Direitos Humanos
DOSSIÊ EXCLUSIVO: Corregedor que entregou reitor à PF já foi condenado por calúnia e difamação
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7 anos atrásem
por
Raquel Wandelli
Em um dos casos, Hickel foi condenado pelo mesmo método que usou contra Luiz Cancellier: forjou uma denúncia de ameaça com porte de arma, acionou uma operação policial espetaculosa e ainda apresentou contra a vítima queixa-crime de obstrução à ação policial
Sem poder suportar a demolição moral que sofreu a partir das armadilhas de uma personalidade reincidente na prática da calúnia e da perseguição, o reitor Luiz Carlos Cancellier morreu aos 59 anos. Ou melhor, desistiu de viver ao sentir que não havia saídas para a trama em que foi encurralado dentro dos aparatos do Estado. O destino do reitor e da universidade poderiam ser outro se os antecedentes criminais e o perfil do seu principal acusador tivessem sido previamente levantados e viesse à tona o depoimento de suas vítimas. Antes de a Justiça e a Polícia Federal darem crédito à rede de intrigas e acusações que empurraram o reitor para um beco escuro, sem esperança de reivindicar sua inocência aos “ouvidos moucos” dos aparelhos punitivos, o corregedor geral da UFSC, Rodolfo Hickel do Prado, 58 anos, já respondia por inúmeras denúncias de calúnia, difamação, ameaças, intimidações, agressões físicas e morais. Em seis processos localizados pela reportagem, nos quais em ao menos dois ele foi condenado em instância criminal e cível, um traço do seu caráter permanece: o abuso de autoridade de quem se aproveita da influência e posição para lançar falso testemunho e intimidar pessoas inocentes.
Atropelado em sua tentativa de acomodar as divergências políticas internas e colocar em prática seu projeto conciliador de universidade, o reitor nunca teve acesso à ficha criminal do servidor da Advocacia Geral da União (AGU), que foi nomeado para o cargo de corregedor da UFSC um dia depois da sua vitória nas urnas. Antes de ser conduzido à estrutura de gabinete pela ex-reitora Roselane Neckel, candidata derrotada à reeleição, ninguém sabia quem era de fato Rodolfo Hickel do Prado. Nem ela mesma, de quem ele teria se aproximado como promessa de manter controle estratégico num território eleitoralmente perdido, valendo-se do apelo fácil do combate à corrupção. Os objetivos da célula de fiscalização que Hickel viria a assumir eram os mais nobres possíveis: “A criação da Corregedoria dá mais visibilidade e instrumentaliza a execução de processos que zelam pelo bom encaminhamento da administração e sua transparência”, anunciou a então reitora quando a criação do órgão foi aprovada pelo Conselho Universitário, no dia 19 de agosto de 2014. Só que não. Depois da sua nomeação, em 4 de maio de 2016, o obscurantismo, a perseguição pessoal e o terror psicológico começaram a minar a vida da comunidade universitária.

Afastado da universidade, cercado pelo corregedor por todos os lados e sem chances de provar inocência, reitor preferiu o fim. FOTO: Divulgação
Violada em sua autonomia e mergulhada em uma crise política e emocional sem precedentes, a universidade poderia ter sido preservada, caso a ficha criminal do novo corregedor tivesse sido minimamente investigada, como pede um cargo dessa natureza. Todos os processos que mostram conduta de desequilíbrio, falso testemunho e agressividade poderiam ter sido localizados no site do Tribunal de Justiça do Estado pela Superintendência da Corregedoria Geral da União. “Com essa ficha corrida ele nunca poderia ter sido nomeado para cargo nenhum”, afirma o ex-procurador da UFSC Nilton Parma. “A Corregedoria Geral da União deveria ter investigado”.
A morte do reitor tem sido amplamente apontada como culminância da criminalização generalizada que usa o combate necessário à corrupção e às irregularidades nos órgãos federais para condenar homens públicos antes de serem julgados. “Em nome da transparência e do controle social, dirigentes públicos têm sofrido toda sorte de humilhações e pré-julgamentos por segmentos dos órgãos de controle, Justiça Federal, Polícia Federal e da mídia”, diz nota do Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica. O manifesto do Conif reconhece os avanços no controle social das instituições públicas, mas alerta sobre os riscos que o desrespeito às instituições democráticas e aos direitos humanos impõem ao Estado brasileiro. Trata-se, segundo o Manifesto dos Reitores das Redes Federais, de “uma campanha sórdida para o descrédito das instituições, dos servidores e dos gestores públicos”.
Nessa campanha de “sepultamento do Estado de Direito” que sepultou o próprio reitor e a possibilidade de paz na comunidade universitária, o corregedor da UFSC teve, com sua conduta pessoal e seus antecedentes criminais escondidos da comunidade, um papel chave. O resultado é angústia, sofrimento coletivo, acirramento das divisões políticas e um luto vivido em guerra. A reitoria está esvaziada como um cemitério, com 16 renúncias de primeiro escalão, e um corregedor que age sozinho, depois de os outros dois eleitos também se exonerarem, assim como a quase totalidade da equipe de assessores, como vamos detalhar mais adiante.
INVASÃO MILITAR A DOMICÍLIO BASEADA EM FALSA DENÚNCIA
Numa primeira investigação, verificamos que Hickel deixou de ser réu primário já em 7 de novembro de 2011, quando foi condenado pela Justiça Criminal pela prática continuada do crime de difamação. O processo, pelo qual foi sentenciado a quatro meses e 24 dias de detenção, além de pagamento de multa, refere-se ao mesmo crime três vezes repetido contra o procurador de Justiça estadual, Ricardo Francisco da Silveira, falecido em 2013, pouco antes de receber a ação indenizatória no processo cível. Depois de promover uma espetaculosa e ilegal invasão da Polícia Militar à casa do seu amigo, o professor gaúcho Flávio Cozzatti, Rodolfo Hickel imputou-lhe a falsa acusação de “obstruir a ação policial”, um padrão recorrente nas suas acusações. Consta dos autos que, ao comandar a operação no condomínio Forest Park, no bairro de Coqueiros, em Florianópolis, o servidor da AGU e então síndico do prédio referiu-se a ele para os policiais nos seguintes termos: “Esse procuradorzinho de merda, vem aqui querendo dar carteiraço”. (Processo nº 082. 10.004574-1 Juizados Especiais Criminais da Capital).
O caso, que se desdobrou em vários processos, parece um ensaio em menor escala da cilada policial que Hickel armaria seis anos mais tarde para prender o reitor, vítima fatal da difamação. Logo depois de retornar de Joinville, onde atuava pela AGU, o corregedor conseguiu se eleger síndico do condomínio de Coqueiros. “Depois de eleito, ele começou a botar terror em todos os moradores e a implicar com o charuto ou o cachimbo que eu fumava na sacada e daí começou um processo de perseguição”, conta Flávio Antonio Cozzatti, ainda morador do edifício. Conforme os autos, Hickel cortou a fiação da TV a cabo do vizinho, segundo foi comprovado com laudo da empresa Viamax. “Abri a caixa e cortei o resto dos fios. Subimos para dormir quando formos surpreendidos pelo aparato policial em nosso lar”, narra o professor. Como justificativa do chamado, Hickel alegou que estava sendo ameaçado de morte com arma de fogo pelo vizinho.
No dia 3 de junho de 2010, mais de cinco viaturas com oito homens da Polícia Militar armados, sendo três do Bope portando fuzis e metralhadoras, arrombaram e invadiram o apartamento do professor Cozzatti. Quando viu o síndico alcançar uma escada para que os policiais subissem pela sacada do seu apartamento, o professor pediu à mulher que chamasse por telefone o socorro do irmão (como ele se refere ao procurador Ricardo da Silveira dentro e fora dos autos), que acabara de deixar a residência. A cena narrada nos autos logo remete à humilhante prisão do reitor Cancellier na manhã do dia 14 de setembro.

Nos autos, procurador conta que Flávio foi detido com uma gravata por homens do Bope
Em frente à garagem do prédio, interditada pelos policiais, o procurador Ricardo da Silveira viu a movimentação dos policiais e soube por eles que estavam fazendo um “flagrante de ameaça à mão armada” na casa da família que considerava como sua. Chegou a tempo de presenciar os policiais arrebentando a porta com armas em punho, puxarem Flávio Cozzatti pelo braço e aplicarem nele uma gravata na frente da esposa e dos dois filhos (um rapaz de 24 anos e uma adolescente de 14). Foi quando tentou intermediar a situação, perguntando se havia mandado de busca em domicílio.
Nos autos, o procurador, já falecido, deixou o seguinte testemunho: “Meu irmão estava prestes a ser espancado pelos policiais quando eu cheguei”. Tendo o síndico como guia da operação, os agentes responderam que não precisavam de mandado porque se tratava de um flagrante. Um deles, da corporação do BOPE, dirigiu-se a Flávio ameaçando-o com um par de algemas no rosto: “Colabora, professorzinho de merda!!!! Se não, te algemo e toda a tua família, e levo para a Delegacia presos”, diz o diálogo reproduzido no processo. Ficou comprovado, na tentativa de flagrante, que não havia arma em posse da vítima. “Nunca tive. Sempre me manifestei publicamente contra o armamento”, atesta o professor. Flávio e Ricardo tinham na época 50 anos, por coincidência, a mesma idade de Rodolfo.
Ainda conforme o testemunho nos autos, Cozzatti só não foi preso algemado porque o procurador alegou que seria uma ilegalidade contra uma pessoa rendida sem apresentar qualquer resistência. “Depois soubemos que Rodolfo Hickel do Prado se utilizou do artifício de ser filho de um oficial da PM”, conta Flávio. O reitor Cancellier, que era também um jurista, não teve a mesma sorte. Algemado nas mãos, acorrentado nos pés, sofreu abusos vexatórios ainda maiores: foi despido durante duas horas na frente dos outros presos em um presídio de alta periculosidade, vestiu uniforme laranja e foi submetido a exame íntimo anal, antes de vestir o uniforme laranja, conforme denunciado pelo desembargador Lédio Rosa de Andrade em célebre discurso na cerimônia do Conselho Universitário que o homenageou um dia após o suicídio. Lédio e outros juristas apontaram o amigo Cau como primeira vítima fatal do novo estado de exceção.

Antecedentes criminais de Hickel anexados ao processo por crime de trânsito revelam outro crime de trânsito ocorrido no Norte da Ilha e com agressão física
No caso antecedente de difamação e abuso de autoridade, testemunhas ouviram Hickel referir-se a Ricardo com o mesmo desprezo, como “um procuradorzinho de merda”, e de acusá-lo de “barrar o trabalho dos policiais”, sempre segundo os autos. A mesma acusação seria levantada contra o reitor, capaz de fazer a delegada Érika Marena pedir à juíza federal Janaína Cassol Machado a sua prisão temporária e o seu afastamento da universidade, mesmo sem antecedentes criminais e sem processo legal constituído contra Cancellier, que sequer foi citado na investigação.
Foi o próprio Hickel quem entrou primeiro com representação na Corregedoria Geral do Ministério Público contra o amigo-irmão de Cozzatti, acusando-o de interdição do trabalho da polícia e da justiça, exatamente como fez com o reitor. Mas diferente da atitude da delegada e da juíza, o corregedor geral do MP na época, Paulo Ricardo da Silva, não se deixou engambelar pelas intrigas: não só mandou arquivar o processo por julgá-lo improcedente, como deu uma canetada no acusador, no dizer do jargão judicial. “Na época avaliei que não havia nenhum indício de que o acusado tivesse dado um carteiraço, como ele alegava, nem motivos para a prisão”, comenta Paulo, hoje procurador de Justiça, que fez o comentário a partir do processo localizado no site do Tribunal de Justiça e dos documentos fornecidos por Cozzatti à reportagem.
Ainda segundo os depoimentos nos autos, Cozzatti foi levado de casa aos empurrões, metido numa viatura com três homens da PM e humilhado na frente de “um corredor polonês de vizinhos de rua espantados e indagando os motivos da prisão”. O professor foi levado à delegacia de polícia de Coqueiros e do centro da cidade, onde Hickel iniciou um processo de queixa-crime contra ambos. Mas o mais perverso estaria por vir no dia seguinte à invasão: O então síndico espalhou cartazes de edital pelo Forest Park, convocando os condôminos para uma reunião em que deveriam apreciar as atitudes do professor e aplicar-lhe multa. Os pretensos crimes cometidos por Cozzatti estavam discriminados em letras maiúsculas: ameaça de morte com arma de fogo; depredação do patrimônio do prédio; interdição do trabalho da polícia. O futuro corregedor da UFSC também espalhou cartazes pelo condomínio anunciando que estava proibida a entrada de Ricardo, que era coproprietário do apartamento de Flávio Cozzatti, do qual tinha chave e controle remoto. O processo contra os policiais lançados pelo síndico à operação foi arquivado pela justiça militar, mas os PMs foram condenados na justiça comum em 15 de julho de 2014 por abuso de poder e receberam anotação na ficha funcional, conforme sentença que acessamos. (Processo 00000959-56.2012.8.24.0082)
Os “amigos-irmãos”, cuja aliança começou aos 18 anos no movimento estudantil, lutando contra a ditadura militar, em Porto Alegre, entraram com ações individuais de indenização em 18 de março de 2013. Hickel foi condenado na vara cível a pagar R$ 15.000,00 pelos danos morais causados ao procurador e recorreu alegando não ter dinheiro. Ricardo solicitou que fosse anexado o imposto de renda e contra-cheque de servidor da AGU e estavam acordando a forma de pagamento quando a sentença foi extinta com o seu falecimento repentino, de “mal súbito”, como consta no atestado de óbito, em outubro de 2013. O procurador não deixou herdeiros. (Ver Processo nº 0004770-92.2010.8.24.0082 – 2ª Vara Cível da Capital). Enquanto isso, a ação cível de Cozzatti prosperou para fase final e ele abriu outros processos que estão em grau de recurso por parte de Hickel. (Processo nº 0002768-18.2011.8.24.0082, 2ª Vara Cível do Continente). Entre eles, está a acusação de ter sido destituído pela assembleia do condomínio da função de síndico pelos desmandos praticados. E também de não ter até hoje prestado contas do dinheiro gasto em sua gestão, além de ter tentado cobrar os custos do processo calunioso que promoveu da conta dos condôminos, sempre segundo o professor. “Esse homem é um crápula perigoso, que se acostumou a aterrorizar as suas vítimas, em geral pessoas que discordam dele”, diz. “O meu desconforto é pouco; o que me agride é essa situação quando uma pessoa desrespeita as regras mínimas de convivência, é mau, calhorda e continua agindo de forma impune. O reitor foi a primeira perda, quando será a próxima?”
CRIME DE TRÂNSITO E CARTEIRAÇO
Desde 7 de abril de 2017, Hickel está sendo processado também pelo Ministério Público do Estado de Santa Catarina por prática de crime de trânsito, sob suspeita de fuga. O processo foi gerado a partir de registro de ocorrência do dia 23 de março de 2016, às 17 horas, quando foi autuado por “direção perigosa”, considerada “imprudente” e “totalmente irresponsável” pelas testemunhas. Poucos dias antes da posse como corregedor geral, Hickel foi flagrado por uma viatura com quatro policiais no seu Renan Fluence, trafegando na contramão em alta velocidade, em via perigosa e área de risco, na rua Marco Aurélio Homem, na entrada do Morro da Serrinha, em Florianópolis. Foi denunciado pelo juiz por colocar em risco a vida “da coletividade”.
Hickel foi surpreendido por quatro policiais do DEIC, Arthur de Oliveira Rocha, Renato Gamba Torres, Thiago Elpídio Cardoso e Filipe Bueno da Silva, que o viram ultrapassar vários veículos, inclusive, a viatura policial. Segundo o testemunho de Arthur, ao ser parado pela viatura com a sirene e as luzes ligadas, o advogado apresentou sua carteira da OAB e só mostrou a CNH quando o pedido foi reiterado. O futuro corregedor justificou que estava ultrapassando um caminhão em manobra de conversão à direita da pista. Todavia, após verificar imagens das câmeras de residências locais, os policiais registraram que “a versão do condutor era inverídica, pois não havia nenhum caminhão conforme fora mencionado”.
As testemunhas e os autos afirmam o que as imagens das câmeras constataram: “O motorista estava alterado, falando em alto e bom som que iria falar com todos os policiais somente na corregedoria”. Registram ainda o “comportamento alterado do condutor, a esbravejar que isto não vai ficar assim e que iria até a corregedoria da polícia civil relatar o caso”. As testemunhas declaram que o motorista “não lhes dirigia mais a palavra após a chegada dos policiais militares, afirmando em tom ríspido que iria provocá-los na Corregedoria”. Depois de Hickel ter assinado o termo circunstanciado na Delegacia de Investigações Criminais (Deic), em 27 de abril deste ano, o processo foi encaminhado para o Juizado Especial Criminal da Comarca. Uma audiência está marcada para novembro. (Processo nº 0001348-41-2017.8.24.0090 Juizado Especial Cível e Criminal da Trindade, Florianópolis).
Como de hábito, Hickel entrou com ação de notícia-crime na Justiça por abuso de autoridade. Todavia, dessa vez, os policiais foram salvos pelas câmeras de vigilância dos vizinhos, que comprovaram de quem foi o abuso, inclusive o trecho percorrido na contramão pelo futuro corregedor e a sua tentativa de intimidar os policiais. Ainda assim, Hickel recorreu e o Ministério Público se manifestou de novo pelo arquivamento.
INVASÃO DA CASA DO VIZINHO HÁ SETE ANOS FOI ENSAIO DE ABUSO DE PODER
DA PRISÃO ILEGAL AO ESVAZIAMENTO DA UNIVERSIDADE

Gabinete do reitor sepultado pelos agentes do estado de exceção
A perseguição de Hickel ao reitor começou quando ele lhe solicitou que tivesse mais cuidado com as pessoas da comunidade. Cancellier recebia diariamente queixas de servidores, professores e alunos se dizendo tratados com truculência pelo corregedor, conforme seu chefe de gabinete, Áureo Moraes. “Não se pode tratar alguém sob suspeita que mais tarde pode não ser confirmada como se fosse uma sentença de condenação. É preciso ter cortesia e civilidade com todas as pessoas, não importa a que classe pertençam”, pronunciou-se o jornalista José Hamilton Ribeiro, que esteve na UFSC no dia do falecimento para dar uma palestra no Curso de Jornalismo. “Isso seria a volta à Ditadura Militar”, completou.
Quando estava prestes a ser denunciado por um pedido de Processo Administrativo Disciplinar, movido por um professor que ele teria ameaçado e desacatado, Hickel acusou Cancellier de interdição do trabalho da Polícia Federal na Operação Ouvidos Moucos. A denúncia motivou uma emboscada militar, com um contingente de 105 homens da Polícia Federal de várias partes do Brasil, que algemou e prendeu o reitor ainda em casa, de pijama, quando nem havia iniciado o dia de trabalho na universidade.
Na TV Globo, Folha de S. Paulo e outras mídias comerciais, a prisão cinematográfica foi justificada pelo roubo de R$ 80 milhões de verbas do Ensino a Distância, correspondente à verba total do Programa Universidade Aberta. Soube-se tardiamente que o montante dos desvios, ainda não comprovados, ocorridos dez anos antes da gestão de Cancellier e sem nenhum envolvimento pessoal dele, não passam de R$ 500 mil. Hickel, de fato, denunciou o reitor por tentativa de obstrução dos trabalhos, mas a divulgação maliciosa da verba total do programa, como se fosse o valor do desvio sob suspeita, continuou a ser criminosamente espalhada após corrigida. E continua a sê-lo mesmo após o suicídio.
Na UFSC e nos meios jurídicos, não faltam notícias de professores, servidores, estudantes e profissionais da área jurídica tratados como suspeitos, intimidados ou insultados pelo corregedor no trato profissional. “Ele exerce o poder de forma cruel e excessiva”, diz Nilto Parma, advogado do professor de Administração Gerson Rizzatti Júnior na representação que move contra Hickel. Apresentada em 5 de julho deste ano, a denúncia foi retida pelo próprio reitor para não gerar conflitos. Com o seu falecimento e a pressão do apelante, deu origem a uma portaria determinando o seu afastamento por 60 dias para abertura de Processo Administrativo Disciplinar, assinada pelo chefe de gabinete Áureo Moraes. Sua revogação pela reitora Alacoque Lorenzini Erdmann é hoje motivo de grave crise institucional na universidade. (Veja o processo na íntegra ao final do dossiê)
Considerada uma atitude de covardia e traição à autonomia universitária, a anulação desencadeou uma renúncia em massa gradual. O primeiro a pedir exoneração foi o próprio chefe de gabinete, acompanhado nos dias seguintes por 16 ocupantes de cargos de primeiro escalão, num total de 20, incluindo pró-reitores e secretários com status de pró-reitor. Pediram demissão os seguintes gestores, todos confirmados hoje pela manhã à reportagem: Álvaro Lezana, diretor geral do gabinete; Gelson Albuquerque, assessor institucional; Pedro Manique, pró-reitor de Assuntos Estudantis; Jair Napoleão, pró-reitor de Administração; Rogério Cid Bastos, pró-reitor de Extensão; Sérgio Freitas, pró-reitor de Pós-graduação; Vladimir Fey, secretário de Planejamento; Cláudio Amante, secretário de Inovação; Carla Búrigo, pró-reitora de gestão de pessoas; Alexandre Marino, pró-reitor de Graduação; Luiz Henrique Cademartori, secretário de Aperfeiçoamento Institucional; Gregório Varvakis, secretário de Educação a Distância; Edison Souza, secretário de Esportes; Paulo Pinto da luz, secretário de obras e Lincoln Fernandes, secretário de Assuntos Internacionais.
Em reunião interna com os pró-reitores, a medida foi atribuída por Alacoque a ameaças de processo por improbidade administrativa que teria sofrido do Ministério Público Federal e da Superintendência da Corregedoria Geral da União. O afastamento de Hickel e a permanência do PAD para investigar os desvios de conduta do corregedor é um ponto de honra para todos esses dirigentes. Eles acreditam que a partir do gesto de coragem do professor Gerson, muitas outras vítimas dos excessos do corregedor vão romper o silêncio. “Vai ser como o caso do médico Abdelmassih: uma denúncia moverá muitas outras”, aposta o ex-procurador.
Depois da forte reação contra a derrubada da portaria, a reitora em exercício encaminhou o PAD à consulta na Corregedoria Geral da União, algo visto pelos insurgentes como entregar o julgamento ao próprio carrasco. Uma comissão de apuração foi definida pelo Conselho Universitário na terça-feira (24), com o objetivo de investigar os acontecimentos relativos à Operação Ouvidos Moucos e às circunstâncias que levaram ao suicídio do reitor. Em entrevista de vídeo ao site Notícias da UFSC, na sexta-feira, a reitora afirmou que essa comissão tem 30 dias prorrogáveis por mais 30 para realizar o seu trabalho e clamou pela pacificação da universidade. Enquanto Alacoque gravava a entrevista, uma reunião dos gestores no Centro de Cultura e Eventos decidia pela debandada geral dos que ainda estavam indecisos.
A debandada de integrantes dos órgãos de gabinete, contudo, começou logo com a posse de Hickel. Para se ter uma ideia da crise instaurada, os dois corregedores eleitos para compor a corregedoria sob a chefia dele pediram afastamento por não suportarem a sua conduta intimidadora e destemperada, conforme o ex-chefe de gabinete da reitoria, Áureo Moraes. Entre eles estão Ronaldo David Vianna Barbosa, um crítico dos seus métodos, que deixou a corregedoria poucos dias após sua nomeação e Marcelo Aldair de Souza, que também pediu para ser removido de setor. Ambos chegaram a ir ao corregedor Geral da União, Fabrício Colombo, para reclamar dos procedimentos abusivos de Hickel. “Além da contumaz truculência, a principal queixa é o fato de o corregedor tratar suspeitas que ele mesmo levanta como sentenças de condenação”, diz um servidor que era lotado na Procuradoria Geral e também pediu pra sair.

Com pedido de exoneração dos dois corregedores eleitos (à esquerda de Hickel, ao centro), equipe do novo órgão de controle restringe-se hoje ao chefe. Foto: Agecom/UFSC.
Além de Ronaldo e Marcelo, quatro servidores alegaram não suportar as grosserias e intimidações do corregedor e solicitaram ao gabinete remanejamento para outro setor da UFSC, entre eles duas servidoras com cinco anos de trabalho na procuradoria, e outros dois auxiliares recém-designados para o novo órgão. Uma delas é Karina Jansen Beirão, bacharel em Direito da Procuradoria, que já conhecia a atuação do inquisidor quando vinha à universidade orientar a criação do órgão. Ao saber da escolha de Hickel para o cargo, não pensou duas vezes: saiu em licença-maternidade e no retorno pediu remoção. A outra, Ana Peres, administradora, suportou dois meses e pediu para sair, conforme informações do ex-chefe de gabinete, Áureo Moraes, a quem alegou inclusive assédio sexual e moral, que foi meses depois publicamente relatado por ela em assembleia do Sindicato dos Trabalhadores da UFSC, conforme Dilton Rufino, dirigente da entidade. Até o estagiário de jornalismo do gabinete, Marcus Vinícius dos Santos se demitiu. Hoje, Hikel comanda uma corregedoria solitária, na qual é chefe dele mesmo, mas feitor de todos os que discutem suas ordens, como o professor Rizzatti, ex-colaborador da corregedoria.
Na segunda-feira (23), único dia em que ficou afastado pela portaria, Hickel não interrompeu a fome inquisidora: continuou a fazer intimidações, conforme servidores da Reitoria. Ao todo, ele já emitiu três portarias determinando a instauração de Processos Administrativos Disciplinares contra professores, servidores e alunos de diversos cursos, sem sindicância anterior e com afastamento preventivo. Os investigados foram suspensos de todas as suas atividades na UFSC e proibidos de entrar no campus, incluindo um professor já com tempo de aposentadoria e longa ficha de serviços prestados à comunidade científica. “O problema é que ele nunca dá motivo para as intimidações”, diz Rizzatti. A falta de sindicância foi um dos argumentos utilizados pela reitora em exercício para anular a instauração do PAD que investiga as denúncias contra o corregedor.
Incentivados pelo ambiente hostil da corregedoria, Marcone José de Souza Cunha e Camila Trapp Sampaio, servidores formados em Direito, que auxiliavam no trabalho de controle, pediram exoneração da UFSC para fazer outros concurso. A professora Mônica Salomón Gonzáles, do Departamento de Economia e Relações Internacionais do Centro Sócio-econômico, nomeada com o professor Gerson Rizzatti, foi quem mais sofreu nas mãos do inquisidor. Ela disse ao titular da Secretaria de Aperfeiçoamento Institucional, Luiz Henrique Cadermatori, e ao ouvidor da UFSC, Arnaldo Podestá Júnior, que foi interrogada pelo corregedor durante cerca de três horas, como se estivesse numa delegacia. Chamou a isso de “tortura psicológica”.
O próprio advogado de Gerson, Nilto Parma, se disse desrespeitado e insultado por ele, assim como a advogada Marina Ferraz Miranda, professora da Udesc e seu aluno cliente, que deverão testemunhar na representação contra o corregedor. “Apenas argumentei que não cabia acusação de improbidade administrativa contra meu cliente porque é facultado ao servidor o direito legal de solicitar dispensa de encargos que não se julgue capaz de cumprir e fui insultado por ele”, afirma Parma. O Advogado do Sintufsc, Guilherme Querne, também relatou ao SEAI muitos problemas e dificuldades para fazer a defesa de servidores por conta do temperamento hostil de Hickel.
PROCESSOS POR AGRESSÃO A MULHERES
O relacionamento de Rodolfo Hikel com as mulheres é um capítulo à parte, que deveria ser objeto de outra investigação mais aprofundada, tanto no exame dos processos quanto na apuração de campo. Uma ação amplamente conhecida e comentada nos bastidores jurídicos foi impetrada em 2003 pela sua segunda ex-mulher, Iôni Heiderscheidt, advogada e professora da UFSC, na época professora da Univali. Ao reclamar indenização por prejuízos financeiros e danos morais com a descoberta de que Rodolfo mantinha durante a união um relacionamento paralelo, ela relata com riqueza de detalhes a vida que teve como sua esposa durante um ano. Conta como perdeu o bebê depois de várias agressões físicas e psicológicas e anexa nos autos testemunhas e cópia do protocolo de sua entrada na Maternidade Carlos Corrêa com dores e forte sangramento.
Num processo de 685 páginas, Iôni, que foi advogada dela mesma, narra que depois de controlados os riscos de sua gravidez nessa ocorrência, foi agredida novamente até sofrer um aborto do feto já de quatro meses. Entre cada episódio de violência, o agressor a perseguia, buscava reconciliação, dizia-se arrependido e prometia mudança para, em seguida, voltar ao padrão de conduta. Conta ainda como as perseguições no local de trabalho a intimidavam e como acabou sendo demitida da faculdade após licenças por depressão e faltas sem justificativas provocadas pelas brigas. O conjunto dessas narrativas não esteva em questão na ação por ela movida, nem foi desmentido pelo juiz. Ele chegou a ponderar que embora os atos atribuídos por ela a Hickel fossem moralmente condenáveis, julgava improcedente a ação indenizatória pela ausência de provas, como exame de corpo de delito e Boletim de Ocorrência.
Em outra ação, impetrada pela ex-namorada ou ex-noiva de Rodolfo, Lúcia Helena Cardoso, também professora universitária, alega os mesmos padrões de comportamento do acusado: perseguição, intimidação, assédio psicológico e repetidos episódios de agressão física e moral. Sem saber que o ex-noivo mantinha ao mesmo tempo um casamento no religioso com Iôni, Lúcia Helena depôs no processo a favor da outra quando as duas descobriram a trama, mas sua ação foi igualmente julgada improcedente por falta de provas.
PERFIL DE CORREGEDOR: EQUILÍBRIO, SENSIBILIDADE E PACIÊNCIA
Qualquer que seja o gestor acadêmico ou administrativo da UFSC com quem se fale a respeito do corregedor já ouviu falar dessas ações públicas ou sigilosas envolvendo o homem que concentra hoje o poder de fiscalização, denúncia e punição de irregularidades na instituição. Comentários sobre essas ações passam de boca em boca, como narrativas de corredor que ninguém investiga. Mas essas e outras histórias são terrivelmente reais e concretas para as vítimas e as suas famílias. E, à medida que não são de fato apuradas, só servem para amedrontar e acovardar as pessoas prejudicadas e aumentar ainda mais os poderes do inquisidor para intimidar pessoas, fortalecer as divergências políticas internas e espalhar a discórdia no seio da universidade.

Foto: Agecom/UFSC Ex-reitora Roselane Neckel empossando o corregedor geral da UFSC e inaugurando o novo órgão, em 4 de maio de 2016
Por ora o fato mais importante diz respeito ao perfil de Rodolfo para o cargo de corregedor, no momento em que a universidade é devastada por uma crise desencadeada pelo falecimento precoce e trágico do reitor e pela presença de um estado policialesco. As orientações que regulamentam a implantação das corregedorias seccionais pelo decreto federal 5.480 estabelecem em 11 itens as habilidades e características de comportamento que compõem o perfil necessário a um ocupante do cargo. Pelo menos oito itens parecem apontar exatamente para o oposto do comportamento da primeira pessoa a preenchê-lo. Conforme o item 3, por exemplo, o candidato deve ter sensibilidade e paciência; o 4, indica capacidade de escuta; o 5, equilíbrio emocional; o 6, capacidade de trabalhar sob situações de pressão; o 7, proatividade e discrição; o 9, independência e imparcialidade; o 10, adaptabilidade e flexibilidade e o 11, maturidade na prevenção, apuração e solução de conflitos.
Envolvido também em queixas de assédio moral contra alunas da universidade, que chamou a depor com base em suas manifestações e curtidas em postagens nas redes sociais, conforme já publicaram os jornalistas Luiz Nassif e Paulo Henrique Amorim, Hickel visivelmente não apresenta a conduta exigida para o cargo de corregedor. Talvez o único requisito que preencha o perfil recomendado hoje é o primeiro, referente à “larga experiência em processos disciplinares”, que ele não tinha, conforme auxiliares que se afastaram da corregedoria, mas adquiriu intensamente depois de assumir o cargo. E também o oitavo item, que se refere à análise crítica, aspecto enfaticamente exercido em relação à administração de Cancellier, o que não significa “independência à administração”, requisitada no item 2, como salienta Rizzatti.
Mais do que crítico ao reitor, Rodolfo tinha uma mágoa contra ele que declarou em suas entrevistas aos jornais locais logo depois da prisão, quando denunciou que estava sendo perseguido. Em entrevista ao Diário Catarinense, publicada no dia 19 de setembro, sob a manchete: “‘Pressões começaram logo após a minha posse’, diz corregedor que investiga desvio de bolsas na UFSC”. Na reportagem, ele acusa o reitor de rebaixar o seu salário de CD-3 para CD-4, o que implicaria numa perda de R$ 1 mil.
Pessoas que atuam na área de recursos humanos na universidade ficaram estarrecidas com essa alegação monetária do corregedor. “Houve uma alteração na estrutura da administração e a função dele foi igualada à da auditoria interna”, explica o chefe de gabinete recém-exonerado, garantindo que não foi uma redução da gratificação. “Várias pessoas passaram por esse reenquadramento”.
TIRANIA PESSOAL ENCORAJADA PELO ESTADO DE EXCEÇÃO
Esse primeiro levantamento realizado nos autos judiciais indicam que os antecedentes de Hickel não o credenciariam sequer para o cargo de síndico, quanto menos para a responsabilidade do controlador máximo de irregularidades de um órgão público tão importante e tão necessitado de harmonia quanto a universidade, como lembrou o ex-procurador. Foi na condição de síndico de condomínio que Rodolfo Hickel sofreu a primeira condenação criminal por calúnia e difamação e quase destruiu a vida da família de Cozzatti. “Os traumas psicológicos em mim, na minha mulher e nos meus filhos foram imensuráveis”, diz ele, com o rosto lavado por um pranto convulsivo pelas lembranças que o fizemos reviver durante vários dias de apuração.

FOTO: Arquivo especial. Irmãos Cancellier, na formatura do reitor em Direito
A dor da família de Cancellier, sua revolta contra o homem que levou o irmão ao gesto de desespero e o estado de exceção que o agasalhou e encorajou suas calúnias é ainda mais dilacerante. Hickel foi nomeado por Roselane em 4 de maio de 2017, seis dias antes da posse do novo reitor, num momento de grande alegria e júbilo para os irmãos Cancellier que, segundo Accioli, o mais velho dos três, selaria o início da desgraça de um homem público de carreira ilibada.
Ao menos quatro dos 14 candidatos preteridos devem entrar com recurso contra a escolha. “Há irregularidades na eleição. Fiz um recurso ao Conselho Universitário quando o professor Cancellier assumiu, mas ele mesmo, sempre tentando soluções pacificadoras, me pediu para desistir porque não queria ser acusado de perseguir o corregedor nomeado pela gestão anterior”, testemunha Fabrício Guimarães, graduado em Direito, ex-assistente administrativo da Procuradoria da UFSC, que trabalhou 17 anos com processos disciplinares. O principal argumento do seu recurso para anulação das eleições: “A lista tríplice foi escolhida não pelo CUN, mas por uma comissão designada pela então reitora, que elegeu Rodolfo Hickel após submeter essa lista a uma reunião esvaziada do CUN, um dia após a vitória de Cancellier nas eleições”, argumenta Guimarães.

Lançado ao linchamento público por um desvio de verbas que não cometeu, reitor foi preso no dia 14 de setembro e nunca mais retornou à universidade FOTO: Agecom/UFSC
O traço persecutório, difamador, abusivo e ameaçador demonstrado neste inventário de conduta encontrou alimento em outra personalidade semelhante que chegou à UFSC depois de ter sido proscrita de outros órgãos. Agindo juntos, os parceiros da perseguição ganharam crédito de uma juíza e de uma delegada da Polícia Federal no contexto nacional de supressão geral dos direitos democráticos desde o golpe de 2016. E a tramoia cresceu no terreno fértil do estado de exceção não-declarado que o país vive, encorajando as ações policialescas que desrespeitam as garantias constitucionais e excitam a opinião pública com a fúria injusta dos coliseus. Envolvido num conjunto de suspeitas de irregularidades iniciadas 10 anos antes de sua gestão, sem acesso à universidade, distante dos amigos pelo terror psicológico que os afastou, e sem direito à defesa, o reitor não viu outra saída para acabar com a dor da humilhação a não ser lançar-se ao precipício como denúncia.
NOTA DA REDAÇÃO: Os Jornalistas Livres encaminharam 16 perguntas ao corregedor em torno dos processos judiciais aqui abordados, com questões sobre seus métodos de trabalho e de tratamento pessoal, bem como a onda de denúncias acerca de sua conduta na universidade e a sua relação e possível influência nos órgãos federais da Justiça, Polícia e Corregedoria da União. Perguntamos ainda se ele havia apresentado sua solidariedade à família. Propusemos como teto para recebimento das respostas as 19 horas de domingo (29/10), mas até o fechamento da edição desta reportagem não houve retorno.
Representação movida pelo professor Gerson Rizzatti contra Rodolfo Hickel por desvios de conduta
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Por Sonia Coelho*
O caso de André de Camargo Aranha veio à tona nas redes sociais por conta de sua absolvição pela denúncia de estupro de vulnerável. Segundo o The Intercept Brasil, durante o processo o promotor Thiago Carriço de Oliveira apresentou a tese de que não se pode comprovar, na conduta do acusado, a intenção de estuprar, a capacidade de perceber que Mariana não poderia consentir.
A audiência foi gravada e mostra como as vítimas de violência são revitimizadas pela Justiça que deveria acolhê-las. O tratamento à denúncia de estupro feita por Mariana Ferrer escancarou o que nós do movimento feminista temos denunciado sistematicamente: o quanto o Judiciário brasileiro é machista, misógino, patriarcal.
O advogado de defesa de André Aranha, Cláudio da Rosa Filho, armou um show contra Mariana, chegando a falar de sua roupa e de sua conduta para “justificar” o estupro. Expondo e julgando fotos que nada tinham a ver com o caso, e usando uma série de questões morais, tentou justificar que Mariana tivesse consentido com o estupro. É inaceitável que juiz e promotor presenciem a humilhação e o assédio moral proferidos pelo advogado de defesa em relação à vítima e não façam nada, não se pronunciem nem interrompam o advogado.

Não existe estupro “sem querer”
A interpretação do caso pela promotoria afirmou, segundo citação da Folha de São Paulo, que “não restou provada a consciência do acusado acerca de tal incapacidade, tendo-se, juridicamente, por não comprovado o dolo do acusado”– o que o portal The Intercept Brasil resumiu como “estupro culposo” em sua reportagem. O caso revela a dificuldade que as vítimas de crimes de estupro enfrentam para ver os agressores punidos, especialmente quando eles são brancos e ricos. O que Mariana relata é que o estupro aconteceu numa situação em que estava absolutamente vulnerável, sem condições de tomar qualquer decisão. Estupro não é acidente e a palavra da vítima deve prevalecer.
Embora a sentença não tenha citado a classificação do “estupro sem intenção” ou “estupro culposo”, a discussão do tema é essencial para evitar que mais uma tese seja emplacada no Judicário para absolver estupradores no Brasil. Teses machistas estão sendo retomadas no Judiciário, como as de “defesa da honra” e “violenta emoção”. São muitas as teses que o Judiciário brasileiro tem aceitado para manter a impunidade dos agressores no Brasil. Isso só fortalece a cultura do estupro.
O estupro não é um exercício da sexualidade. O estupro é o exercício do poder dos homens sobre as mulheres. Serve para colocar as mulheres no lugar de subordinação, e foi isso que essa audiência tentou: colocar Mariana Ferrer num lugar de subordinação.
O recente caso do jogador de futebol Robinho apresenta uma situação semelhante: ele mesmo dizia que a mulher sequer tinha condição de ficar em pé ou se expressar, mas continuou dizendo que ela quis, e que aquilo não era problemático porque “nem era sexo”. Essa é a tese machista de que os homens não têm essa capacidade de discernir, e é muito perigosa porque aceita como consentimento situações em que o consentimento é impossível. Na nossa sociedade, há um acobertamento dessas situações de violência, propondo uma aceitação como se fosse “algo da vida”. Isso é a banalização do estupro.
Os dados recentes do Fórum Brasileiro de Segurança Pública são alarmantes: em 2015, acontecia um estupro a cada 11 minutos, um dado já muito preocupante; em 2019, a situação piorou muito, passando a um estupro a cada oito minutos. Além disso, nesse período de pandemia que nos exigiu aumentar o isolamento social, vimos diversos estudos apontando um aumento ainda maior dos números de estupro e violência contra a mulher no Brasil. O que o Estado tem feito para se responsabilizar por essa calamidade?

Denunciar não pode acarretar em mais violências
A situação de Mariana Ferrer escancara uma realidade gravíssima. Oestupro já é um crime subnotificado, pela dificuldade de denunciar e ser ouvida. Muitas meninas e mulheres sentem vergonha de denunciar e expor sua intimidade, sua vida pessoal, seus traumas. A dificuldade aumenta quando não há confiança com a Justiça. O que aconteceu com a Mariana é uma prova dessa dificuldade: a vítima torna-se ré, torna-se culpada e é exposta, enquanto o violador sai impune e preservado, porque a palavra dele detém mais poder e confiança.
São várias mulheres e meninas que passam a vida convivendo com o fantasma do estupro que viveram sem conseguir denunciar, exatamente por medo e por vergonha. É por isso que muitas mulheres só conseguem falar sobre o que viveram depois de muitos anos. A desresponsabilização do Estado gera ciclos profundos de violência, anos de silêncio e dor, e afeta até mesmo a saúde mental das mulheres.
No Judiciário, a injustiça tem gênero, classe e raça. É bastante perceptível que a Justiça hoje criminaliza e ataca aqueles que oferecem algum risco ao sistema, ao mesmo tempo que permite a violência contra esses setores. O sistema que protege André de Camargo Aranha (um empresário branco que pode pagar por um dos advogados mais caros de Santa Catarina) é o mesmo que permite que a Polícia Militar assassine e encarcere a população negra, violando de forma brutal os direitos humanos.
Os homens poderosos acusados de estupro têm uma segurança de que as mulheres não vão ter coragem de denunciar e que, mesmo que denunciem, seu dinheiro e posição social são argumentos suficientes para jogar a culpa nas mulheres, dizendo que elas que “não se comportaram como deveriam”. Esse tipo de postura conivente do Judiciário dá a certeza para esses homens de que eles podem continuar estuprando e violentando as mulheres. E esse é um problema da Justiça brasileira e de toda a sociedade.
Isso significa que a Justiça só irá se mexer se nos mobilizarmos. Até 2005, por exemplo, o casamento do estuprador com sua vítima anulava o crime no Brasil. Não fosse o avanço do movimento feminista sobre esse tema, talvez isso ainda vigorasse até hoje. São diversos os casos de violência contra a mulher em que a manifestação do movimento feminista foi crucial para que a Justiça avançasse e a violência recuasse.

Só o feminismo pode mudar a nossa realidade
Graças à luta do movimento feminista, temos avanços importantes para que haja justiça diante de casos de violência e estupro.
Já tivemos muitos avanços, como a aprovação da Lei Maria da Penha em 2003, que possibilitou toda uma gama de políticas públicas de enfrentamento à violência. Ainda assim, precisamos de uma série de políticas que consigam concretizar o que está escrito nas leis, e isso só é possível com o movimento feminista organizado e com a responsabilização do Estado. No período dos governos do PT na Presidência da República, tivemos uma Secretaria de Política para as Mulheres responsável por políticas e programas muito importantes contra a violência e por ampliação da autonomia das mulheres. Infelizmente, muitas delas foram desmontadas pelo governo golpista de Temer ou pelo Ministério da Família de Damares e Bolsonaro.
Todas essas experiências nos mostram que, além de um sistema de justiça efetivo, é preciso uma série de políticas públicas para combater a violência. Essas políticas precisam ser permanentes, e se concretizar na vida das pessoas: serem acessíveis em todos os cantos das cidades, terem orientação feminista, combaterem a violência de forma integral. Para isso, não basta a política nacional. Políticas no âmbito estadual e municipal são cruciais, tanto para garantir a efetivação das políticas e dos serviços públicos, quanto para relacioná-las com a realidade de cada território, enfrentando os desafios próprios e se articulando com as organizações de mulheres e comunitárias em cada lugar.
O caso de Mariana Ferrer é mais um que mostra a necessidade da luta feminista e a necessidade de pensarmos em políticas para o combate à violência contra a mulher, incluindo aí um amplo debate sobre como esses casos são tratados pela Justiça brasileira. Precisamos nos manifestar e exigir que esses casos sejam tratados com a seriedade que lhes é devida. Temos que lutar para denunciar esse caso, fazê-lo retornar para um novo julgamento, onde haja respeito e o combate à violência seja levado a sério. Não iremos aceitar teses machistas, criadas para manter a impunidade do estupro no Brasil.
(*) Sonia Coelho é militante da Marcha Mundial das Mulheres, assistente social e candidata a vereadora em São Paulo.
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Amazônia
Morte de líder Kumaruara revela a falta de assistência a indígenas no baixo Tapajós (PA)
Publicadoo
5 anos atrásem
16/10/20
Picado por cobra, Alberto Castro Bispo só foi socorrido 6 horas após o comunicado à Secretaria Especial de Assistência Indígena de Santarém-PA
Reportagem originalmente publicada por Amazônia Real
Por: Tainá Aragão
Fotos: Leonardo Milano

Santarém (PA) – “Perdemos mais um Kumaruara por negligência do desgoverno”. A frase em tom de desabafo faz parte da carta-manifesto publicada em 4 de outubro, dia em que morreu o líder Alberto Castro Bispo, 47 anos. O indígena foi picado por uma serpente surucucu e foi a óbito durante a travessia fluvial pelo rio Tapajós por falta do soro antiofídico e assistência médica. A morte causou revolta ao povo Kumaruara, que há anos reivindica acesso à saúde na região da Reserva Extrativista Tapajós- Arapiuns, no Pará, inclusive na pandemia do novo coronavírus.
Por estar no meio da floresta e pelo alto grau de envenenamento, Alberto só conseguiu chegar na aldeia Mapirizinho, na Resex Tapajós-Arapiuns, às 11 horas do mesmo dia, sendo duas horas após ter sido picado. Naquele momento, a comunidade se mobilizou para tentar a sua remoção por meio da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e o Serviço de Atendimento Médico de Urgência (Samu), ambas com sede em Santarém. Mas a lancha da Sesai levou cerca de 6 horas para chegar e Alberto não resistiu ao translado, vindo a óbito nos braços de sua companheira. Eles estavam a caminho de Alter do Chão, no Baixo Tapajós, onde uma ambulância terrestre ainda o levaria para Santarém.
“Ele me olhava e dizia: ‘Minha velha, eu não vou resistir, não’. Se fossem buscar, eu tenho certeza que ele ia escapar. A ambulancha chegou e quando deu umas 18h15 ele deu o ataque no meio do caminho. Aí botei a mão no nariz dele e estava seco, eu estava ali do lado dele, sozinha, e falei para o motorista: ‘Ele já se foi’”, lembra Renita Melo, viúva de Alberto e mãe de seus seis filhos. “Tenha fé em Deus”, ouviu em resposta. Ela chegou a pedir soro aos socorristas, mas só ouviu: “Não temos. [Então] viemos na ‘tora’”, referindo-se a uma expressão local que quer dizer “sem resitar”.
Após o falecimento, parentes e parte da comunidade, em luto, fizeram uma manifestação no dia 5 em frente a Casa de Saúde Indígena (Casai) do município de Santarém. A líder indígena Luana Kumaruara explica que se houvesse mais infraestrutura, mortes poderiam ter sido evitadas. “Estamos em um período de pandemia, além de sofrermos com os impactos dos grileiros, ‘sojeiros’ e madeireiros, também temos que lidar com esse descaso com a saúde, porque dentro da Amazônia não termos esse soro pra picada de cobra. É absurdo, e isso tem que ser prioridade. Já perdemos dois Kumaruara no último mês [setembro] e não dá pra fazer vistas grossas por tudo que estamos passamos”, enfatiza.
As mortes que Luana se refere são a dois idosos. Eles morreram em consequências de problemas cardíacos. Segundo ela, a comunidade Kumaruara também enfrentou problemas na liberação e remoção dos corpos.
A pandemia de Covid-19, que também não dá tréguas, já registrou 1.414 casos confirmados entre os indígenas e 17 mortes de Covid-19 na Resex Tapajós-Arapiuns. Os dados são do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) Guamá Tocantins, ligado a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde. Não há registro de mortes pelo vírus entre os Kumaruara.
Na Resex Tapajós-Arapiuns, além dos Kumuruara, vivem também as etnias Tupinambá, Munduruku, Apiaká, Borari, Maytapu, Cara Preta, Arapium, Jaraqui, Tapajó, Tupaiu e Arara Vermelha e comunidades ribeirinhas tradicionais. A Resex fica na região conhecida como Baixo Tapajós, no ponto de encontro entre os rios Tapajós, Arapiuns e Amazonas. Os Tupinambá são os mais atingidos pela pandemia da Covid-19.
Uma lancha para atender a todos

(Foto: Leonardo Milano/Amazônia Real)
O corpo de Alberto Castro Bispo foi levado à comunidade para o enterro ainda no dia 5, após 12 horas. Houve uma burocracia para liberação do corpo por parte do Instituto Médico Legal (IML), pois Alberto faleceu em trânsito e não havia um médico na ambulancha para atestar o óbito. Um médico de Santarém teve que fazer a perícia. O velório aconteceu na comunidade Mapirizinho, por volta das 15h, e o enterro entre 17h e 18h.
A Sesai justificou à comunidade que não teria disponibilidade de horário de voo para fazer remoção de helicóptero e tampouco contava com o serviço de um marinheiro para conduzir a ambulancha. O transporte fluvial foi adquirido em julho pela Sesai, mas está parado. “Estamos há meses esperando que a Sesai faça a contratação dos barqueiros. O Samu respondia que a ambulancha da Secretaria Municipal de Saúde estava fazendo outro serviço de remoção na região do Lago Grande, e que só iriam ser possível buscá-lo às 17 horas. Ou seja, apenas uma ambulancha disponível para fazer socorro em uma extensa região de rios”, diz a carta-manifesto dos Kumaruara.
Em nota à Amazônia Real, a Sesai, órgão subordinado ao Ministério da Saúde, por meio do Dsei Guamá Tocantins, diz “lamentar” o falecimento do indígena e se justifica: “Há seis Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena (Emsi) na região, atuando de forma volante, levando atendimento de saúde para as aldeias”. Mas admite que faltam profissionais contratados. “O Dsei adquiriu oito novas embarcações fluviais para atendimento da região e os barcos já estão operando no transporte de urgência e emergência de pacientes e equipes de saúde. Os processos de contratação de barqueiros e horas-vôo encontram-se em tramitação, em data anterior ao acidente”, diz a nota.
Segundo Jean Cunha, coordenador do Samu em Santarém, há duas ambulanchas do município, que atuam na região ribeirinha da bacia de três grandes rios: Amazonas, Tapajós e Arapiuns. Apesar da equipe reduzida e da falta de infraestrutura adequada, o Samu alega que se tenta dar suporte às comunidades indígenas. “A Sesai está há um tempo muito grande esperando pra fazer contratação da equipe e isso sobrecarrega o Samu, pois a gente dá suporte para todas as comunidades vizinhas e também às indígenas. Eles não podem colocar as demandas só para o Samu; eles têm hora de helicóptero e uma ambulancha equipada, se a gente tivesse esse material faríamos muitas remoções. Ter o material e não saber usar, fica difícil”, enfatiza o coordenador.
Na Resex, são 75 comunidades, entre indígenas e não-indígenas, e apenas 10 Unidades de Saúde. As mais próximas da comunidade indígena Mapirizinho são Suruacá e Parauá, a cerca de 15 quilômetros de distância. Mas nenhuma das unidades possui o soro antiofídico, específico para conter o veneno da serpente, como explica o agente de saúde do posto de Suruacá, Djalma Lima.
“Não existe soro nem para picada de cobra, nem de aranha, nem de lacraia, porque não tem energia elétrica no posto, e não tem como armazenar. Além disso, para se ter esse soro dentro das comunidades, precisa de um médico, de uma infraestrutura adequada, com geladeira e não temos”. Djalma enviou, por intermédio de seu filho, um punhado de medicina natural para tentar amenizar a dor de Alberto. “Mandei pra ele uxi [fruto nativo] para conter o veneno, mas já era tarde”, diz o agente de saúde.
Para Roselino Kumaruara, cacique da comunidade Mapirizinho e genro do falecido, o descaso com a população tradicional, indígenas e pescadores, que vivem no outro lado do rio é constante. “Essa situação é ruim. Perdemos um parente e não podemos mais trazer ele de volta, já houve outros casos como esse. Quando a gente liga, não tem. A gente fica triste, mas fica com raiva também. A gente tem muitas barreiras pela frente”, protesta o cacique.
Luta pelo acesso à saúde

(Foto: Leonardo Milano/Amazônia Real)
O caso de Alberto Castro Bispo não é isolado. Desde 2015 os povos indígenas do Baixo-Tapajós, por meio do Conselho Indígena Tapajós e Arapiuns (Cita), reivindicam acesso à saúde indígena. Em 2016, houve a ocupação do Polo Base da Sesai, em Santarém. Após a ocupação, as comunidades indígenas obtiveram acesso ao direito da saúde por meio de uma decisão judicial a partir de uma ação civil pública do Ministério Público Federal (MPF).
Mesmo com o reconhecimento, a principal luta dos indígenas nos municípios de Aveiro, Santarém e Belterra continua sendo a mesma de cinco anos atrás: a criação de um novo Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) para a região. Atualmente, Santarém está incluído no Dsei Guamá-Tocantins, com sede em Belém, a 1.375,8 quilômetros do município. Ou seja, cerca de 22 horas por transporte terrestre, o que dificulta ainda mais o acesso aos atendimentos.
“Não dá pra gente ficar vinculado ao Dsei-Guamá-Tocantins que está em Belém, o que dificulta o diálogo. Por isso, estamos entrando com um documento no MPF para pressionar mais uma vez a criação do Distrito”, explica a líder Luana Kumaruara.
O Dsei Guamá Tocantins atende a uma população de 17.198 indígenas de 42 etnias, que vivem em 186 aldeias. O órgão conta com 31 Unidades Básicas de Saúde e oito polos bases, além de cinco Casas de Saúde Indígena (Casais).
Cortes na Saúde Indígena

(Foto: Leonardo Milano/Amazônia Real)
A saúde indígena funciona por meio de um Subsistema de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (SasiSUS), coordenado pela Sesai. Articulado com o SUS, descentralizado, e com autonomia administrativa, orçamentária e financeira, o SasiSUS é organizado em 34 Dseis, distribuídos em todo o território nacional. Os distritos são responsáveis por prestar atenção primária em saúde aos povos que moram nas Terras Indígenas. Na Amazônia Legal, são 25 Dseis que dão assistência para uma população de 433.363 pessoas.
Conforme o relatório “O Brasil com baixa imunidade – Balanço do Orçamento Geral da União 2019”, publicado pelo Inesc, Instituto especializado em orçamento público e Direitos Humanos no Brasil, a política de saúde indígena foi um capítulo significativo na ofensiva aos direitos destes povos.
“Em 2019, a execução do orçamento foi de R$ 1,48 bilhões contra R$ 1,76 bilhões em 2018, cerca de R$ 280 milhões a menos. Isto certamente compromete o atendimento deste grupo da população, que tem diversos indicadores de saúde piores que a média brasileira, como suicídio, desnutrição e mortalidade infantil e algumas doenças infecciosas, como a tuberculose”, informa o relatório.
O relatório do Inesc aponta, ainda, que os cortes orçamentários demonstram que há uma violação de direitos direta sobre essas populações: “As medidas legislativas e executivas de iniciativa do governo demonstram que está em curso uma política de destruição intencional e sistemática dos modos de vida e da cultura dos povos indígenas.”
Neste ano atípico, em meio à pandemia, as vulnerabilidades e os abismos sociais se mostram ainda mais profundos. Com o congelamento dos gastos públicos por 20 anos, por meio da PEC 241 – também chamada de PEC 55, no Senado – e implementada por Michel Temer (2016-2019), a tendência é que as comunidades mais vulneráveis, incluindo os povos tradicionais, populações amazônidas, ribeirinhas, agroextrativistas, indígenas, quilombolas e agricultores, continuem sendo impactadas pelos déficits na saúde e na educação.
“Não suportamos mais viver, vendo os parentes morrerem em nossos braços. Queremos ser olhados e assistidos de forma digna como seres humanos. Vidas Indígenas Importam!”, afirma a última linha da carta-manifesto do povo Kumaruara.
A Amazônia Real entrou em contato com a Secretária de Saúde do Pará para buscar informações sobre óbitos por animais peçonhentos na região, mas até o dia 13 não obteve resposta.

(Foto: Leonardo Milano/Amazônia Real)
Índios
Povos indígenas do Xingu estão em situação crítica
Movimentos sociais do campo popular de Mato Grosso lançam campanha conclamando sociedade para apoio a 10 aldeias da região do baixo Xingu
Publicadoo
5 anos atrásem
07/10/20
Por: Gislayne Figueiredo e Rosa Lúcia Rocha – Consulta Popular – MT
Desde a chegada dos primeiros homens brancos no Brasil, o povo indígena vem sofrendo com a violência, o genocídio, os ataques à suas formas de vida e de cultura, tudo isso para se apropriar de suas terras e disponibilizá-las para aqueles que a utilizam segundo a lógica do lucro.
A mesma lógica utilizada – de apropriação da terra mediante o genocídio e etnocídio de povos inteiros – continua sendo utilizada como forma de expansão das fronteiras agrícolas e sob o discurso do desenvolvimento nacional: citamos algumas dessas violências cometidas em período não tão distante, entre as décadas de 1940 a 1960, que foram ricamente documentadas em 1967 pelo próprio Estado brasileiro por meio do chamado “Relatório Figueiredo”, um documento de mais de 7 mil páginas que está disponível na página do Ministério Público Federal e que merece ser conhecido por todos os brasileiros. No documento produzido pelo então procurador Jader de Figueiredo estão descritas inúmeras atrocidades praticadas por latifundiários brasileiros e funcionários do Serviço de Proteção ao Índio contra índios brasileiros naquele período, como assassinatos individuais e coletivos, torturas, prostituição de índias, trabalho escravo, usurpação do trabalho, apropriação e desvio de recursos oriundos do patrimônio indígena, venda de artesanato indígena, venda de produtos de atividades extrativas e de colheita, arrendamento de terras, venda de gado, venda de madeiras, exploração de minérios, doação criminosa de terras, omissões dolosas, dentre outras.
Essas violências continuam até hoje e centenas de povos indígenas que procuram viver em harmonia com a mãe-terra, respeitando-a e preservando-a, têm seus territórios constantemente invadidos por garimpeiros, madeireiros, fazendeiros e pelo agronegócio que, de forma predatória, queimam e arrasam as florestas, as águas e os animais.
Os povos indígenas foram sendo cada vez mais expropriados e confinados em pequenos espaços de terra, os chamados Territórios Indígenas que, em geral, são cercados de fazendas por todos os lados e, muitas vezes, não possuem terras suficientes para garantir a sobrevivência com dignidade desses povos.
A história mostra que uma das estratégias mais utilizadas para matar os indígenas com o fim de tomar as suas terras é a contaminação de grupos com doenças vindas dos brancos, como a varíola, tuberculose e a epidemia de gripe e sarampo que dizimou diversas etnias no século XX.
O Estado brasileiro de hoje, sob o comando de Bolsonaro, impõe um governo de direita (tendendo para a extrema direita) que é declaradamente a serviço dos maiores inimigos dos povos indígenas, ou seja, grandes produtores do agronegócio, latifundiários, madeireiros e mineradoras. Assume uma postura ativa de incentivo e apoio àqueles que invadem e cometem violências contra os indígenas, não apenas se omitindo quanto ao seu papel de fiscalizador, mas propondo ações que violam cotidianamente os direitos constitucionais dessa população, reforçando práticas e discursos genocidas.
De modo muito conveniente aos interesses desses grupos que dão sustentação ao governo Bolsonaro, o vírus Covid-19 chegou rapidamente aos povos indígenas, tal como pavio de pólvora, com evidentes indícios de negligência para com essa população, sabidamente mais vulnerável a doenças infecciosas.
Diante da pandemia que avança sobre seus territórios, muitos povos indígenas têm se organizado para sobreviver e resistir como podem para impedir a infecção pelo coronavírus, criando barreiras sanitárias nas aldeias, evitando ir às cidades e contando com a solidariedade dos amigos da causa indígena para acessarem produtos de higiene e ferramentas para a pesca, haja visto que o Estado não tem garantido as condições mínimas para a sobrevivência, para evitar o contágio e cuidar daqueles indígenas que foram contaminados.
No estado de Mato Grosso, de acordo com a contabilização feita pela Associação de Povos Indígenas do Brasil, em 11/09 já eram mais de 1600 indígenas contaminados e 73 mortos.
Um apelo por solidariedade aos povos do Xingu
Do Baixo Xingu, pelo whatsapp, chega um apelo por solidariedade pela voz de um jovem indígena, dirigido aos movimentos sociais do campo popular de Mato Grosso:
“Companheiro, estou sem acesso a internet, a gente está isolado. Devido a pandemia, nós mudamos do polo central onde estávamos residindo até o ocorrido, nós perdemos uma família devido às complicações da Covid 19. Na nossa cultura, quando acontece alguma coisa, a gente busca outros lugares para estar com a família. E aí, a nossa família está construindo uma comunidade lá, um lugar pra gente, então não estamos tendo acesso à internet, por enquanto. Mas buscando apoio para em breve ter uma instalação lá pra gente, porque a gente precisa para dar continuidade ao nosso trabalho. Estamos agora bem próximos de um outro povo indígena, eu agora estou tendo bastante contato com eles e pretendo colocar eles em contato com vocês, acho importante a gente socializar, para que o povo branco possa entender como estamos organizados. Então, a gente tem bastante demanda aqui no nosso povo, aqui do Xingu e acredito que tem outros povos indígenas que também têm demandas devido a pandemia… Porque mudou totalmente nossos hábitos. Tem chegado apoio, não muito, algumas coisinhas. O que o pessoal mais oferece é cesta básica, só que a gente precisa mais do que a cesta básica, como ferramentas, sabão, isqueiro, sabonete, produtos de higiene, faca, facão, lima, essas coisas. Já faz aproximadamente seis meses que a gente está parado aqui… A gente não consegue ter acesso fora da TIX (Terra Indígena Xingu). Daí eu gostaria de ver se vocês conseguem mobilizar aí alguns parceiros, pegar carona, para que possam nos ajudar, mobilizar, articular para adquirir essas coisas e mandar pra gente também. A gente ficaria muito feliz com isso, as comunidades, que realmente estão precisando. Eu não procurei você antes porque eu também sei que vocês tem a demanda de vocês aí… Mas é que eu vejo aqui, as comunidades super precisam dessas coisas. E não é só cestas básicas. A gente tem alimento da gente aqui também, que a gente consome. Não quer dizer que a gente não precisa também das cestas. Mas não tanto quanto os materiais que as comunidades estão precisando para trabalhar e para dar continuidade no trabalho de roçada. Daí já passa um tempo, aí posteriormente ver o tempo da queimada pras roças, e depois vem o período do plantio das roças… Então a gente vai precisar de bastante material. Eu aguardo posicionamento seu, uma resposta sua para ver o que que você me fala, tá bom? Um abraço até mais.”
Diante da resposta positiva, o reforço:
“Obrigadão aí pela força companheiro, pela parceria também e pela compreensão também. A gente está há seis meses sem sair. Como você sabe o Xingu é muito extenso, são 16 povos. Tem chegado apoio, mas não atende todo mundo, não consegue atender todo mundo, então por isso eu estou falando com vocês. Eu conversei aqui com uns povos parentes, que tem mais ou menos duas ou três aldeias, e tem o meu povo também, né? Então como a gente está em várias aldeias, então o que que foi a metodologia que eu montei lá. Eu achei que daria para gente dividir os trabalhos com outros parceiros. Então, aqui, a gente conversando, o pessoal aqui e o cacique lá de outra aldeia que fica na região onde a gente mora, a gente decidiu buscar algum tipo de apoio para 10 aldeias que são Parureda, Caiçara, Tuba-tuba, Maidicá, Camaçari, Aiporé, Paranaíta, Castanhal, Três Patos e Ciato. Dessas aldeias, a gente já fez um pequeno levantamento também, a maior população aqui é o povo Yudjá, dá um total de 150 famílias nas 10 aldeias. Então as ferramentas para trabalho, produto de higiene que não falei, o sabão, sabonete, bombril de lavar panela também, creme dental, escova de dentes, essas coisas também são bem vindo. Botinas, chinelos havaianas. Que a gente precisa além das cestas, né? Assim, que nem eu falei, a gente tem a comida nossa que é farinha, bijú, caça… A gente precisa também de óleo de comida, sal, açúcar também que a gente consome hoje, né? Não muito, mas a gente consome para adoçar algumas coisas. Então, por isso a cesta também é fundamental pra gente, é importante também, porque tem algumas coisas também que a gente usa também no nosso dia a dia. Então é isso!”
Essa é a história que motivou os movimentos sociais do campo popular de Mato Grosso – MST, Consulta Popular e Levante Popular da Juventude, em parceria com a Associação dos Docentes da Universidade Federal de Mato Grosso (ADUFMAT) lançarem uma campanha conclamando toda a sociedade para doar ferramentas para trabalho na roça, pesca e materiais de higiene e limpeza para atender as necessidade de 10 aldeias da região do baixo Xingu.
Nesse momento, onde a existência concreta desses povos está mais uma vez ameaçada, é importante nos atentarmos para a importância de fortalecermos a luta pela defesa de suas formas de vida, pela preservação de suas múltiplas e diversas culturas e de seus territórios. Não obstante, para além de apoiarmos a luta, é preciso que nossa relação com os povos originários seja de aprendizagem, que a gente possa aprender com a riqueza de suas culturas e com sua relação de respeito para com a natureza e com outros seres humanos.
As organizações conclamam toda a sociedade a se juntar a essa causa e contribuir com a preservação das comunidades indígenas do baixo Xingu, em Mato Grosso, doando produtos de limpeza, material de trabalho na roça e para pesca (vide lista abaixo).
As doações podem ser entregues na sede da ADUFMAT, em Cuiabá, ou por meio de depósito na conta abaixo. Mais informações no face da AAMOBEP – https://www.facebook.com/aamobep/ – pelo email aamobep@gmail.com ou pelo telefone (65)981094569.
Nome: AAMOBEP (Ass. Amigas/os do Centro de Formação e Pesquisa Olga Benário Prestes)
CNPJ: 18.208.193/0001-36
Banco: BANCO DO BRASIL
Agência: 3325
Operação: 1
Conta: 100.113-2
LISTA DOS MATERIAIS SOLICITADOS:
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Max
30/10/17 at 12:52
Este parecer aqui, da própria AGU, também merece atenção:
http://www.agu.gov.br/page/download/index/id/14494006
Pingback: Caso Cancellier: Corregedor que entregou reitor à PF já foi condenado por calúnia e difamação - Portal Fórum
Carlos Endo
30/10/17 at 15:46
Dêem o poder a um canalha, e ele se tornará um déspota, um tirano, um ditador.
Marize
30/10/17 at 16:44
Muito boa e elucidativa a matéria sobre o perfil do Corregedor Hickel. Deveria a mesma investigação ser feita sobre a outra delatora do caso “Ouvidos moucos”, professora Thaís!
Dan Moche Schneider
30/10/17 at 17:10
Excelente. Uma lição de saneamento: em um ambiente putrefato, os vermes se multiplicam.
Pingback: Sobre a capivara do corregedor da UFSC e o estado de exceção. | O Palheiro
Moacyr
30/10/17 at 20:04
Excelente matéria. Fica evidente o sério trabalho de levantamento de informações que foi feito. Parabéns.
Jorge Viana
30/10/17 at 20:46
O mais difícil de entender em toda essa trama trágica é justamente a fragilidade emocional de uma pessoa tão bem preparada tecnicamente para se defender. Cancellier não era uma simples vítima de difamação, era um jurista, conhecedor dos meandros burocráticos do sistema judicial.
Ueslei Sulan
31/10/17 at 7:12
Jorge viana: sonha menino inocente.
Aninha
31/10/17 at 9:35
É ESTARRECE DOR VER ESTE RELATO,COMO ASSISTIR A UM FILME DE TERROR. EU COMO ESTUDANTE DE DIREITO, ME PERGUNTO SE ESCOLHI A PROFISSÃO CORRETA,QUANDO LEIO ESTAS NOTÍCIAS TENHO MEDO. O QUE SERÁ DE NÓS, POIS EM QUEM PODERÍAMOS CONFIAR, NÃO DEVEMOS CONFIAR. QUANTAS PESSOAS PASSAM POR ESTA SITUAÇÃO TODOS OS DIAS.DIANTE DAQUELES QUE SE ACHAM DEUSES. O PODER REVELA O MONSTRO EXISTENTE E CONSCIENTE ,QUE FAZ PARTE DA MAIORIA DOS SERES HUMANOS OU DESUMANOS SEI LÁ. UMA FACULDADE E UM ESPAÇO TÃO PEQUENO PARA TANTA ATROCIDADE MORAL E ÉTICA,E AO MESMO TEMPO E UM ESPAÇO GIGANTE POIS ABRIGAM SONHOS E OBJETIVOS DE MUITOS ,QUE ACREDITAM SER ALI O INÍCIO DE TUDO. TRISTE SABER QUE TAMBÉM PODE SER UM CENÁRIO PARA O FIM DE OUTROS.
dileta zanchette
31/10/17 at 12:09
PARECE-ME QUE FALTOU UMA FOTO GRANDE DESSE ASSASSINO/ PILANTRA /DEMÔNIO QUE FAZ TANTO ESTRAGO PARA A HUMANIDADE.
Ronei mendes
01/11/17 at 18:39
Quanto pagaram para fazer essa materiazinha fajuta? Uns baseadinhos??…ou um troco desviado das bolsas das fundações de apoio?? Parece sessão de fofoca do Leão Lobo…
FAUSTO
02/11/17 at 8:43
Um sábio ditado chinês nos alerta:
QUANTO MAIS LEIS MAIS CRIMES!
Luiz Cláudio dos santos
02/11/17 at 19:02
Vamos divulgar mais. Imprensa livre é investigação verdadeira e justa. Merece um documentario pra mostrar pra sociedade a cara de quem é bandido. Com certeza o reitor é vítima.
José Maria Wolff da Silva
06/11/17 at 17:28
ME ARREPIEI TODO AO LER A MATÉRIA E VEIO EM MINHA MENTE O QUE FIZERAM comigo AQUI NA Universidade do Planalto Catarinense // UNIPLAC..quando, o maior crime pedagógico foi cometido por asseclas de políticos e um tal interventor no financeiro, que, vendeu e destruiu o que fizemos com nosso coração e sacrifício O SÍMBOLO DA INSTITUIÇÃO// tocado por uma nova logo, aprovada e feita em fundo de quintal…>>> eu, ao lado dos Pioneiros da Fundação…Funcionário Colaborador, por mais de 40 anos na Instituição, fui demitido por “justa causa por calúnias com testemunhas compradas” pelo ex-e também pelo atual reitor…QUEM NÃO DEVE NÃO TEME…andei prestes a cometer desatinos, porém, o caso ainda está na Douta Justiça em Brasilia…Assim, vou aguardar e confiar na JUSTIÇA….DEUS É MAIOR !!!