Elisa Lucinda: “Equívocos de uma exclusão” ou “Os componentes da guerra”

Elisa Lucinda
Elisa Lucinda
Estou ensaiando em Brasília L, o musical, uma peça cuja história é absolutamente lésbica e cujas personagens gravitam à volta do tema do amor entre mulheres. Peço então agora, meus senhores e senhoras, a atenção ao tema. Vamos olhar para este assunto com o que meu amigo querido, “filósofo” pop, pensador, produtor e agitador cultural Diogo Rodrigues, chama de “comunicação compreensiva”, a prática da anti-intolerância.
 
Então, vamos lá: Quando Sérgio Maggio, jornalista, escritor, dramaturgo e diretor, me convidou para tanto, o primeiro espanto foi concluir que, em trinta anos de carreira, é a primeira vez que me convidam para interpretar uma mulher que gosta de namorar outra mulher. Que absurdo! Então a ficção está atrasada assim em relação à realidade? Então a ficção ainda está tímida para contar as inúmeras histórias de amor e os dramas que envolvem romances homoafetivos? Então a ficção está desatualizada, é discriminadora, fixando o seu protagonismo somente no amor heterossexual? Então essas histórias não merecem ser tratadas na arte? Ó, ficção, estás desatualizada, sim!
 
Para viver a minha Ester, a primeira coisa que tomei emprestada é a sensação de opressão que eu sinto por ser negra. As opressões se igualam quando são eficazes e provocam mal-estar, inibição, exclusão. Conheço isso. Conhecemos. Tanto eu, quanto minha assistente, Taís Espírito Santo, quanto minha empregada doméstica, Valéria Falcão, quanto Lázaro Ramos, quanto Flávia Oliveira, quanto Mariana Nunes, quanto Djamila Ribeiro. Todos negros. Todos os negros. Numa sociedade com forte fundamento escravocrata conhece-se logo cedo as crueldades desse delírio de superioridade branca que se incrustou numa banda do mundo e nela ainda manda e desmanda.
 
A grande lição da vida tribal ou em cooperação coletiva é a da compaixão, o colocar-se no lugar do outro. Sem altruísmo, sem alteridade, sem brincar de ser o outro (tal qual os atores fazem profissionalmente), não há possibilidade de uma sociedade harmônica e justa.
 
Então, eu peço a você que odeia viado, que não perdoa a diferença, você que “aceita”, você que acha que a pessoa lésbica tem algum problema, algum defeito de fábrica, você que acreditou quando afirmaram que isso é coisa do diabo; eu peço a você, que reconsidere a questão e se coloque no lugar desse outro. De verdade. Você aguentaria a chacota?
Ninguém é gay ou lésbica contra ninguém não. Não é crime. Não é fácil ser condenado pela sua natureza. Senão, vejamos: como deve ser difícil ser um homem com real atração por outro homem sendo obrigado a esconder isso em todos os lugares… Nos colégios, no trabalho, festinhas e bares. Como deve ser opressor ser casado com uma mulher sendo em verdade no fundo uma bicha presa no armário. E uma bicha preta? Com quantos estereótipos tem que brigar para ainda ouvir: “Que desperdício um negão desse!?”
 
Parto desse lugar para, usando o nome do livro do meu querido Lázaro Ramos, sugerir que “Na minha pele” para ler essa realidade. Ou seja a pele da personagem que representarei no teatro, a pele do seu vizinho, sua colega de sala, sua aluna, seu chefe, que você nunca engoliu por causa “disso”.
 
É tão maluco o preconceito que chegou a cobrir de cegueiras o olhar preconceituoso, deturpou e trouxe para tais grupos excluídos uma pecha, uma marca, uma alcunha permanente de mau-caratismo. E é isso o tempo inteiro o que se faz; comete -se diariamente injustiças. O cara fez alguma coisa errada, bateu, roubou, atentou contra o coletivo, alguém sempre acrescenta: “também, viado, né?” Como se houvesse uma lógica. Como se isso quisesse dizer que ser gay é uma coisa relacionada ao caráter. E pejorativamente, sempre. Isso é muito cruel, extremamente cruel, mau, porque gostar de homem ou de mulher não dá a ninguém nem ao heterossexual, nem ao homossexual, nenhuma atribuição do ponto de vista do caráter.
 
Pode se pressupor que sejam pessoas mais livres, mas nem sempre essa recíproca é verdadeira, nem sempre escapa-se dos “ismos” ou seja, os machismos, dos racismos, dos sistemas de opressão que estão incrustados nas relações de trabalho, nas relações sociais.
 
Inclusive entre gays e lésbicas.
Me dei conta de que em minha vida, das coisas mais maravilhosas que eu tenho, muito dessas coisas maravilhosas, eu devo ao meu encontro com os gays na dramaturgia da minha vida, no novelo do meu destino, no enredo existencial que eu compus até agora, que nós compusemos até agora: Minha arte, a possibilidade de exercê-la. A possibilidade de vivê-la em outra cidade. Stravinsky, Grotowski, Ravel, Villa-Lobos, Bidu Sayão, Jorge Mautner, Itamar Assumpção, Carmina Burana, foram palavras que ouvi primeiro da boca dos gays. Meu filho amado, muitas associações de trabalho, muitos afetos indescritíveis nos cânones dos afetos, todo este tesouro eu vivi e tenho por causa do meu encontro com o mundo gay e lésbico.
 
Esse é o meu Grito. Estamos sendo injustos. E estamos iludidos. Nossos médicos, grandes médicos, pessoas que fizeram arte e ciência no mundo, enfim nossos dentistas, nossos advogados… Há milhares deles que gays espalhados neste mundão. Tem muita sapatice entre jornalistas, atrizes , cantoras que amamos; muitas mulheres que namoram mulheres e que são extremamente brilhantes no trabalho; que sem elas o mundo seria muito pobre. Como se ama e se admira essas pessoas e, muitas vezes sem saber ou sem perceber sua preferência de objeto de desejo erótico, fica tudo certo.Mas há aqueles que quando esta verdade é revelada se sentem traídos. Como no caso de Daniela Mercury que recebeu graves violências, fruto da mente fechada de alguns fãs, ou que se diziam fãs.
 
Então, é muito ridículo que sigamos nessa ignorância burra, de excluir o que julgamos desconhecer e o que julgamos errado só porque não é como a gente.
 
Pude ouvir, ao longo da minha vida até aqui, grandes depoimentos comoventes, sabe? De amigos que me contaram o quanto sofreram. Crianças aterrorizadas com a própria verdade. É só um tipo de gente, gente! Uma variedade. Há aqueles que foram criados na igreja católica, por exemplo, que tinham que confessar os seus pecados. E como confessar que desejavam o coleguinha, a coleguinha? Nossa, são gerações que sofreram muito, meu Deus! Demais, demais, demais. Não é exagero reiterar. Mulheres que casaram com homens sem gostar e que sofriam muito na hora da relação, porque transar com quem a gente não sente atração… É um martírio. Deve ser. Eu acho. Trata-se de uma experiência contra a própria natureza da experiência sexual.
Talvez tenhamos em nossas famílias histórias ocultas. Aquele tio que ninguém comenta ou que todos comentam. Aquela tia que nunca se casou. Só sofreu o olhar cruel e o dedo apontado. Por quê? Qual é o delito?
 
Me valho de todas as histórias que eu ouvi. Me valho das convivências com essa tribo multifacetada que enriquece o mundo, o nosso mundo, para fazer L’, o musical, para viver a minha Ester, para exibir nossa viagem. (Somos seis atrizes, cinco são héteros), pela experiência da vida desse outro, dessa outra cidadã que merece e exige respeito. Estou adorando.
 
O teatro possibilita o exercício de nossas variações. E de nossa imensa pluralidade. Mas não restringe aos atores a possibilidade de compreensão da história do outro, se colocando em seu lugar, o mais profundo e honesto que se conseguir. Não é exercício fácil. Há fantasmas do superego de plantão. Mas vale a pena.
 
No caminho da reflexão para escrever essas linhas juntei vantagens incríveis da presença das relações homoafetivas no mundo, e que melhor este mesmo mundo.
 
Afinal o que é a luta anti-homofobia senão um pedido desesperado de paz? Nenhum cidadão ou cidadã pode ser agredida por causa de sua vida amorosa, e muito menos ser duplamente vitimizado ou vitimizada quando cria coragem pra denunciar a barbárie.
 
O espirituoso Roberto Samico costumava dizer para as pessoas heteros: “Ah, lá na sua família ninguém é gay, trans ou lésbica? Que pena, né, não tiveram essa sorte!”
 
Faz sentido. Sem esses e essas, muitas mentes morreriam sem se abrir. Quantos entendimentos da vida a presença destas pessoas não provocou? Duas amigas minhas, são um casal aqui em Brasília, acabaram de adotar dois meninos, um de 15, outro de onze anos. Irmãos. Os meninos estão felizes, com aparelhos nos dentes, escola boa e duas mães. Qual o absurdo? Nenhum. Conheço gente com duas mães. Dois pais. O que sei é que, esses e essas que amam pessoas do mesmo sexo formam casais que despontam cada vez mais na pratica da adoção de crianças, e são também campeões na preferência pelos maiores. Estes, coitados, costumam ser abandonados por todos os lados e mofam até os dezoito anos no abrigo onde cresceram na ilusão desta esperada hora.
 
Se fossemos revirar o mundo concluiríamos que vemos disparates criados por nossa ignorância no lugar de enxergarmos imensas belezas.
 
É sério. Tenho passado a semana toda em Brasília mergulhada no tema. Tentando encontrar em mim a lésbica que eu seria, se fosse. Estou aqui sendo estudante do outro, da outra, de mim e da vida. Não é ruim não. Nos enriquece. Amplia. A prática da discriminação provoca cortes, desentendimentos, rupturas… A prática da exclusão gera equívocos, distorções da realidade, produz intolerâncias, radicalismos, mortes inexplicáveis, torpes, indefensáveis. Que, não por acaso, são os componentes da guerra.
 
Elisa lucinda, inverno. 2017.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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