Desmontamos a farsa que incriminou Preta e os movimentos de moradia

Arte, limpeza e extintores de incêndio: registro atual de um dos andares da ocupação 9 de Julho, do MSTC, já com as orientações da comissão da Prefeitura cumpridas

Por Santiago Gómez, especial para os Jornalistas Livres

Uma denúncia anônima copiada de um post das redes sociais. Reconhecidas lideranças de movimentos sociais com CNPJ chamadas de “pessoas travestidas de lideranças sociais”. Transcrições de grampos no processo, nos quais as lideranças contam que evitaram o ingresso do PCC nas ocupações enquanto a polícia afirma que os movimentos estão ligados ao crime organizado.

A polícia e o Ministério Público pediram a prisão de Carmen Silva do MSTC por acusações pelas quais já foi processada e inocentada. É uma violação do princípio legal de que uma pessoa não pode ser julgada duas vezes pelo mesmo fato. Há acusações de que os movimentos de moradia obrigam as pessoas a trocar o título de eleitor para votar no PT. Mas o processo não menciona que é preciso informar o documento para ter acesso aos programas sociais estaduais e municipais. Relatórios de inteligência da polícia afirmam que as ocupações representam um risco para a saúde. E esses mesmos relatórios afirmam que investigadores nunca conseguiram ingressar nas ocupações. Fica difícil não acreditar que se trata de um processo de criminalização dos movimentos sociais?

Jornalistas Livres teve acesso ao inquérito pelo qual foram pedidas as detenções de 19 pessoas, às quais são parte de movimentos sociais diferentes. A maioria não tem ligação nenhuma com o Edifício Wilton Paes de Almeida que desabou em maio do ano retrasado e era organizado por Ananias Pereira dos Santos, do Movimento Social de Luta por Moradia (MLSM).

Conforme assinado pelo delegado Newton Fugita, em 4 de maio de 2018, instaurou-se o inquérito policial “tendo em vista os fatos que chegaram ao meu conhecimento por meio de mídias e reportagens referentes à invasão ilegal de prédio que veio a ruir no centro desta municipalidade”. As primeira 15 páginas do processo são cópias de matérias de jornal. Na folha 16, foi incorporada a famosa carta anônima sobre a qual falou o delegado na coletiva de imprensa que brindou após as detenções de Sidney Ferreira Silva, Janice “Preta” Ferreira Silva, Edinalva Silva Franco e Angélica dos Santos Lima.

A “missiva endereçada à Delegacia Geral da Polícia – DGP, cujo autor refere fatos relacionados à invasão do Edifício Wilton Paes de Almeida”, é a impressão de uma postagem realizada em redes sociais. Tanto é assim que quem entregou a nota esqueceu de apagar o trecho “este post está sendo publicado às 14:34”. Na mesma carta, o MLSM (Movimento de Luta Social por Moradia) é acusado de expulsar as pessoas que atrasam no pagamento da contribuição, de trancar as portas das ocupações a partir das 19h. Quem copiou o post das redes, imprimiu e o entregou para a policia com um trecho escrito à mão: “isto ocorre em todos os prédios invadidos”.

 

 

O delegado geral da polícia, o adjunto Waldir Antonio Covino Junior remeteu a missiva para o Departamento Estadual de Investigações Criminais – DEIC, e o diretor do DEIC, Emygdio Machado Neto, encaminhou o expediente à Divisão de Investigações Gerais – DIG. O delegado desta repartição, Newton Fugita, por sua vez enviou um ofício à Secretaria de Habitação da Prefeitura solicitando informações sobre os prédios ocupados na cidade de São Paulo. Toda essa burocracia do Estado, vale ressaltar, foi acionada pela cópia de uma postagem nas redes sociais.

51 vistorias e 3 interdições da Prefeitura

No processo, está anexado o chamado “Relatório de Investigação”, elaborado pela equipe da polícia “Venus 54”. Trata-se de um compilado de 21 páginas – 18 delas de fotos das fachadas de prédios – em que os policiais afirmam que nas ocupações visitadas “famílias inteiras residem sem qualquer norma de segurança, sem condições adequadas no tocante a limpeza, higiene, ainda expostos a todos os riscos nocivos a saúde pessoal de cada pessoa ali residindo”.

Vale comparar a conclusão dos investigadores com um outro relatório mas feito pela Prefeitura a partir de visitas técnicas em 51 ocupações realizadas entre os dias 7 de maio e 14 de julho de 2018. O informe “Situação das ocupações na cidade de São Paulo”, de 34 páginas, é assinado por um grupo executivo formado por representantes das secretaras de Direitos Humanos, Assistência Social, Infraestrutura e Obras, Habitação, Segurança Urbana e GCM (Guarda Civil Municipal), representantes de universidades definidas pela sociedade civil, movimentos de moradia, Ministério Público e Tribunal de Contas. A conclusão é bem diferente da polícia: “de acordo com os dados, as condições físico-estruturais dos imóveis apresentam-se, de modo geral, satisfatórias, não se identificando a incidência de patologias em nível crítico que comprometam a função estrutural das edificações”. E tem mais.

Segundo a Prefeitura, “a vinculação com Movimentos de Moradia apresenta-se como facilitador para a implementação de ações de requalificação de segurança dado o maior grau de organização identificado nestas ocupações”. Apenas três foram interditadas. Vale lembrar: 51 foram visitadas.

 

Além da falta de competência para uma equipe da polícia afirmar tamanhos riscos, cabe até duvidar se efetivamente foram feitas as diligências encomendadas já que as fotos de todos os prédios incorporadas no relatório foram tiradas do Google Maps. Outra equipe responsável citada no inquérito, a Vênus 53-A, afirmou que, de fato, sequer conseguiu ingressar nas ocupações.

O relatório da equipe Venus 54 é o último anexado ao inquérito antes do mandado de prisão temporária solicitado pelo delegado André Vinicius Alves Figueiredo, da 3º DIG/DEIC, no dia 10 de junho de 2019. Nele, afirma-se que “pessoas travestidas de lideres de movimento de habitação, de algum modo lucravam através de cobranças de ‘taxas’ ‘alugueis’ para que as pessoas realmente necessitadas pudessem usufruir da moradia invadida”. De acordo com os policiais, são indivíduos “extremadamente convincentes, que lideram pessoas com promessas falsas de habitação gratuita, porém quando as pessoas aderem a estas ordens são obrigadas a pagar mensalidades em forma de alugueis”. Essa afirmação é contraria a todos os depoimentos das testemunhas. Nenhuma das lideranças disse que morar nas ocupações seria de graça e todas as testemunhas reconhecem que deviam pagar uma  contribuição para a manutenção do prédio.

Seguindo a teoria penal das convicções e não das provas, após o relatório da equipe Vênus 54, o delegado Alves Figueiredo, pediu mandados de prisão, em letras maiúsculas, para “ADRIANA, ELIZETE, LILIANE, WELITA, ELISABETE, JANICE, EDNALVA, SIDNEY e ANGÉLICA”, “sobre os quais tenho plena convicção da autoria dos delitos de extorsão e associação criminosa, em virtude do robusto conjunto probatório coligido dos materiais até aqui, inseridos neste inquérito”.

Quais são esses materiais? O mesmo delegado responde “no curso das investigações foram ouvidos moradores de diversos prédios ocupados pelos movimentos”. Não há mais que testemunhas.

Das acusações

Em linhas gerais, o relato da acusação contra os movimentos sociais é o seguinte: todos eles seriam parte de uma organização criminosa com o objetivo de extorquir as pessoas pobres, cobrando por viverem nas ocupações, as quais não teriam condições mínimas de habitação. Além disso, as lideranças, quaisquer delas, obrigariam as pessoas a trocar de endereço para São Paulo para votar no PT e após a votação pediriam o comprovante. Segundo uma testemunha, até a líder Carmen Silva, do Movimento Sem Teto do Centro, teria acesso às urnas, que são eletrônicas!

Mas, as próprias testemunhas protegidas que acusaram Carmen reconhecem que as ocupações são pintadas, que os moradores são responsáveis pela limpeza dos prédios, que há câmeras de segurança, que aqueles profissionais pedreiros ou encanadores colaboram nas obras, deixando os prédios “bem bonitinhos”, nas palavras de uma das testemunhas.

Outra acusação é que os movimentos obrigavam os moradores a participar de atos pro Lula e Dilma. A quantidade de pessoas que se mobilizaram para pedir a liberdade de Preta, Sidney, Ednalva e Angélica provam que os movimentos não têm muita capacidade de obrigar as pessoas a se mobilizar. O MSTC, que reconheceu contar com cerca de 3 mil pessoas, não conseguiu reunir mais de 40 integrantes na porta da Delegacia quando as lideranças foram presas.

Para que mudar o título de eleitor?

Enquanto a Polícia e o Procurador afirmam que os movimentos obrigavam os moradores trocar o título de eleitor para votarem no PT, a realidade é que o título de eleitor é um dos documentos que, conforme informa a Secretaria Estadual de Assistência e Desenvolvimento Social de São Paulo, serve para a inscrição no Cadastro Único. Ou seja, o credenciamento “para que as famílias de baixa renda possam acessar serviços, programas e benefícios sociais da Política de Assistência Social e outras políticas públicas dos Governos Municipal, Estadual e Federal”, como consta no site oficial da instituição. “Com o Cadastro Único, o governo fica sabendo quem são e como vivem as famílias, quais são as principais dificuldades que a família enfrenta e como pode melhorar as condições de vida dos cidadãos”.

Então, é lógico que movimentos como o MSTC, que contam com a colaboração de assistentes sociais, sugiram aos moradores trocarem seu título eleitor. É lógico que nem a Polícia Civil nem a Polícia Federal nem os Procuradores fazem parte das famílias de baixa renda e desconhecem essas informações. Para eles, a mudança do título de eleitor é apenas uma operação com fins políticos.

Quais vínculos com o PCC?

Com base em uma interceptação telefônica, o delegado da 3º DIG/DEIC, André Vinicius Alves Figueiredo, afirma que Ednalva estaria envolvida com o crime organizado. A transcrição do áudio é contraditória a essa afirmação. O O texto literal da folha 530 do inquérito é:

“No dia 23/10/2013, às 17h06m13s, a investigação observou uma ligação oriundo do terminal móvel (11) 9XXX-XXX5 (N.E: reservamos o número), uma uma mulher alcunhada de “net”, liga para a investigada Ednalva e diz que esta recebendo uma família, tratando-se de família do “coquinho” e que estavam na calçada e queria entrar na ocupação para tomar um banho. Edinalva explica que tal pessoa não tem boa índole e gosta de arruma confusão e diz, in verbis: ‘Ele chamou o P.C.C para mim… esse cara articulou pra tomar a ocupação da Carmem, depois para tomar a minha… esse cara morava no Marrocos, ele e o capeta na forma de gente. Em seguida ‘net’ passa o seu terminal móvel a pessoa alcunhada de ‘Shi’ e Edivalda menciona com o novo interlocutor, dizendo, in verbis: ‘Tentou tomar a ocupação de Carmem, tentou tomar minha ocupação, trazendo uns caras lá não o que do norte, sabe? … é… a família do Norte… uns caras que saiu da cadeia aí, e era desta facção família do norte”.

No áudio fica claro que Ednalva quis evitar o ingresso de uma pessoa ligada ao PCC e essa pessoa tentou tomar a ocupação dela e da Carmen.

Em entrevista à Rádio Brasil Atual, Preta Ferreira afirmou que ela e Carmen foram ameaçadas pelo PCC e que a polícia se esforça para afirmar que os movimentos de Ednalva e Carmen têm algum tipo de envolvimento com o crime organizado. Cabe salientar que o Delegado, na coletiva de imprensa após as prisões das quatro lideranças, afirmou que a polícia não achou nem drogas nem armas quando foram feitas as buscas e apreensões.

Carmen inocente

Carmen Silva já foi acusada por extorsão e inocentada. Os depoimentos contra ela foram exatamente os mesmos, acusando-a de extorquir moradores, de ameaças, mas todas as testemunhas reconheceram as reformas feitas nas ocupações. O juiz na sentença afirmou que “ainda que tivesse a acusada agido de forma incisiva e ríspida contra as vítimas Alfa e Beta, em razão do comportamento dessas na ocupação e também da recusa em cumprir decisões proferidas em assembleias, seguindo previsão estatutária, suas condutas não podem ser, de forma alguma, equiparadas ao grave crime de extorsão”.

Enquanto foram pedidas as prisões de 19 pessoas, na base de acusações orais, sem prova nenhuma, o juiz que inocentou Carmen sentenciou: “A prova oral produzida em juízo é frágil e insuficiente para demonstrar que a acusada se apropriou indevidamente de valores arrecadados das vítimas ou outros ocupantes do edifício. As vítimas e testemunhas de acusação apenas acusaram Carmen, mas não trouxeram nenhum elemento concreto de prova. Pelo contrário, a defesa anexou aos autos notas fiscais e ata de assembleia demonstrando a destinação das contribuições individuais que cada família deveria pagar para suportar as despesas mensais do edifício. E mais, as acusações narradas e trazidas aos autos, sob o crivo do contraditório, mostraram-se inconsistentes e contraditórias”.

Carmen Silva já foi julgada e inocentada pelas mesmas acusações e a lei proíbe uma pessoa ser julgada duas vezes pelo mesmo fato. Não existem provas contra Preta, Sidney, Ednalva e Angélica, mais que as testemunhas. Todas elas tinham direito de acompanhar o processo em liberdade, nunca recusaram se apresentar quando assim a justiça solicitou. É difícil acreditar que os movimentos obrigavam os moradores a participar de atos, quando hoje com as suas lideranças presas não têm um amplo poder de convocatória. Afirmar que Carmen podia saber em quem votaram os moradores, é desconhecer como funcionam as urnas eletrônicas. Afirmar que as ocupações não tem condições mínimas, sendo que tiveram vistorias da Prefeitura e não foram interditadas, só prova o que o grupo Vênus da polícia afirmou: nunca conseguiram ingressar nas ocupações para conhecer a realidade das mesmas.

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