Exclusivo: para especialista, Evo Morales tinha o direito de disputar sua quarta eleição

Fotos: Leonardo Milano/Jornalistas Livres

No recente Golpe de Estado ocorrido na Bolívia, a direita e a extrema direita  alegaram que Evo Morales não respeitou a democracia e o desejo do povo, ao concorrer a seu quarto mandato. Alegam também que houve fraude nas eleições, e que esse acúmulo de supostas irregularidades seria o fator desencadeador do Golpe, embora não tenham apresentado provas acerca dessas acusações.

Para esclarecer essas questões, procuramos o especialista em constitucionalismo latino-americano, Gladstone Leonel, que concedeu aos Jornalistas Livres uma entrevista exclusiva.

“A OEA foi uma instituição legitimadora do golpe. Hoje dá pra entender os motivos que fundamentaram o rompimento da Venezuela com a OEA.”

“O que Evo fez é o que qualquer cidadão que busca uma demanda deve fazer em um país pautado no Estado de Direito e na repartição de poderes: recorreu ao Judiciário. Não foi uma manobra, foi um direito”

 

JL – A oposição a Evo Morales o acusa de ter feito uma manobra para burlar o plebicito que ele perdeu. Muita gente, que não é de direita, tem dúvidas sobre isso e acredita que Evo deveria ter respeitado o resultado do plebicito. O que você pensa sobre isso?

GL – O que Evo fez é o que qualquer cidadão que busca uma demanda deve fazer em um país pautado no Estado de Direito e na repartição de poderes: recorreu ao Judiciário. Não foi uma manobra, foi um direito, garantido por um devido processo legal e um julgamento de um poder próprio, o Judiciário. Certamente, algumas pessoas podem discordar da decisão, mas trata-se de análise própria do Tribunal Constitucional Plurinacional que considerou devido a possibilidade de reeleição e compatível com o corpo constitucional.

“A Bolívia, como o Brasil, possui uma elite extremamente atrasada, colonizadora e racista.”

JL – O golpe que ocorreu na Bolívia tem um forte caráter racista e misógeno. Viu-se nas ruas gente branca – em sua maioria, de classe média xingando os indígenas, dizendo coisas como “a Bolívia é nossa, chucros”. Você acha que esse ódio tem similaridades com o golpe recente que ocorreu no Brasil?

GL – A Bolívia, como o Brasil, possui uma elite extremamente atrasada, colonizadora e racista. A diferença é que na Bolívia está uma parcela muito pequena de brancos, se comparado aos indígenas e mestiços. Contudo, exceto no governo Evo, essa elite sempre teve o domínio político do país. Não é uma surpresa desrespeitarem o resultado das urnas através de um golpe. O período de maior estabilidade foi durante os governos de Evo. A história da Bolívia é a história dos golpes de Estado, mais de 100 desde sua independência.

“Certamente, contarão com o apoio internacional de países alinhados com o golpismo, inclusive os Estados Unidos, para se manterem no poder”

JL – Como você acha que ficará a Bolívia, após o golpe de Estado? Há chance de o MAS voltar ao poder?

GL – Chance há, mas ninguém dá um golpe desse para perder uma eleição na sequência. Certamente, contarão com o apoio internacional de países alinhados com o golpismo, inclusive os Estados Unidos, para se manterem no poder. Somente uma movimentação brusca da sociedade civil poderá garantir uma mudança de rumo no sentido da retomada do MAS à presidência da Bolívia.

“Não existem golpes na América Latina sem o apoio dos Estados Unidos.”

JL – Você acredita que há participação do governo brasileiro e dos EUA no golpe?

GL – Não existem golpes na América Latina sem o apoio dos Estados Unidos. Seria uma inocência secundarizar o papel do imperialismo nos dias de hoje. Isso não só é notório, como explicitado pelos presidentes que reconheceram o golpe no momento que se iniciou, e o fazem isso não só na Bolívia, como em outros países como a Venezuela.

“Ela (OEA) só foi a centelha que animou a elite golpista a consumar o golpe.”

JL – A OEA disse que havia indícios de irregularidades nas eleições de outubro, mas não apresentou provas. Qual foi o papel da OEA (Ordem dos Estados Americanos) no golpe?

GL – A OEA foi uma instituição legitimadora do golpe. Hoje da pra entender os motivos que fundamentaram o rompimento da Venezuela com a OEA. No caso da Bolívia, ela colocou em cheque as eleições sem apresentar prova de fraude. O governo Evo errou ao considera-la apita para uma auditoria, uma vez que ela já tinha se posicionado de forma a tumultuar o processo, fazendo críticas públicas e tendo um julgamento parcial sobre o processo. Não estava apta a auditar nada. Sequer teve tempo! Ela só foi a centelha que animou a elite golpista a consumar o golpe.

“Caso o governo Bolsonaro continue implementando essas medidas anti-populares, em algum momento e de alguma forma, essa conta chegará”

JL – Você acredita que, assim como está acontecendo com outros países da América Latina, O Brasil possa entrar em convulsão social, por conta da política ultra liberal de Bolsonaro?

GL – Difícil fazer um diagnóstico e comparar as situações. Existem muitos aspectos distintos, como a formação do povo, alterações constituintes, dentre outros. Mas todas essas insurreições podem ser um sinal de que a insatisfação popular tem crescido conforme cresce o descrédito com o governante. As redes sociais potencializam e aceleram essas insatisfações, além de serem usadas como formas de manipulação. Caso o governo Bolsonaro continue implementando essas medidas anti-populares, em algum momento e de alguma forma, essa conta chegará, seja com maiores mobilizações ou mais provavelmente, maior repressão ao povo.

JL  No seu ponto de vista, qual o papel da internet e das redes sociais na atual crise que se abateu sobre os países da América Latina?

GL – Já adiantei isso na resposta anterior. Acredito que elas estejam acelerando e potencializando alguns processos, além de ser um formidável instrumento de manipulação.

“Quando você tem uma pluralidade de meios, a notícia torna-se mais difícil de ser manipulada. Quanto mais concentrada, maior a manipulação.”

JL – Como combater as fake news, que cada vez mais vêm influenciando resultados de eleições?

GL – Um dos caminhos de combate às fake news é uma maior democratização dos meios de comunicação. Quando você tem uma pluralidade de meios, a notícia torna-se mais difícil de ser manipulada. Quanto mais concentrada, maior a manipulação. Enquanto no Brasil recebemos a notícia de 5 grandes grupos empresariais de comunicação e uma enxurrada de mensagens virtuais, sem qualquer regulação ou verificação de veracidade, na Argentina se tem na TV aberta canais de TV sobre a América Latina (Telesur), Rússia, Síria , dentre os locais. A notícia certamente chega muito mais qualificada ao receptor.

“Esse foi o grande erro do governo do PT. Tirou milhões da miséria sem politização social.”

JL – Qual a importância de se politizar as camadas sociais que ascenderam durante governos progressistas?

GL – Total. Esse foi o grande erro do governo do PT. Tirou milhões da miséria sem politização social. Isso fez com que parte daqueles que saíram, voltassem a miséria em governos como de Bolsonaro, sem capacidade para resistirem a isso. A dificuldade de comunicação do governo com o povo também foi um sinal dessa despolitização, pois o povo amparado pelo discurso do consumo e da meritocracia achava que os êxitos na vida eram fruto do esforço próprio e não de programas de governo que possibilitavam isso. A proposta inicial do Fome Zero com Frei Betto possuía essa preocupação, algo que foi escanteado na implementação do Bolsa Família. Sem politização social e democratização da mídia, Judiciário e Forças Armadas, como ocorreu na Venezuela, dificilmente os governos populares na América Latina sobreviverão muito tempo aos golpes de Estado.

  • Gladstone Leonel da Silva Junior é Doutor em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília. Pós-doutor em Direitos Humanos e Cidadania pela UnB. Professor do Programa de Pós-graduação em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense. Morou na Bolívia e escreveu o livro “Novo Constitucionalismo Latino-americano: um estudo sobre a Bolívia”.

Leia tudo que publicamos sobre as eleições e o Golpe na Bolívia.

 

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