Por Santiago Gómez, especial para os Jornalistas Livres
O Papa Francisco divulgou o dia 4 de Julho, uma mensagem nas redes sociais contra a especulação imobiliária. No vídeo, Francisco começa reconhecendo que “dos juízes dependem decisões que influenciam os direitos e os bens das pessoas” e que “sua independência deve ajudá-los a serem isentos de favoritismos e de pressões que possam contaminar as decisões que devem tomar”. Esta última afirmação fez que no Brasil se interpretasse a mensagem como um recado para o juiz Sérgio Moro. Francisco, do jeito dele, já se manifestou contra a utilização do poder judiciário contra as lideranças populares, no encontro que manteve com juízes pan-americanos no mês de junho. Mas há outra dimensão da fala de Francisco, que é preciso levar em consideração: desde o primeiro encontro do Papa com os movimentos sociais, Francisco vem impulsionando as três T: Terra, Teto e Trabalho.
No primeiro Encontro Mundial dos Movimentos Populares, acontecido em Roma no ano 2014, Francisco afirmou:
“Este nosso encontro responde a um anseio muito concreto, a algo que qualquer pai, qualquer mãe, quer para os próprios filhos; um anseio que deveria estar ao alcance de todos, mas que hoje vemos com tristeza cada vez mais distante da maioria das pessoas: terra, teto e trabalho. É estranho, mas se falo disto para alguns o Papa é comunista. Não se compreende que o amor pelos pobres está no centro do Evangelho. Terra, casa e trabalho, aquilo pelo que lutais, são direitos sagrados”.
Cabe destacar, que o direito à moradia, é reconhecido no artigo 6º da Constituição Federal brasileira. Desde então, o Papa repetiu esses encontros mais duas vezes, o segundo aconteceu na Bolívia em 2015 e o último, de 2016, de novo na Itália.
No primeiro encontro, no momento de abordar a problemática dos sem teto, Francisco afirmou:
“Hoje, vivemos em imensas cidades que se mostram modernas, orgulhosas e até vaidosas. Cidades que oferecem inúmeros prazeres e bem-estar para uma minoria feliz… mas se nega o teto a milhares de vizinhos e irmãos nossos, inclusive crianças, e eles são chamados, elegantemente, de ‘pessoas em situação de rua’. É curioso como no mundo das injustiças abundam os eufemismos. Não se dizem as palavras com a contundência, e busca-se a realidade no eufemismo. Uma pessoa, uma pessoa segregada, uma pessoa apartada, uma pessoa que está sofrendo a miséria, a fome, é uma ‘pessoa em situação de rua’: expressão elegante, não? Vocês, busquem sempre, talvez me equivoque em algum, mas, em geral, por trás de um eufemismo há um crime. Vivemos em cidades que constroem torres, centros comerciais, fazem negócios imobiliários… mas abandonam uma parte de si nas margens, nas periferias. Como dói escutar que os assentamentos pobres são marginalizados ou, pior, quer-se erradicá-los! São cruéis as imagens dos despejos forçados, dos tratores derrubando casinhas, imagens tão parecidas às da guerra. E isso se vê hoje”.
No vídeo difundido pelo Papa (no dia da Independência dos Estados Unidos), a situação acontece num tribunal, numa disputa por terra, onde uma parte quer construir um resort, e a outra é um homem que esta defendendo a terra onde tem sua casa. Quando a câmera mostra o hotel, se escuta a voz do Francisco dizendo “Os juízes devem seguir o exemplo de Jesus, que nunca negocia a verdade”, e quando foca no homem mostrando a foto da casa para o juiz, se escuta o Papa dizer “Rezemos para que todos aqueles que administram justiça operem com integridade e para que a injustiça que atravessa o mundo não tenha a última palavra”. A cena acaba com o juiz batendo o martelo, olhando para o pobre.
Desde que Francisco chegou ao Vaticano, ele briga de frente com o sistema financeiro e seu parceiro lógico, as corporações midiáticas. Quem especula com informação precisa dos meios de comunicação. Por isso no Terceiro Encontro Mundial dos Movimentos Populares, o Papa perguntou “Quem governa então? O dinheiro. Como governa? Com o chicote do medo, da desigualdade, da violência econômica, social, cultural e militar que gera sempre mais violência em uma espiral descendente que parece não acabar nunca”.
O Papa Francisco, quando era Jorge Bergoglio, fazia trabalho de base nas favelas de Buenos Aires. Foi uma peça fundamental na criação da Mesa do Diálogo, que se criou após o “estallido”, a crise social argentina de dezembro de 2001. É por isso que conhece bem de perto o trabalho dos movimentos sociais, com os quais sempre articulou, e as consequências políticas e legais que as lideranças devem confrontar por lutar por direitos constitucionais.
No último encontro com os movimentos populares, de 2016, Francisco falou para as lideranças presentes: “Penso, às vezes, que quando vocês, os pobres organizados, inventam o seu próprio trabalho, criando uma cooperativa, recuperando uma fábrica falida, reciclando os descartes da sociedade de consumo, enfrentando as inclemências do tempo para vender em uma praça, reivindicando um pedaço de terra para cultivar e alimentar quem tem fome, vocês estão imitando Jesus, porque buscam curar, mesmo que somente um pouquinho, mesmo se precariamente, essa atrofia do sistema socio-econômico reinante que é o desemprego. Não me surpreende que também vocês, às vezes, sejam vigiados ou perseguidos, nem me surpreende que aos soberbos não interesse aquilo que vocês dizem. (…) Sei que muitos de vocês arriscam a vida. Sei que alguns não estão aqui hoje porque arriscaram a vida”.
Mais de um anos depois de serem mandados para a prisão, terem a liberdade provisória concedida e aguardarem a decisão final, jovens foram considerados inocentes. Na decisão a juíza declarou que “JULGO IMPROCEDENTE a denúncia, para o fim de absolver” os quatro jovens. A história dos quatro jovens do Jd São Jorge é exemplar e a decisão de sua inocência sair em meio explosões de manifestações contra o racismo e violência policial no mundo, por conta do assassinato de George Floyd pela polícia dos Estados Unidos, torna a situação exemplar.
Washington Almeida da Silva, os irmãos Pedro e Fabrício Batista e Leandro Alencar de Lima e Silva foram presos em dezembro de 2018, após terem sido acusados de roubar um Uber na Zona Oeste da cidade de São Paulo. Eles foram para a prisão em seguida. Enquanto estiveram na prisão suas famílias passaram a lutar para provar sua inocência. Depois se organizaram e reuniram provas que demonstraram a inocência dos quatro. Com apoio da Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, organizaram atos para mobilizar as pessoas do bairro onde os jovens nascerem e crescerem, Jd São Jorge, na Zona Oeste da cidade.
As famílias reunidas Foto: Lucas Martins / Jornalistas Livres (Abril de 2019)
Em março do ano passado a juíza Cynthia Torres Cristofaro, da 23ª Vara Criminal, concedeu liberdade provisória para os quatro. Desde então os jovens apresentaram as provas que as famílias e o advogado Luiz Toledo Piza juntaram ao longo do processo e aguardaram a decisão da juíza. Na última quinta feira, 4, veio então a decisão.
Nela a juíza Cristofaro, depois de retomar os pontos do processo, afirma que “ao exame da prova dos autos persiste dúvida insuperável quanto à hipótese acusatória, mal esclarecida” e lembra que “em relação à identificação dos réus não foi possível tomar da vítima”, sendo que esta não compareceu nas audiências. E conclui com a absolvição dos quatro.
Para o advogado o caso se faz exemplar uma vez que a “realidade mais uma vez traz à tona, o despreparo da nossa polícia e a falta de interesse do Estado em investigar os reais fatos de uma malfadada acusação contra inocentes” e recomenda “que as autoridades tomem maiores cuidados, mais cautela e promovam investigações mais profundas, antes de atirarem pessoas inocentes nos calabouços da prisão”.
No dia 10 de dezembro de 2018, os jovens foram abordados por Policiais Militares que haviam encontrado um carro de um Uber, roubado numa rua próxima. Os quatro alegaram inocência ao serem presos pelo roubo. Mas mesmo assim foram mandados para a prisão.
Além de organizar atos pela comunidade a família juntou provas para demonstrar a inocência dos quatro, como:
Uma testemunha que afirma ter visto os rapazes ali até por volta das 23:40h, enquanto o roubo estaria acontecendo (no B.O. a ocorrência está registrada como iniciada às 23:45h).
As roupas que a vítima descreveu não combinavam com as dos quatro na noite do crime.
Nenhum dos jovens estava com os itens roubados, o reconhecimento da vítima ter sido realizado de forma avessa ao código penal.
E um roubo muito parecido ter ocorrido pouco tempo depois, próximo do local.
Respeitando as regras de distanciamento social, os manifestantes se reuniram às 13h em frente ao Palácio da Justiça e saíram em passeata até as “Torres Gêmeas”, onde Miguel morreu. De maneira pacífica, gritaram palavras de ordem e pediam a responsabilização de Sari Gaspar Corte-Real, a patroa que negligenciou Miguel.
“Esse horror que é a morte do menino Miguel é a história com mais símbolos de que eu tenho lembrança:
A empregada que trabalha durante a pandemia;
A empregada, mãe solo, que não tem com quem deixar o filho;
A empregada é negra;
A patroa é loura;
A patroa é casada com um prefeito;
O prefeito tem uma residência em outro município, que não é o que governa;
A patroa tem um cachorro, mas não leva ele pra passear, delega;
A patroa está fazendo as unhas em plena pandemia, expondo outra trabalhadora;
A patroa despacha sem remorso o menino no elevador;
O menino se chama Miguel, nome de anjo;
O sobrenome da patroa é Corte Real;
A empregada pegou Covid com o patrão;
A empregada consta como funcionária da Prefeitura de Tamandaré;
Tudo isso acontece nas torres gêmeas, ícone do processo e verticalização desenfreada, especulação imobiliária e segregação da cidade do Recife;
Tudo isso acontece em meio aos protestos Vidas Negras Importam;
Tudo isso acontece no dia em que se completaram cinco anos da sanção da lei que regulamentou o trabalho doméstico no Brasil;
É muita coisa, muito símbolo.”
Texto por Joana Rozowykwiat (@joanagr) (@JoanaRozowyk)