Economia para Trabalhadores – Aula 2

Aula 02 – Como circula nosso dinheiro e o do governo

Já ouvimos muitas vezes, em filmes, a expressão “siga o dinheiro”. A indicação que a expressão nos dá é que seguindo o dinheiro descobriremos a trama. Como no famoso caso Watergate, em que o presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, perdeu o cargo quando dois jornalistas, que “seguiram o dinheiro”, encontraram provas de que uma invasão ao escritório dos democratas, adversários de Nixon, tinha sido financiada por um comitê de sua campanha à reeleição.

Igualmente em economia, seguir o dinheiro muitas vezes nos revela o que está oculto nas aparências. Esse será o tema desta aula.

Em primeiro lugar, para simplificar, vamos imaginar como seriam os fluxos de dinheiro se não existissem nem governo e nem outros países. Nesse caso a circulação se daria somente entre as empresas e as pessoas.

Os trabalhadores “vendem” sua capacidade de trabalho para as empresas e recebem salários. As empresas, por outro lado, recebem das pessoas, em geral, e recebem de outras empresas pelos produtos que vendem.

Pensando no conjunto de empresas e no conjunto de trabalhadores, eliminaremos as transações entre empresas e entre trabalhadores. Ficaremos com o fluxo que sai do conjunto de empresas em direção aos trabalhadores, os salários, e o fluxo que sai do conjunto dos trabalhadores em direção ao conjunto de empresas, o consumo dos trabalhadores.

Esses fluxos juntos formam o que os economistas chamam de fluxo circular da renda porque os recursos que saem das empresas para as pessoas voltam para as empresas quando as pessoas consomem e vão circulando desse modo “para sempre”.

Esse raciocínio é importante para perceber que são as pessoas que, no final, compram os produtos de consumo que a empresa produz. Se as pessoas não tiverem recursos para consumir, as empresas não sobreviverão. O capitalismo precisa transformar os trabalhadores em assalariados e, também, em consumidores.

Os trabalhadores, geralmente, têm pouca chance de guardar parte do dinheiro que ganham porque o valor que recebem é, muitas vezes, insuficiente até para as necessidades do dia a dia de suas famílias. Assim, podemos imaginar que tudo que o trabalhador recebe tende a voltar para as empresas.

Por outro lado, o sócio da empresa, ou quem tem dinheiro para emprestar para ela, gasta uma parte do que recebe, mas guarda outra parte. Porque geralmente o que recebe é mais do que aquilo que precisa para viver. A decisão de investir o lucro em novos equipamentos, novas máquinas, novas fábricas etc. cabe aos empresários.

Vejamos a explicação do economista Michal Kalecki (1899-1970) sobre como as decisões dos empresários determinam seus lucros:

“Podemos considerar em primeiro lugar os determinantes dos lucros em um modelo fechado, no qual tanto os gastos do setor público como a tributação sejam desprezíveis.

O produto nacional bruto, portanto, será igual à soma do investimento bruto (em capital fixo e estoques) e o consumo.

O valor do produto nacional bruto será dividido entre trabalhadores e capitalistas e nada, praticamente, será pago como impostos. (…)

Temos assim o seguinte balanço do produto nacional bruto, no qual fazemos a distinção entre o consumo dos capitalistas e o consumo dos trabalhadores:

Lucros brutos + Salários e Ordenados = Produto Nacional Bruto

Investimento bruto + Consumo dos Capitalistas + Consumo dos Trabalhadores = Produto Nacional Bruto

Se supusermos ainda que os trabalhadores não fazem poupança, o consumo dos trabalhadores será então igual à sua renda. Daí se conclui diretamente então que:

Lucros brutos = Investimento bruto + consumo dos capitalistas

O que significa essa equação? Quer dizer que os lucros em um dado período determinam o consumo e o investimento dos capitalistas? Ou o contrário? A resposta depende de qual dos itens estiver diretamente sujeito às decisões dos capitalistas. Ora, é claro que os capitalistas podem decidir consumir e investir mais num dado período que no procedente, mas não podem decidir ganhar mais. Portanto, são suas decisões quanto a investimento e consumo que determinam os lucros e não vice-versa.” (1)

Começamos excluindo o governo e agora vamos voltar com ele para nosso quadro. Quando eu uso o termo governo, estou sempre pensando nas três esferas: municipal, estadual e federal.

Percebemos que o governo participa dos fluxos dos recursos de modo semelhante às famílias e empresas, recebendo impostos e pagando por seus gastos com funcionários públicos, com consumo e com investimento. Em outras palavras, o governo é uma mistura de “trabalhador”, quando gasta em consumo, com “empregador” quando paga salários e faz investimentos.

Uma coisa, no entanto é certa, o governo recebe os impostos e redistribui praticamente tudo o que arrecadou. O governo não costuma guardar dinheiro e, geralmente, gasta mais do que recebe. Aqui está uma grande briga: quem paga impostos sempre quer pagar menos, quem recebe do governo sempre quer receber mais, seja o funcionário que vende sua força de trabalho, seja o empresário que vende produtos de consumo ou de investimento, seja quem empresta dinheiro para o governo e quer receber mais juros, sejam os que recebem aposentadorias, pensões ou transferências assistenciais e querem receber mais.

Como se resolve essa distribuição? Politicamente. Quem tem mais poder político é quem ganha.

Vamos incluir o comércio exterior no nosso fluxo de renda. Como seria o pensamento dos exportadores? Temos que concordar que para eles, quanto menores forem os salários melhor, não é? Eles não dependem do consumo das famílias brasileiras para fazerem seus lucros. De todo modo injetam parte dos recursos que vendem para outros países na economia interna do Brasil ao pagarem pelos salários e pelos produtos que precisam para sua produção. Empresas nacionais ou estrangeiras que querem produzir aqui para exportar preferem que os trabalhadores recebam o mínimo e tenham o mínimo de direitos.

Sabendo disso, vamos tentar responder a seguinte questão: um aumento de salários favorece o aumento do consumo e pode ajudar empresas a fazerem mais lucros? É verdade que salários mais altos fazem as empresas gastarem mais com seus funcionários, mas, por outro lado, como a maioria das empresas vende para o mercado interno, elas têm chance de vender mais porque os trabalhadores terão mais dinheiro para gastar. Concorda?

Bem, aqui temos a segunda grande diferença entre ortodoxos e heterodoxos. Os ortodoxos argumentam que um aumento nos salários é prejudicial para a economia: sobem os custos da empresa, os recursos para investimento diminuem e, no final das contas, haverá menos crescimento e menos oferta de empregos.

Os heterodoxos caminham em direção oposta: melhores salários produzem mais procura para os produtos das empresas que, ao venderem mais, terão mais lucro e tenderão a investir e criar mais empregos. Para Keynes, que era crítico feroz da ortodoxia, o empresário produzirá a quantidade que acha que vai conseguir vender e que lhe dê lucro. A decisão de investir ou não é responsável por aumentar ou diminuir o emprego.

Qual das duas lógicas faz mais sentido para você?

Um exemplo disso foi a decisão do governo de investir na realização da Copa do Mundo de 2014. Foram muito discutidos os gastos com estádios. Foi dinheiro jogado fora? Vamos pensar no fluxo do dinheiro.

No caso da Arena Corinthians, os recursos para a construção vieram do clube, da construtora e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, o BNDES.

O BNDES recebe dinheiro emprestado do governo para financiar principalmente investimento de longo prazo das empresas. Então, teve dinheiro do governo na Arena Corinthians? Sim, teve. O governo emprestou para o BNDES que repassou para o clube. Mas você percebeu que esse dinheiro não foi doado, foi emprestado? Se o Corinthians não pagar, perderá o estádio.

Além disso, o dinheiro foi jogado fora? Vamos pensar para onde foram os recursos colocados na construção? É certo que não se fez uma fogueira com o dinheiro: parte importante dos recursos foi paga em salários de todos os trabalhadores da obra, desde engenheiros até os peões da obra. Quase todo esse dinheiro virou consumo e ajudou a economia a funcionar em anos de uma enorme crise econômica internacional, como 2013 e 2014.

Outra parte importante do investimento virou lucro das empresas que atuaram na obra. Essa grana vai para as famílias donas das empresas e salários dos funcionários dessas empresas. Parte virou consumo e parte virou poupança. Aqui também não foi feita uma fogueira com os recursos, embora uma parte pequena, o lucro, não tenha voltado para a circulação.

Aqui é preciso acrescentar a corrupção. Primeiro, para dizer que acho que a punição a corruptos e corruptores precisa ser muito mais rigorosa do que é hoje. A Justiça precisa mostrar para nós que não protege poderosos políticos de nenhum partido e de nenhuma empresa. Entretanto, do ponto de vista econômico, até o recurso da corrupção, se existiu, entrou no “sangue” da economia como consumo e parte virou poupança.

Mas, então, por que as televisões, rádios, revistas e jornais criticaram tanto os investimentos da Copa? Essas críticas têm um nome: luta política para enfraquecer os adversários na eleição presidencial que viria em 2014. A imprensa não tem os mesmos interesses dos trabalhadores e, na maioria das vezes, coloca-se em defesa dos interesses dos grandes empresários e do poder econômico.

Você concluiu que foi errado investir nas obras da Copa?

Claro que podemos concluir que a prioridade poderia ser outra, mas não se pode dizer que o dinheiro foi jogado fora. Também não se pode negar que as obras injetaram sangue na economia num momento difícil da economia mundial.

Vamos pensar juntos para onde vão os gastos do governo? Uma parte importante da grana que o governo recebe através dos impostos é gasta com salários dos funcionários públicos, com manutenção dos serviços e com investimentos. Os governos, municipais, estaduais e federal, são responsáveis pela saúde, educação, assistência social, cultura; por políticas públicas de garantia de infraestrutura urbana como transporte, iluminação pública, asfalto, água, esgoto; pelos investimentos na infraestrutura e na construção de equipamentos sociais (hospitais, escolas, praças públicas etc.).

Os gastos do governo englobam também tudo que vai para a assistência social, como o Bolsa Família e os benefícios para quem não pode trabalhar. Voltaremos aos gastos do governo. Mas, por enquanto, é importante saber que podemos, e devemos, discutir sempre se o uso que o governo faz dos recursos é o mais adequado, mas não podemos qualificar todo gasto do governo como ruim.

Vou propor outro ponto: Quando o Banco Central aumenta os juros todas as pessoas que devem dinheiro pagam mais, está certo? Um dos que mais devem dinheiro é o governo. Então, um aumento de juros faz o governo gastar mais.

No ano de 2014, os juros nominais, pagos pelo governo, federal, estaduais e municipais, atingiram R$311,4 bilhões (6,07% do PIB), comparativamente a R$248,9 bilhões (5,14% do PIB) em 2013. Para termos uma ideia de comparação, ressalto que gastamos perto de R$ 25 bilhões com o Bolsa Família em 2014. Ou seja, em 2014 gastamos com juros cerca de 12 vezes o gasto com o Bolsa Família.

Nos 12 meses, entre agosto de 2017 e julho de 2018, a conta de juros do setor público consolidado alcançou R$ 395 bilhões. (2)

Os governos emitem títulos para financiar suas dívidas. Esses títulos são vendidos para bancos, para fundos de investimentos e para pessoas físicas e jurídicas. Os compradores recebem o valor que aplicaram mais os juros. Então, quem recebe os juros pagos pelo governo (311 bilhões em 2014) é quem tem dinheiro aplicado no mercado financeiro. É possível dizer, assim, quem os juros concentram a renda, ou seja, canalizam uma parcela enorme dos gastos do governo para quem já tem muito dinheiro. E juros mais altos concentram mais ainda.

Você já viu algum economista nos meios de comunicação reclamando que a taxa de juros está muito alta? Concentrar dinheiro nas mãos de quem já tem é parte do receituário ortodoxo. A lógica deles é que os ricos e os empresários podem investir e gerar empregos e fazer o país crescer. Mas a realidade é que parte muito grande desses juros é reaplicada em títulos do governo e gera mais juros ainda e nenhum emprego.

*  César Locatelli é economista e mestre em economia

Notas

1 KALECKI, Michal. Teoria da Dinâmica Econômica, São Paulo, Editora Nova Cultural, 1977. (p. 65/66). Para baixar o livro Teoria da Dinâmica Econômica de Michal Kalecki: http://www.projetos.unijui.edu.br/economia/files/Kaleki.pdf

2 Para ver o resultado fiscal do governo de julho de 2018: https://jornalistaslivres.org/sem-estabilidade-politica-nao-ha-crescimento/

Índice

Introdução

Aula 01 – A economia é política

Aula 02 – Como circula nosso dinheiro e o do governo

Aula 03 – A cara e a coroa da inflação

Aula 04 – Ninguém come PIB

Aula 05 – O governo não é como sua casa

Aula 06 – O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil?

Aula 07 – Compro à vista ou compro a prazo?

Aula 08 – Nossa moeda é fraca, nossa moeda é forte

Aula 09 – A Bolsa de Valores

Aula 10 – Quem nasceu primeiro a poupança ou o investimento?

Aula 11 – A culpa da corrupção não é da Petrobras

Aula 12 – A corrupção, a sonegação e o financiamento das campanhas eleitorais

Aula 13 – Onde buscar dados e informações

Aula 14 – Seu voto baseado na política econômica

Considerações finais

COMENTÁRIOS

POSTS RELACIONADOS