A última frase do filme “Democracia em Vertigem” de Petra Costa condensa todo o significado do processo que levou à eleição de Bolsonaro: Moro virou Ministro da Justiça de Bolsonaro e Lula permanecia preso. O documentário indicado ao Oscar mostrou a engenharia reversa do golpe de 2016 e de todo o processo que permitiu a ascensão da extrema-direita ao poder no Brasil em 2018.
Todos sabem que o filme não ganhou o mais conhecido prêmio do cinema, mas também sabem que, por outro lado, ganhou uma notoriedade inesperada que lhe deu a possibilidade de ser visto mundialmente. Foi o esse o grande incômodo dos bolsonaristas em relação ao filme de Petra: “Democracia em Vertigem” se tornou acessível a todas as pessoas interessadas pelo respeito à democracia e à igualdade em Melbourne, em Amsterdam, em Boston, em Nairobi, em Lima e em Hong Kong.
Desastre para o bolsonarismo! Agora qualquer pessoa, em qualquer continente, poderá conhecer o estilo brasileiro de fazer política! Basta sentar diante do televisor e sintonizar a Netflix! A grande força do filme de Petra reside na combinação entre a engenharia reversa e o espectador imparcial. Os seguidores do “mito” temem que a película mostre a esses estrangeiros os meandros do impeachment de Dilma e da condenação política de Lula. Os bolsonaristas odeiam o filme não por medo de que os gringos venham a interferir e a alterar a presente situação no Brasil após assistirem ao filme, mas sim porque ele convida o espectador estrangeiro a assumir o papel de espectador imparcial, uma função fatal para a narrativa criada pela direita brasileira.
Mas o que é engenharia reversa?
Na II Guerra Mundial, por exemplo, os ingleses desmontavam cuidadosamente os tanques alemães capturados em batalha para descobrir os seus segredos, engenharia reversa aplicada aos estudos militares. Quando um técnico desmonta uma bomba d’água para analisar os seus componentes, mesmo com pouco ou nenhum conhecimento adicional sobre os procedimentos envolvidos na produção final daquele objeto, ele encontrará peças e fios e tentará entender a função de cada um, a articulação entre eles, a sinergia gerada e o seu funcionamento final. Assim podemos afirmar que Petra fez a engenharia reversa do golpe de 2016; em vez de fios e peças de aço, ela encontrou e interpretou fatos que lhe permitiram desmontar a ficção criada pela direita brasileira para justificar a derrubada de Dilma.
O cuidadoso desmonte cinematográfico permitirá a um espectador imparcial avaliar adequadamente a última frase do filme.
Petra narrou as raízes históricas da democracia brasileira, com todas suas contradições e nos contou também sobre as suas próprias raízes, o engajamento revolucionário de seus pais, a dimensão burguesa da sua família, etc. A sua narrativa é minimalista porque expõe, com voz suave, momentos nodulares da nossa história, mesmo quando ressalta as condutas impróprias, inadequadas e autoritárias de muitos protagonistas. Petra adequou o grau de sua indignação até um limite que pudesse ser assimilado pelo espectador imparcial.
Conduta oposta adotou Janaína Pascoal, professora da USP e mentora jurídica do impeachment, quando aos gritos e com gestos espalhafatosos, comparou Lula a uma víbora e pediu a sua decapitação. Janína não soube controlar as suas paixões para não ultrapassar o ânimo normal do espectador. Espectadores em Melbourne e Hong Kong certamente ficaram chocados com a conduta de Janaína.
“Minimalista” não significa “imparcial”: quer dizer apenas que Petra tentou evitar os adjetivos exagerados e grandiloquentes. Creio que ela narra a história com o tom da indignação de que quem vê a democracia ser atropelada e colocada em quarentena. Acusar Petra de ser parcial é um elogio pois significa dizer, por um lado, que a diretora não é nem apática nem manipulada pelos interesses neoliberais e, por outro, que ela não é indiferente à sorte dos brasileiros.
No Brasil, o argumento ad hominem diz que que quem não concorda ponto por ponto com as minhas crenças é mal-intencionado, comunista e corrupto; ora, essa técnica erística já cumpriu o seu papel na construção do ambiente de ódio no nosso país. Os seguidores do “mito” repetem esse tipo de argumento à exaustão e isso não é um exemplo de imparcialidade. Soa muito estranho que os bolsonaristas acusem e condenem nos outros vícios e falsidades que eles mesmos praticam habitualmente, a saber, excluir, perseguir e ameaçar pessoas que pensam diferentemente deles.
E o que seria o espectador imparcial? Por qual razão o filme de Petra Costa, exibindo a engenharia reversa do golpe, encontrou naquele o terreno fértil para a semente da verdade? Adam Smith, no seu livro Teoria dos Sentimentos Morais, apresenta o conceito do espectador imparcial, um artifício teórico para pensar a objetividade na avaliação da justiça. Smith estava preocupado em ampliar a discussão para evitar o paroquialismo no plano dos valores e insistia sobre a necessidade de vermos nossas opiniões de uma certa distância. O conceito de Smith tinha o objetivo de analisar não apenas a influência do interesse pelo benefício próprio, mas também o impacto da tradição e do costume (Sen:2011:75). E, em termos de argumentação, a objetividade tem a ver diretamente com a possibilidade de sobreviver aos desafios da análise informada proveniente de direções diversas.
E esse é o supremo temor dos bolsonaristas: que, dos inúmeros rincões da Terra redonda, os gringos possam fazer análises informadas imparciais e alimentadas pelo filme “Democracia em Vertigem”. Ser imparcial seria adotar decisões morais não restritas apenas ao interesse pessoal (arrogância, egoísmo, prepotência, etc.) e adotar uma conduta ou ação de interesse social. Seria restabelecer a importância do interesse geral e mostrar a utilidade social da opinião. Seria igualmente reconhecer a necessidade de invocar como as coisas pareceriam para qualquer outro espectador justo e imparcial, incluindo os juízos feitos por pessoas desinteressadas de outras sociedades também – distantes e próximas (Sen:2011:155). Em outras palavras: para além dos patos amarelos, da doutrinação da mídia e dos slogans religiosos que hoje infectam considerável parcela das classes médias e baixas brasileiras, podem existir opiniões inteligentes.
O ódio ao filme de Petra Costa é a insistência em manter a compreensão parcial da ética e da justiça; o ódio a “Democracia em Vertigem” é o ódio ao esclarecimento; o ódio a esse filme que concorreu ao Oscar 2020 é o ódio à possibilidade do alargamento de perspectivas que as vozes de fora possam fornecer. É cômico e, ao mesmo tempo, constrangedor notar a raivosa impotência dos seguidores do “mito” quando constatam que não podem impedir alguém em Amsterdam ou em Nairóbi de assistir ao filme de Petra. Ao observador imparcial parecem pacientes de um hospital psiquiátrico envoltos em camisas de força, arreganhando os dentes para os psiquiatras e gritando impropérios.
Alexandre Costa é professor, doutor em filosofia e cinéfilo
Referências:
SEN, Amartya: A ideia de justiça, São Paulo: Companhia das Letras, 2011.