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violência

“Fisioterapeuta das estrelas” acumula ao menos 10 denúncias de estupro, agressão e violação sexual

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Por Gustavo Aranda, dos Jornalistas Livres, e Vinícius Segalla, do DCM

Ele é bonito, sedutor e, segundo afirma, admirador e defensor das mulheres. Ele é dono de uma clínica de terapia, massagem, tratamento da coluna, e, segundo afirma, é fisioterapeuta. Ele já atendeu personalidades como o jornalista Pedro Bial, a cantora Kefera e o modelo Pedro Rocha, e, segundo afirma, o que gosta mesmo é de atender aos mais necessitados. Ele é acusado de estupro, tentativa de estupro, lesão corporal e exercício ilegal da profissão, e, segundo afirma, é completamente inocente. Seu nome é Nelson Lemoine, e essa é a sua história.

Nelson é proprietário da Clinique de L’Avenir. Conforme a mesma propaga, oferece um tratamento chamado Body Aligment, supostamente criado pelo próprio Nelson, e que consistiria em uma “técnica que realinha o corpo e alivia dores e incômodos promovendo qualidade de vida e bem estar”. De acordo com ele, sua formação acadêmica é de fisioterapeuta graduado, com mais de 600 horas de cursos e especializações em variados cursos de saúde. As imagens abaixo, constantes em inquéritos policiais aos quais a reportagem teve acesso, indicam que Nelson Lemoine se identificava como fisioterapeuta para realizar atendimentos clínicos.

   

 

 

Na realidade, porém, o Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional (COFFITO) não tem em seu cadastro nenhuma inscrição deste profissional. Por causa disso, Nelson Lemoine sofre um processo na Justiça, movido por ex-sócios da Clínica L’Avanir, que afirmam terem sido ludibriados por ele. A lei penal que teria sido infringida é a que segue.

Artigo 47 do Decreto Lei nº 3.688 de 03 de Outubro de 1941
Art. 47. Exercer profissão ou atividade econômica ou anunciar que a exerce, sem preencher as condições a que por lei está subordinado o seu exercício:
Pena – prisão simples, de quinze dias a três meses, ou multa

Não é o exercício ilegal da profissão, no entanto, a única nem talvez a mais grave ilicitude de que Lemoine é acusado. A reportagem dos Jornalistas Livres e do DCM teve acesso ao depoimento de dez mulheres – por meio de documentos oficiais presentes em inquéritos policiais ou através de entrevistas concedidas à reportagem – em que o suposto fisioterapeuta é acusado de estupro, tentativa de estupro, lesão corporal e violação sexual mediante fraude ou estelionato sexual. São mulheres que não se conhecem, que moram em diferentes estados do Brasil, que não possuem qualquer tipo de relação pessoal e que afirmam ter sofrido as agressões em anos e locais diferentes.

Pedro Bial, Bruno Santos, Arícia Silva, Kefera e Pedro Rocha. Algumas das celebridades que já foram atendidas e visitaram a clínica de Nelson Lemoine.

Ainda assim, de acordo com o que afirmou Nelson Lemoine à reportagem, todas elas estão mentindo e trabalhando em conjunto para minar sua reputação e lhe causar danos morais e materiais. Os fatos narrados por elas serão descritos a partir de agora. A reportagem omitiu o nome de todas as denunciantes – que temem, sem exceção, represálias por parte do acusado.

São, basicamente, dois tipos de denúncias: as de assédio durante os tratamentos supostamente fisioterápicos, que teriam ocorrido em ambiente de consultório, e as de agressão, estupro e tentativa de estupro, supostamente praticadas em ambientes particulares, fora do exercício da profissão. A que segue abaixo é do segundo tipo. É um trecho de um boletim de um Boletim de Ocorrência, lavrado em 27 de julho de 2015.

A ocorrência acima foi lavrada por uma ex-mulher de Nelson Lemoine, no estado de São Paulo. Ele tem 28 anos anos. A vítima, sua ex-esposa, tem 48. Já a imagem que segue abaixo, é reprodução de um Boletim de Ocorrência lavrado em 3 de maio deste ano, no estado de Santa Catarina, e que já deu origem a um inquérito policial.

A situação narrada acima pela vítima não é a única que ela afirma ter sofrido. Em outra denúncia, cujo Boletim de Ocorrência a reportagem também teve acesso, mas que não foi autorizada pela vítima a reproduzir o documento, em virtude do excesso de exposição a que ela seria submetida, é narrado que Nelson Lemoine efetivamente a estuprou, jogando-a em uma cama e, segurando-a com os braços, conseguiu efetivar a penetração, até o momento em que a vítima, aos chutes e socos, conseguiu se livrar da situação e fugir.

A reportagem teve acesso ainda a dois outros boletins de ocorrência, de duas outras mulheres, que alegam terem sido agredidas pelo mesmo acusado, com socos, chutes e, também verbalmente, tendo sido chamadas de “vagabunda” e outras palavras de significado semelhante. Uma delas estava grávida de oito meses, de um filho dele, e foi atendida no Hospital Pró Mater após as agressões. Uma das agredidas afirmou às autoridades policiais, ainda, que teve suas senhas e contas de e-mail e redes sociais invadidas por ele, que passou a espioná-la.

As acusações de violação sexual mediante fraude

A acusação de invasão de privacidade e crime cibernético, descrita acima, não é a única que sofre Nelson Lemoine. Também um ex-sócio da clínica L’Avanir, que igualmente pediu para ter sua identidade preservada, o acusa judicialmente de ter invadido sua conta de e-mail e Whatsapp, e anexou aos autos do procedimento legal o que seriam provas de mais este crime.

“Eu recebi denúncias de clientes que relataram terem sofrido abusos do Nelson durante as consultas clínicas. Quando reuni elementos para ter certeza de que estavam falando a verdade, decidi deixar a clínica dele e abrir outra. Durante as sessões de tratamento, o que ele fazia era tentar beijar à força uma paciente, ou passar a mão nas partes íntimas de outras, fingindo ser parte do tratamento”, relata seu ex-sócio.

De acordo com o que ex-pacientes de Nelson Lemoine narraram à reportagem – em entrevistas gravadas – o relato acima faz sentido.

“Eu estava na maca, de barriga para cima, de olhos fechados enquanto ele fazia massagem no meu ombro, e então ele me beijou na boca. Eu imediatamente levantei, interrompi a sessão, e ele pediu desculpas, disse que se deixou levar pela minha beleza”, contou uma ex-paciente, que também narrou o ocorrido ao sócio de Nelson, que veio a deixar a sociedade e denunciá-lo.

“Eu estava de costas, na maca. Ele começou a passar a mão na parte interna das minhas coxas, e então foi subindo, encostando na minha vagina e percorrendo para cima, no meio do meu bumbum”, contou outra paciente, bastante constrangida, à reportagem.

O que foi narrado ao longo desta reportagem é apenas o conteúdo que as supostas vítimas permitiram que fosse publicado. Os Jornalistas Livres e o DCM têm em seu poder outros relatos e documentos, fornecidos ao todo por dez supostas vítimas, e que estão à disposição, mediante autorização de quem os narrou e forneceu, das autoridades competentes.

O Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (Nudem), da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, já está ciente da maioria das denúncias relacionadas ao acusado, e reúne todas as informações e relatos referentes ao assunto, não importando em qual estado brasileiro eles venham a ter ocorrido. As autoridades competentes pedem que quem quer que se disponha a narrar novos fatos referentes ao tema, sempre tendo respeitado o direito ao anonimato, que encaminhem mensagens para o e-mail nucleo.mulher@defensoria.sp.def.br.

Algumas das postagens de cunho político que Nelson Lemoine publicou em suas redes sociais.

Outro lado

Nelson Lemoine conversou com a reportagem dos Jornalistas Livres e do DCM, que o colocou a par de todas as acusações que lhe são feitas. Negou todas. Disse possuir licença para exercer todas as práticas terapêuticas que exerce. Disse que nunca adotou nenhuma prática invasiva, abusiva ou ilegal com quaisquer de suas pacientes. Afirmou que tudo tem origem em uma disputa pela técnica terapêutica que Nelson teria desenvolvido e que estaria tentando ser usurpada por seu ex-sócio.

“Estou sofrendo ataques, calúnias e difamações em questão de uma dissolução de contrato social, onde meu antigo sócio quer se apoderar, e há um crime configurado, caracterizado, como expropriação de propriedade intelectual. Eu nunca me intitulei como fisioterapeuta. Meu advogado já está tomando as medidas cabíveis.”

A respeito das acusações que sofre fora do âmbito profissional, Nelson Lemoine afirma que são referentes a discussões e brigas com mulheres com quem ele se relacionava, em que também foi agredido por elas, e nas quais não praticou o crime de estupro nem de tentativa de estupro.

“Isso difere totalmente da minha vida profissional. Ainda assim, são acusações caluniosas, pretendo entrar com ações judiciais, porque não há provas. Teve um episódio, um tanto catastrófico, referente a um dos boletins de ocorrência, porque no outro boletim de ocorrência, a moça nem foi adiante. Ela (a autora da denúncia) está junto com o meu ex-sócio. E o objetivo deles é me tirar do mercado, para herdar a metodologia que desenvolvi.

Mas, voltando para o caso que foi adiante, ela (a autora da denúncia) chamou a polícia, mas ela é quem estava me agredindo. Eu nego todas essas denúncias, tanto da parte dos boletins de ocorrência, quanto no âmbito profissional, que está impactando negativamente na minha vida.”

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Feminismo

“Estupro culposo”, culpa da vítima?

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Por Sonia Coelho*

O caso de André de Camargo Aranha veio à tona nas redes sociais por conta de sua absolvição pela denúncia de estupro de vulnerável. Segundo o The Intercept Brasil, durante o processo o promotor Thiago Carriço de Oliveira apresentou a tese de que não se pode comprovar, na conduta do acusado, a intenção de estuprar, a capacidade de perceber que Mariana não poderia consentir.

A audiência foi gravada e mostra como as vítimas de violência são revitimizadas pela Justiça que deveria acolhê-las. O tratamento à denúncia de estupro feita por Mariana Ferrer escancarou o que nós do movimento feminista temos denunciado sistematicamente: o quanto o Judiciário brasileiro é machista, misógino, patriarcal.

O advogado de defesa de André Aranha, Cláudio da Rosa Filho, armou um show contra Mariana, chegando a falar de sua roupa e de sua conduta para “justificar” o estupro. Expondo e julgando fotos que nada tinham a ver com o caso, e usando uma série de questões morais, tentou justificar que Mariana tivesse consentido com o estupro. É inaceitável que juiz e promotor presenciem a humilhação e o assédio moral proferidos pelo advogado de defesa em relação à vítima e não façam nada, não se pronunciem nem interrompam o advogado.

Não existe estupro “sem querer”

A interpretação do caso pela promotoria afirmou, segundo citação da Folha de São Paulo, que “não restou provada a consciência do acusado acerca de tal incapacidade, tendo-se, juridicamente, por não comprovado o dolo do acusado”– o que o portal The Intercept Brasil resumiu como “estupro culposo” em sua reportagem. O caso revela a dificuldade que as vítimas de crimes de estupro enfrentam para ver os agressores punidos, especialmente quando eles são brancos e ricos. O que Mariana relata é que o estupro aconteceu numa situação em que estava absolutamente vulnerável, sem condições de tomar qualquer decisão. Estupro não é acidente e a palavra da vítima deve prevalecer.

Embora a sentença não tenha citado a classificação do “estupro sem intenção” ou “estupro culposo”, a discussão do tema é essencial para evitar que mais uma tese seja emplacada no Judicário para absolver estupradores no Brasil. Teses machistas estão sendo retomadas no Judiciário, como as de “defesa da honra” e “violenta emoção”. São muitas as teses que o Judiciário brasileiro tem aceitado para manter a impunidade dos agressores no Brasil. Isso só fortalece a cultura do estupro.

O estupro não é um exercício da sexualidade. O estupro é o exercício do poder dos homens sobre as mulheres. Serve para colocar as mulheres no lugar de subordinação, e foi isso que essa audiência tentou: colocar Mariana Ferrer num lugar de subordinação.

O recente caso do jogador de futebol Robinho apresenta uma situação semelhante: ele mesmo dizia que a mulher sequer tinha condição de ficar em pé ou se expressar, mas continuou dizendo que ela quis, e que aquilo não era problemático porque “nem era sexo”. Essa é a tese machista de que os homens não têm essa capacidade de discernir, e é muito perigosa porque aceita como consentimento situações em que o consentimento é impossível. Na nossa sociedade, há um acobertamento dessas situações de violência, propondo uma aceitação como se fosse “algo da vida”. Isso é a banalização do estupro.

Os dados recentes do Fórum Brasileiro de Segurança Pública são alarmantes: em 2015, acontecia um estupro a cada 11 minutos, um dado já muito preocupante; em 2019, a situação piorou muito, passando a um estupro a cada oito minutos. Além disso, nesse período de pandemia que nos exigiu aumentar o isolamento social, vimos diversos estudos apontando um aumento ainda maior dos números de estupro e violência contra a mulher no Brasil. O que o Estado tem feito para se responsabilizar por essa calamidade?

Denunciar não pode acarretar em mais violências

A situação de Mariana Ferrer escancara uma realidade gravíssima. Oestupro já é um crime subnotificado, pela dificuldade de denunciar e ser ouvida. Muitas meninas e mulheres sentem vergonha de denunciar e expor sua intimidade, sua vida pessoal, seus traumas. A dificuldade aumenta quando não há confiança com a Justiça. O que aconteceu com a Mariana é uma prova dessa dificuldade: a vítima torna-se ré, torna-se culpada e é exposta, enquanto o violador sai impune e preservado, porque a palavra dele detém mais poder e confiança.

São várias mulheres e meninas que passam a vida convivendo com o fantasma do estupro que viveram sem conseguir denunciar, exatamente por medo e por vergonha. É por isso que muitas mulheres só conseguem falar sobre o que viveram depois de muitos anos. A desresponsabilização do Estado gera ciclos profundos de violência, anos de silêncio e dor, e afeta até mesmo a saúde mental das mulheres.

No Judiciário, a injustiça tem gênero, classe e raça. É bastante perceptível que a Justiça hoje criminaliza e ataca aqueles que oferecem algum risco ao sistema, ao mesmo tempo que permite a violência contra esses setores. O sistema que protege André de Camargo Aranha (um empresário branco que pode pagar por um dos advogados mais caros de Santa Catarina) é o mesmo que permite que a Polícia Militar assassine e encarcere a população negra, violando de forma brutal os direitos humanos.

Os homens poderosos acusados de estupro têm uma segurança de que as mulheres não vão ter coragem de denunciar e que, mesmo que denunciem, seu dinheiro e posição social são argumentos suficientes para jogar a culpa nas mulheres, dizendo que elas que “não se comportaram como deveriam”. Esse tipo de postura conivente do Judiciário dá a certeza para esses homens de que eles podem continuar estuprando e violentando as mulheres. E esse é um problema da Justiça brasileira e de toda a sociedade.

Isso significa que a Justiça só irá se mexer se nos mobilizarmos. Até 2005, por exemplo, o casamento do estuprador com sua vítima anulava o crime no Brasil. Não fosse o avanço do movimento feminista sobre esse tema, talvez isso ainda vigorasse até hoje. São diversos os casos de violência contra a mulher em que a manifestação do movimento feminista foi crucial para que a Justiça avançasse e a violência recuasse.

Só o feminismo pode mudar a nossa realidade

Graças à luta do movimento feminista, temos avanços importantes para que haja justiça diante de casos de violência e estupro.

Já tivemos muitos avanços, como a aprovação da Lei Maria da Penha em 2003, que possibilitou toda uma gama de políticas públicas de enfrentamento à violência. Ainda assim, precisamos de uma série de políticas que consigam concretizar o que está escrito nas leis, e isso só é possível com o movimento feminista organizado e com a responsabilização do Estado. No período dos governos do PT na Presidência da República, tivemos uma Secretaria de Política para as Mulheres responsável por políticas e programas muito importantes contra a violência e por ampliação da autonomia das mulheres. Infelizmente, muitas delas foram desmontadas pelo governo golpista de Temer ou pelo Ministério da Família de Damares e Bolsonaro.

Todas essas experiências nos mostram que, além de um sistema de justiça efetivo, é preciso uma série de políticas públicas para combater a violência. Essas políticas precisam ser permanentes, e se concretizar na vida das pessoas: serem acessíveis em todos os cantos das cidades, terem orientação feminista, combaterem a violência de forma integral. Para isso, não basta a política nacional. Políticas no âmbito estadual e municipal são cruciais, tanto para garantir a efetivação das políticas e dos serviços públicos, quanto para relacioná-las com a realidade de cada território, enfrentando os desafios próprios e se articulando com as organizações de mulheres e comunitárias em cada lugar.

O caso de Mariana Ferrer é mais um que mostra a necessidade da luta feminista e a necessidade de pensarmos em políticas para o combate à violência contra a mulher, incluindo aí um amplo debate sobre como esses casos são tratados pela Justiça brasileira. Precisamos nos manifestar e exigir que esses casos sejam tratados com a seriedade que lhes é devida. Temos que lutar para denunciar esse caso, fazê-lo retornar para um novo julgamento, onde haja respeito e o combate à violência seja levado a sério. Não iremos aceitar teses machistas, criadas para manter a impunidade do estupro no Brasil.

(*) Sonia Coelho é militante da Marcha Mundial das Mulheres, assistente social e candidata a vereadora em São Paulo.

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Feminicídio

MARIELLE FRANCO, 41 ANOS DEMOLINDO AS VELHAS ESTRUTURAS

Marielle Franco, 41 anos. Dois jornalistas livres constróem e narram o que ela representa para o mundo

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Marielle Franco, 41 anos

Lembro-me que, naquele 14 de março de 2018, eu estava em um trabalho na Bahia, quando soube do assassinato de Marielle Franco. Era também, a data de meu aniversário. Cercada de amigos num restaurante, o mundo literalmente parou. Eu não havia conhecido Marielle pessoalmente, mas já acompanhava a sua atuação política e comunitária, mesmo antes de ser vereadora. Não acreditei que aquilo pudesse ter acontecido. Aliás, em época de fake news, eu achei que aquela era mais uma, e devido às minhas vivências profissionais com diversos parlamentares, no meu imagético mundo, a tal da imunidade parlamentar era como se fosse uma grande muralha impenetrável a qualquer tempestade. Marielle Franco faria 41 anos hoje.

Por Matheus Alves e Katia Passos

Amanhecer

É óbvio que eu já havia me deparado com histórias de execuções de prefeitos, por exemplo, de pequenas cidades, mas pensar que uma vereadora legitimamente eleita havia sido morta no Rio de Janeiro, era algo absurdo e inadmissível para mim. Mais inaceitável ficava, ainda quando eu lembrava do rosto de Marielle Franco, que era, entre outras parlamentares, uma das minhas referências no modo de atuar politicamente, como mulher preta. A comida e a bebida já não desceram mais. Lembro-me que saí do restaurante e o Pelourinho estava metaforicamente silencioso para mim. Havia aquela movimentação com xêro de Pelourinho, mas pairava no ar um clima absorto de indignação e medo. Caminhando por ali, encontrei outros amigos e sentamos num bar. Nossos corpos sentiam uma exaustão que não era fruto do calor bahiano e logo entendemos que era dor. 

Ali as nossas fichas começaram literalmente a cair. Aguardávamos Marielle para o dia seguinte participar de uma das atividades nas quais eu trabalharia como jornalista. Ela não viria. Recordo agora que choramos na mesa e não conseguimos mais tirar os olhos das telas dos celulares e queríamos ir embora para o Rio de Janeiro. 

O amanhecer foi absurdamente horrível. Lembro que acordei com uma pressão no peito. Liguei para casa. Chorei. 

Marielle Franco 41 anos

Katia Passos (à dir.) com os pais e irmã de Marielle Franco

Foto: Arquivo pessoal de Katia Passos
Marielle Franco 41 anos.
Katia Passos (à dir.) com os pais e irmã de Marielle Franco
Foto: Arquivo pessoal de Katia Passos

Um ato público já estava organizado em protesto ao assassinato de Marielle e seu motorista Anderson Gomes. Durante a manifestação lembro-me que eu tentava fazer uma transmissão ao vivo, e num momento choroso encontrei Marcelo Rocha, um jovem fotógrafo negro, de amizade íntima e longeva. Nos abraçamos e caminhamos. Um silêncio, alías o único som era da terra dos campos da Universidade Federal da Bahia, onde acontecia a manifestação.  

Sabíamos que aquele 14 de março não era só mais um dia para comemorar aniversário, sentimos que a data trazia um limítrofe com giz preto riscado no chão, sobre o que não iríamos mais tolerar e qual legado queríamos imortalizar. Entendemos ali o sentido da frase: “não serei interrompida!”.

Depois de mais de 2 anos sem respostas sobre quem mandou matá-la, hoje chegamos vivos, eu e Matheus e muitos outros pretos, ao 27 de julho de 2020, data dos 41 anos de Marielle. Sim, porque para nós, Marielle Franco permanece em legado e semente representando obviamente um verdadeiro incômodo à Casa Grande, milicianos e racistas. 

Mãe

Dessa trajetória surgiram centenas de milhares de novas mulheres negras que se reconhecem como parte de uma estrutura que tem como engrenagem os seus próprios corpos e esses precisam se movimentar, como diz a mestra Angela Davis, para que toda uma estrutura se movimente, evolua e por nossa sobrevivência, que seja inclusive demolida e novas construções defendam uma das trajetórias mais ricas em poderio político, humanitário e afetuoso já vista na história de uma mulher preta, altiva e de tom permanentemente voraz em sua militância. E por falar em afeto, nesses 41 anos nós negras e negros amanhecemos literalmente afetados com a declaração daquela que pariu Mari, D. Marinete Silva:

“Vinte e sete de julho de 1979! Era uma sexta de sol lindo com desenhos infinitos e desordenados, nem parecia inverno. A criança que veio ao mundo, tinha peso e tamanho de menino. A mãe feliz, segura, e tomada de confiança em Maria, sua intercessora, sua mãe Filó, que chegara de João Pessoa para acompanhar o nascimento da criança. A partir daquele dia nunca mais me senti sozinha, começava ali uma missão de doação, entrega e amor eterno com aquele ser indefeso e frágil que nos remete a pensar em você como prioridade para nada no mundo. Chegava sua melhor, amiga, companheira, guerreira, irradiando luz, esperança e um futuro brilhante para sua trajetória.

Marielle Franco 41 anos

D. Marinete e Marielle recém nascida

Foto: arquivo das redes sociais da família de Marielle Franco
D. Marinete e Marielle recém nascida
Foto: arquivo das redes sociais da família de Marielle Franco

Foram 38 anos de luta, sacrifícios, dedicação e amor infinito. Formei caráter, personalidade e principalmente o respeito ao sagrado. Cumpri minha missão de mãe e devolvi minha filha para Deus, precocemente, sem entender o porquê! Acreditando em sua misericórdia de pai que nunca me desamparou e sem perder minha fé. Só o senhor mudaria minha história e a da Marielle. A justiça dos homens pode não chegar, a sua jamais falhará e nessa eu acredito. O céu está em festa. Que toquem as trombetas da eternidade por nos dar de presente seus 38 anos de existência.” 

Descobrir 

Conheci Marielle bem de perto em dois eventos onde estive no Rio de Janeiro. Eu não era, de fato, um jovem próximo da vereadora, apesar de termos sido formalmente apresentados um ao outro. Mas desde quando a conheci, nunca mais acordei igual. Descobertas, um novo desperta.  Tornei-me um jovem preto mais esperançoso com a vida e avançado na consciência sobre meu real papel no país. 

Sou um contrariador das estatísticas, e embora vivo, estou há dois anos angustiado lutando diariamente para que seja respondida a pergunta sobre os mandantes do crime. E mesmo não possuindo provas jurídicas sobre os assassinos, é muito claro que para nós, militantes do campo progressista, a sensação das conexões do assassinato com determinados personagens, esteja presente e por isso somos afetados por resistência e angústia ao mesmo tempo, desde o 14 de março de 2018. E isso piora quando somos apresentados a fatos supostamente ligados ao crime, veiculados pela mídia tradicional. Alternâncias intrigantes entre angústia, ardor no peito e resistência. 

Hoje amanheci lembrando do sorriso e da firmeza das palavras da vereadora, que como diz Jorge Mautner, em canção que leva seu nome, “é uma força furiosa” . 

Quando verbalizam “Marielle Franco”, logo vem à cabeça a sensação de exemplo, de coletivo, dá vontade de sorrir e de abraçar alguém. Seu nome remete a muitas coisas, dentre elas o amor à causa, seja ela qual for, desde que faça bem ao mundo. Sua vida é um enredo de amor à família e respeito ao chão em que se pisa. Trata-se do novo mundo que seus passos firmes no solos íngremes moldam a cada dia que sobrevivemos.

Marielle é sobre a vontade de empurrar os nossos para adiante com um foco: projetar a favela como união e transgressão política em comunidade. É demolir as estruturas arcaicas da branquitude.

Os 41 anos de Marielle Franco nos colocam num processo de felicidade que seu sorriso aberto levará por décadas e centenários para várias partes do Brasil e do mundo, onde quer que chegue, representando uma galera aí que pertenceu aos humilhados e ofendidos, mas que hoje é do barulho. E sim, esse sorriso barulhento aí, escancarado ao mundo, é o maior exemplo das centenas de fatos, posturas e conquistas que incomodam quem não gosta da felicidade do povo preto e tão pouco está interessado em fazer a alternância de poder necessária na política, nos partidos, movimentos sociais e até coletivos de mídia, essa é a turma do sono profundo e que se for para atrapalhar ou fortalecer o racismo que permaneçam inertes em suas zonas de conforto, mas não atrapalhem o legado de Marielle. 

Semear

Dizer que Marielle é semente, significa colocar em prática um projeto bom para acabar com um projeto mal: o de extermínio da população negra. Significa darmos asas a PANE ANTIRRACISTA, uma plataforma que vai construir, através do Instituto Marielle Franco, uma nova mobilização do sistema político no Brasil. Essa é a primeira eleição municipal sem a presença física de Marielle. Mas a PANE pretende derrubar o que até hoje foi “lógica” colocando no sistema político a responsabilidade da população negra que quer alterar essa lógica irresponsável e racista. 

Marielle foi autora de sete importantes projetos de lei, que representavam grandes mudanças nas vidas de mulheres, crianças e da comunidade LGBTQIA+ carioca.

O PL 17/2017 do Espaço Coruja, programa que garante creches noturnas aos filhos de famílias que estudam à noite; o Dossiê Mulher Carioca, que visa garantir dados mais detalhados sobre crimes de violência contra a mulher na cidade do Rio de Janeiro; a Campanha Permanente de Conscientização e Enfrentamento ao Assédio e à Violência Sexual são alguns dos exemplos.

Há 15 dias de seu assassinato, no dia 28 de fevereiro de 2018, Marielle Franco assumiu a relatoria de uma comissão criada na Câmara Municipal do Rio para acompanhar a Intervenção Federal na Segurança Pública do Rio, se tornando a responsável pela fiscalização dos militares nas favelas do Rio e, como socióloga, faria linha dura a qualquer descontrole. Não há caminho de retorno sobre os frutos que a história de Marielle entrega para fortalecer a luta antirracista. Eu sou porque nós somos é o mantra diário de nós mulheres e homens negros no país e não, não admitiremos sermos interrompidos em nossa construção.

Marielle Franco, 41 anos
Foto: Matheus Alves / Jornalistas Livres

Katia Passos tem 44 anos, é mãe de duas meninas de 19 e 14 anos, ativista em Direitos Humanos, jornalista da bancada do PT na Alesp, fundadora dos Jornalistas Livres, integra o Núcleo de Acompanhamento de Políticas Públicas em Comunicacão, da Fundacão Perseu Abramo e atualmente constrói um projeto literário em homenagem e defesa do legado de Marielle Franco.

Matheus Alves, 22, é fotojornalista freelance baseado em Brasília (DF). Tem seu trabalho dedicado a documentar Movimentos Populares de luta pela terra e direito à cidade. Premiado pelo Concurso Fotográfico “Combater os Retrocessos: Existir e Resistir à Retirada de Direitos”, promovido pelo Fundo Brasil de Direitos Humanos em 2019. É militante do Levante Popular da Juventude e colabora com a rede Jornalistas Livres.

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violência

Viatura da PM apoia atentado a bomba contra casa de professora

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Depois da explosão causada por fascistas integralistas na porta da produtora Porta dos Fundos, no Rio de Janeiro, em dezembro de 2019, mais um atentado a bomba foi realizado nesse domingo, 28 de junho, contra um alvo identificado com a esquerda. Desta vez o alvo foi a residência da professora Marienne Guioto, presidenta do PT de Nuporanga, interior de São Paulo. A fuga dos terroristas do local, numa viatura da Polícia Militar, foi flagrada em vídeo, segundo a deputada Maria Izabel Azevedo Noronha, a professora Bebel, do PT de São Paulo.

Veja abaixo o vídeo e as informações publicadas em reportagem de Plinio Teodoro para a Revista Fórum:

Vídeo: Viatura da PM participa de atentado a bomba contra casa de professora, presidenta do PT de Nuporanga

Imagens mostram homem entrando em viatura após atentado contra a casa da professora Marienne Guioto, presidenta do PT de Nuporanga

Uma viatura da Polícia Militar aparece em um vídeo divulgado nas redes sociais que mostra um atentado à bomba contra a professora Marienne Guioto, presidenta do PT de Nuporanga, que faz parte da Região Metropolitana de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo.

Segundo informações divulgadas pela deputada Maria Izabel Azevedo Noronha, a professora Bebel (PT-SP), o atentado aconteceu na madrugada deste domingo (28), “onde a casa de nossa colega da APEOESP e Presidenta Municipal do Partido dos Trabalhadores, professora Marienne Guioto, foi atacada com bombas atiradas por pessoas utilizando uma viatura da Polícia Militar, como mostram imagens de vídeo”.

“Exigimos do Governador João Doria a completa elucidação desses fatos, que os responsáveis sejam identificados e punidos na forma da lei, e que sejam asseguradas condições de segurança para a professora Marienne”, escreveu a deputada ao divulgar o vídeo.

Assista:

 

 

 

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