecido como cidadão. A cidadania, na nossa democracia contemporânea, deve ser abrangente, não porque sejamos todos iguais, mas justamente por sermos diferentes – e, por isso, é preciso reconhecer e escrever as várias histórias que constituem a nossa sociedade. A derrubada violenta pode ser reconhecida como a forma radical de determinados grupos sociais chamarem a atenção dos políticos e da sociedade em geral. A derrubada violenta faz sentido quando não há oportunidade de diálogo. É preciso reconhecer que as tradições não são boas por si mesmas, pelo simples fato de serem uma herança de nossos antepassados; elas são mutáveis e só permanecem vivas se formas capazes de atualizar nossa história (nosso passado-presente-futuro) a partir delas de modo plástico e criativo.

Alguns críticos consideram a derrubada e/ou atualização de estátuas um tipo de anacronismo, no sentido de que reduziriam a história ao universo de valores do presente. Não estaríamos tirando estes personagens de seus contextos históricos? Diante de tais questões devemos nos lembrar que o racismo não é algo do passado; ele ainda está presente e tem consequências significativas nas nossas vidas. Muitos dos personagens que são hoje alvo de crítica cometeram ações que mesmo em suas épocas poderiam ser consideradas infames, mas acabaram tendo suas memórias protegidas por suas ligações com os poderosos da vez.

Estátuas como forma de criar mitos

Apenas tornando a história menos eurocêntrica e heteronormativa é possível evitar que as extremas-direitas usem referências do passado como forma de recrutamento e propaganda, como se o passado fosse homogêneo e sem disputas. E isto não significa negar a história ou falseá-la; a pluralidade é uma realidade, basta trazer à luz histórias esquecidas ou suprimidas das várias nações e povos que formam a nossa sociedade.

A divisão entre aqueles que defendem o patrimônio a qualquer custo e os que gritam “deixa quebrar” só ocorre porque não há políticas públicas efetivas de monumentalização voltadas para a reparação histórica, como aponta, também, Fernanda Castro. Vale notar que em países como o Brasil há uma grande dispersão de autoridades com mandato que permite gestos de celebração e monumentalização. A emergência do bolsonarismo, por exemplo, acontece em “paralelo” a uma epidemia de medalhas e outras celebrações de aliados cujas biografias se confundem com uma vasta lista de crimes.  

Assim, os protestos nos quais estátuas são derrubadas ou depredadas podem ser uma forma de manifestação que surge de situações extremas de sofrimento e revolta, e não podemos condenar tais atitudes de modo linear. No entanto, não devemos normalizar o uso da violência, ela é sintoma de que os caminhos democráticos para solução de conflitos não estão funcionando de que problemas graves não encontram políticas públicas adequadas.

Destruir estátuas por si só não tornará as sociedades menos racistas, mas deve servir de estímulo para a identificação do que deve ser feito, como o combate à violência policial contra negros, por exemplo, bem como a implementação de políticas públicas de memória e antirracistas. Além de políticas públicas cujo objetivo seja a redução da desigualdade socioeconômica dos negros em relação aos brancos. Cabe enfatizar que a normalização da violência é amplamente utilizada pelos grupos de direita, como vimos no caso da destruição da placa da Rua Marielle Franco, que se tornou um símbolo de extremistas de direita na campanha eleitoral de 2018. Portanto, é preciso entender o contexto e o sentido da destruição de monumentos antes de fazer qualquer juízo definitivo.

O historiador Marcelo Abreu nos chama a atenção para o fato de que a desigualdade social presente no mundo precede as estátuas e os patrimônios que buscam moldar as identidades nacionais. Por isso, embora uma estátua possa representar uma identidade local ou nacional, a revolta contra o racismo desses “heróis” homenageados transpassa as fronteiras, já que a desigualdade não está presente em apenas um país. Nessa direção, a luta contra todas as formas de opressão nunca deveria fugir do horizonte de todos e todas que formam e lutam dentro do campo progressista.

Se os lugares de memória existem para nos recordar, constantemente, de quem somos nós, é muito natural que o valor desses lugares se transforme com o tempo, na mesma medida em que a própria sociedade se transforma. Já não aceitamos o racismo como em tempos bem próximos, logo, não faz sentido que queiramos deixar para o futuro homenagens a pessoas que defenderam esta forma de discriminação e dela se aproveitaram. Lutas como essas podem ajudar para a construção de pautas comuns no interior do campo progressista. Disputas e divergências sempre haverá, mas é preciso não perdermos o horizonte do comum.

O que vemos hoje é a reivindicação, muito justa, dos grupos que tiveram suas memórias e identidades subjugados, o que faz com que se reconheça que a nossa sociedade é composta por variadas memórias e identidades – muito diferente do “povo brasileiro” homogêneo que defendeu, em sua “atualização regressista”, o ex-ministro da Educação Abraham Weintraub, durante a famigerada reunião ministerial do dia 22 de abril de 2020. Em sua análise, relativa a esse “povo” ao qual faz referência a extrema-direita brasileira, a historiadora Luísa Pereira escreve: “O verdadeiro povo seria formado pelo homem simples, cristão, conservador, heterossexual, casado, pai de família, provedor, empreendedor e patriota […]. O verdadeiro povo é, portanto, homogêneo”. Uma ideia de povo e heróis celebrados pela atual propaganda política desse governo para o 7 de Setembro este ano.

Os protestos atuais nos quais estátuas são derrubadas em nome da luta contra o racismo e o colonialismo são formas de manifestação que surgem em situações extremas de sofrimento e revolta, e não podemos condenar tais atitudes de modo linear. No entanto, não devemos normalizar o uso da violência, ela é sintoma de que os caminhos democráticos para solução de conflitos não estão funcionando. Antes de condenar, a cidadania precisa se perguntar sobre o que está errado e precisa ser feito.

Como afirma Adam Prezeworski, em Crises da democracia: “A persistência da desigualdade é uma prova irrefutável de que as instituições representativas não funcionam, pelo menos não como quase todo mundo acha que deveriam. Portanto, o avanço do “populismo” — resultado da insatisfação com as instituições políticas que reproduzem a desigualdade e não oferecem alternativa — não deveria nos surpreender”.

Assim, no dia em que os mais diversos brasileiros rememoram sua Independência não custa lembrar que enfrentar as diversas opressões e desigualdades que marcam esse país é um desafio que nosso passado nos legou e que deve ser assumido coletivamente.

*Mateus Pereira, Mayra Marques e Valdei Araujo escreveram o Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou o encontro do presidente fake e um vírus real. Mateus Pereira e Valdei Araujo são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto em Mariana. Também são autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem, e Mayra Marques é doutoranda em História na mesma instituição.

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100 mil mortos. Lute apesar do luto

Uma ação em memória dos mais de 100 mil mortos pelo Covid-19

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Lute apesar do luto

100 mil mortos. Uma ação chamada Lute apesar do luto aconteceu na manhã deste sábado em São Paulo, num momento em que chegamos à essa triste marca pela pandemia do novo Coronavírus.

32 cruzes pretas foram colocadas aos pés de cada mastro de bandeira do Brasil, que estão localizadas na ponte da Cidade Jardim, Marginal Pinheiros.

Lute apesar do luto
Lute apesar do luto
Lute apesar do luto
Lute apesar do luto
Lute apesar do luto

100 mil mortos. Num momento como esse, a pergunta é: porque as bandeiras do Brasil que estão por todos os lados, não estão a meio-pau? Não existe normalidade, quando chegamos a 100.000 mortos. Não existe.

Cada morte tem nome, história, trajetória, família, filhas e filhos, pais, avós, netas e netos, amigas e amigos, tem rosto, sorrisos apagados, marcas do tempo, da vida. Não podemos esquecer e achar que estamos a caminho da normalidade.

Não.

100 mil mortos. Um governo que nunca prestou solidariedade a ninguém, que brinca descaradamente com a situação que passamos, que inventa curas milagrosas com remédios cuja ineficácia é cientificamente comprovada, um governo que nem ministro da saúde tem, sem vergonha na cara de espinafrar a ciência, os próprios médicos, que incita a invasão e violência a hospitais, e deixa as populações mais pobres à sua própria sorte, sem medidas mínimas para combater essa pandemia com sabedoria e inclusão.

A tristeza se torna mais forte ainda, quando nem o luto de cada perda pode ser respeitado. Quando os mortos não podem ser velados, perde-se a despedida, o fim da trajetória, o recomeço, a memória e as lembranças.

100 mil mortos. Toda bandeira do Brasil, em todo o território nacional, deve ser colocada a meio-pau. Para lembramos sempre de quem não está mais entre nós, mas que merecem que nós sigamos lutando para que o Brasil não seja lembrado como o País que enterrou mais vidas em todo o mundo, por egoismo, negacionismo e incompetência de um Governo.

#lutepeloluto #luteapesardoluto #bandeirasameiomastro

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