Por Cadu Bazilevski, Carolina Rubinato e Lucas Martins
Ontem (20/02) pela manhã uma comunidade que ficava em um terreno no Jardim Humaitá foi alvo de uma remoção. O terreno fica entre a linha 8, Diamante, da CPTM, a Av. Engenheiro Roberto Zuccolo e a Avenida Doutora Ruth Cardoso, na Vila Leopoldina, na Zona Oeste de São Paulo. Existiam, de acordo com os moradores, mais de duzentas famílias, entre crianças e idoso, que foram afetadas pela remoção.
Os moradores acordaram tendo que que desmontar suas casas, empacotar roupas e pertences na correria. Escolher os moveis que iriam levar. Tudo antes da seis da manhã, horário marcado para começar a remoção. Quando a reportagem chegou, por volta das 07:00h uma forte presença policial, tanto da Polícia Militar do Estado de São Paulo quanto da Guarda Civil Metropolitana, escoltava os agentes de remoção contratados pela empresa que é proprietária do terreno.
Os moradores foram notificados, na última segunda-feira (18/02), da mudança repentina. Teriam que sair de casa e arranjar um lugar para morar em cinco dias. A justificativa seria uma mudança do nível de risco da área, que é propriedade da estatal EMAE (Empresa Metropolitana de Águas e Energia). O terreno era utilizado como bota-fora temporário para a deposição de materiais contaminados retirados no processo de desassoreamento do Rio Pinheiros.
Ali moravam mães que saiam todos os dias às 5h da manhã para limparem as privadas dos mais privilegiados da sociedade, elas limpam e cuidam dos filhos dos outros, enquanto os seus sofrem todo tipo de preconceito e criminalização, ali moram idosos que durante toda uma vida trabalharam e pagaram impostos, e ainda assim, nada possuem.
Moradoras da Comunidade Jardim Humaitá. Foto Lucas Martins / Jornalistas Livres
De acordo com Juliana Vanci, advogada do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, “O pior desse caso é que essa operação não está sendo feita com uma ordem judicial, ela está sendo feita com uma ordem administrativa. Então é uma decisão da prefeitura executar dessa forma. As famílias sabiam que estavam em uma área considerada de risco, mas não de risco muito alto e tinham uma tratativa com a prefeitura sobre a alternativa que seria dada para as famílias no caso de remoção. Acontece que na sexta-feira a prefeitura esteve aqui notificando os moradores chamando para uma reunião na segunda feira. As famílias foram até o CEU Jaguaré na segunda e receberam a informa de que, no final do mês, eles receberão R$ 400,00 de auxílio e verificarão como que será a continuidade disso. E que as famílias teriam que sair hoje.” ela ainda completa “A operação está sendo totalmente descoordenada. Os responsáveis são a Secretaria de Segurança Urbana e a Defesa Civil.”.
A vereadora Juliana Cardoso (PT-SP) destacou “A assistência social não se preparou para poder ter um albergue familiar, pretendem colocar as famílias separadas. Homem em um lugar e as mulheres e crianças em outro. Fizeram e produziram um cadastramento rápido para poder ter um atendimento do auxilio de quatrocentos reais. Só que pasmem, farão o cartão para pegar no dia dois, para poder pegar no dia vinte e cinco. Isto está fora da Lei.”.
A maior parte dos moradores estava concentrada no começo do terreno, na esquina da avenida Av. Engenheiro Roberto Zuccolo com a Avenida Doutora Ruth Cardoso, realizando um ato que pedia o fim da remoção. As palavras de ordem do ato, entoada pelos moradores, era “Queremos Moradia, não queremos briga!”. Cerca de cem pessoas participavam do ato, enquanto outras ainda preparavam a mudança.
Protesto realizado por moradores da comunidade. Fotos: Cadu Bazilevski e Lucas Martins / Jornalistas Livres
Muitos dos moradores, por conta do pouco tempo de aviso, não tinham lugar para onde levar seus pertences. Os poucos que não estavam no ato ou que tinham conseguido se arrumar em tempo hábil e arranjar algum lugar para ir levavam seus moveis para caminhões da EMAE. Quem não consegui lugar para levar os pertences teria a disponibilidade de um galpão cedido pela empresa.
O morador Miguel Pereira, 62 anos, que trabalha como catador de papelão contou que “Como é que vou para Juquitiba, que lá arrumaram um cantinho para fazer um barraquinho no fundo de um quintal lá. Eles [equipe da prefeitura] disseram que São Lourenço de Juquitiba é muito longe. Como é que eu vou fazer, eu tenho minha cama, meu fogão. Tem umas telhinhas, uns madeirites, como é que vou fazer? Eu vou jogar todas minhas coisas fora. Vou sair só com o documento na mão”.
O presidente da associação dos moradores, Xandão, tentava dialogar com o comandante da operação e com o representante da subprefeitura da Lapa, avisando que os moradores pretendiam sair com o ato até e ir até o gabinete do subprefeito exigir ajuda. A resposta do representante foi “Não adianta, isso não compete ao subprefeito. Estamos aqui apenas para realizar a limpeza” e apontava para as equipes de remoção que retiravam o que, até há pouco eram os móveis e partes das casas, o que foi respondido por Xandão com “Mas e as pessoas?”, a resposta: “não nos compete”.
Despejo da comunidade Jardim Humaitá. Fotos: Lucas Martins / Jornalistas Livres
Mais de seis meses de preparo
Ocupado a mais de cinco anos o terreno vinha sendo acompanhado pela defesa civil do município desde 2017, como consta em documento da prefeitura. Ao longo dos últimos dois anos foram identificadas mudanças nos riscos de deslizamentos, podendo afetar as famílias e as construções. Em um dos relatórios apresentados pela defesa civil, em 06/04/2018, reclassifica parte das áreas ocupadas como de risco “Muito Alto”. No relatório é recomendada “a remoção total da população residente na área em decorrência da classificação do risco total no grau Muito Alto”.
Em outro relatório, apresentado Pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), no dia 15/05/2018 é mencionado “Os diques B e C apresentam ALTA SUSCETIBILIDADE para a ocorrência de escorregamentos, pois os condicionantes geológico-geotécnicos predisponentes (tipo de solo e saturação do solo), associados às ações antrópicas realizadas (cortes com alturas e inclinações elevadas) são de alta potencialidade para o desenvolvimento desse tipo de processo”.
O coordenador geral da Defesa Civil municipal, Coronel Edernald Arrison de Souza, que comandava a operação, em conjunto com a PM, foi quem explicou como o perigo apresentado pelo terreno forçava a remoção. Perguntado sobre a data do laudo que informava sobre o perigo ele respondeu que não tinha o dia exato, preferindo não arriscar um período.
A EMAE já tentara, por via judicial, a reintegração de posse, mas foi determinada uma ação conjunta da empresa, prefeitura e moradores para que eles pudessem ser realocados do terreno com apoio. Juliana Vanci apontou que “existia o compromisso da prefeitura de fazer o atendimento dessas famílias na Ponte dos Remédios. Nunca mais e falou sobre isso e parece que existe, inclusive, um recuo da prefeitura. Essas famílias estão cadastradas e estão no perímetro, elas têm o direito e a prioridade de atendimento na Ponte dos Remédios. Aqueles apartamentos devem ser considerados prioridades para essas famílias”.
Juliana se refere ao projeto “Conjunto Ponte dos Remédios”, do escritório H+F Arquitetos, que busca “atender a famílias situadas em áreas de risco nas proximidades, o projeto prevê a ocupação das antigas instalações da Siderúrgica Barra Mansa, situada à margens do rio Tietê junto à Ponte dos Remédios, em uma região amplamente servida por infra-estruturas de transporte e logística. Esta iniciativa acompanha o processo de transformação das antigas plantas industriais do entorno em edifícios de habitação e serviços, valendo-se de altos índices de aproveitamento do solo”. Esse projeto, que se arrasta desde 2010, recebeu financiamento do Fundo Municipal de Saneamento (FMSAI) e tem previsão de conclusão em 2019. São previstas duas torres, totalizando 181 apartamentos que variam entre 53m² e 54m².
Mesmo com os laudos disponíveis desde 2018 os moradores ainda não tiveram acesso a justificativa que levou a prefeitura a agir de maneira emergencial, descumprindo a decisão judicial que determinara a ação conjunta entre as três partes.
Os direitos roubados das crianças
A professora Graciana de Souza Brune, foi uma das primeiras pessoas a solicitar ajuda externa, de coletivos de mídia e direitos humanos. Graça, como é conhecida pelas crianças e comunidade, é uma dessas professoras que ama seus alunos e participa da vida deles dentro e fora da sala de aula.
Crianças, adultos e idosos da comunidade Jardim. Humaitá não possuem água encanada, esgoto tratado, luz, endereço e muito menos dignidade humana. São pessoas que sofrem todos os dias com o fato de serem inexistentes para o governo e também para uma boa parte da sociedade, que simplesmente não os enxergam, passam ali todos os dias, mas não há se quer um olhar para a realidade alheia. São seres humanos que têm seus direitos roubados todos os dias.
Mas, cada uma das pessoas que moram na comunidade Jardim Humaitá pagam impostos, a cada litro de leite que compram, metade do dinheiro é imposto, o mesmo que todo mundo paga. São merecedores de direitos básicos para a dignidade humana, mas todos os dias são roubados desses direitos.
Falaremos das crianças que deveriam ser protegidas pelo ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente, uma lei do país que dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente. O artigo terceiro do ECA dispõe que a criança e o adolescente devem gozar de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta lei, assegurando todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
O artigo quarto ainda prevê que é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
O sétimo artigo do ECA ainda dispõe que a criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência.
Agora falaremos sobre condições dignas de existência, mas qual condição, sobre qual dignidade estamos falando?
Hoje mais de 60 crianças foram jogadas nas ruas por um governo higienista, autoritário e desumano, daqueles que querem limpar a sociedade, retirar de circulação os pobres, excluí-los e torná-los cada vez mais inexistentes.
Em nenhum momento o Estado se propôs a tirá-los de lá, com outro local pronto para recebê-los. Eles perderam a casa, o teto, a cama, a comida e o direito a escola de uma só vez, viram os pais sendo tratados como lixo humano, crescem com tudo isso marcado na alma.
Crescem e se tornam exatamente o que a sociedade entregou para eles, nada. Sem autoestima, sem consciência, sem expectativa de vida fica fácil ir ao encontro do crime. Mas quem se beneficia com o crime no país?
Uma das indústrias que mais cresce no mundo é a de segurança, a estimativa é que até 2020, a receita global do setor deve atingir US$ 240 bilhões, no Brasil a média anual de crescimento do mercado é de 8% e movimenta mais de R$ 70 milhões.
As pessoas precisam ter medo para blindarem seus carros, contratarem empresas de segurança, instalarem câmeras, alarme no carro, segurança particular, condomínios, aumento dos muros, sem contar, os milhares de produtos que são comprados diariamente quando os temos roubados. Roubam um celular hoje, amanhã compram um melhor, roubam a televisão, outra nova a substituiu, levam os carros, mas o seguro cobre. O medo imposto pelo Estado gera dinheiro para o governo e milhares de empresas, então crianças ficam à mercê da própria sorte, mais um bandido, mais alguns reais no bolso do mundo capitalista.
Governo e empresas matam sem sentir, mas quem atira também morre. Eles não foram despejados, foram jogados na rua tal qual lixo.
Crianças da comunidade Jd. Humaitá despejadas pelo Governo. Fotos: Cadu Bazilevski e Lucas Martins / Jornalistas Livres
Estatuto da Criança e ao Adolescente: Parágrafo único. Os direitos enunciados nesta Lei aplicam-se a todas as crianças e adolescentes, sem discriminação de nascimento, situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença, deficiência, condição pessoal de desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica, ambiente social, região e local de moradia ou outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou a comunidade em que vivem.