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Cristãos fascistas, como entender ?

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Por Durval Muniz de Albuquerque Jr.
Da Agência Saiba Mais

Um dos aspectos mais intrigantes e esdrúxulos do momento da sociedade brasileira é a adesão de setores religiosos, que se proclamam cristãos, à candidatura de extrema-direita de Jair Bolsonaro. Ainda recentemente, cerca de cem pastores se reuniram em Brasília e se definiram pelo apoio à candidatura do capitão. Havendo outros candidatos conservadores na disputa, inclusive que se dizem cristãos evangélicos, como Marina Silva, esses pastores resolveram orientar seus fiéis a votarem na candidatura mais extremista e que parece bastante distante dos valores pregados por Cristo. Enquanto Cristo pregou o amor ao próximo, amar o outro como a si mesmo, o capitão e seus seguidores tudo o que fazem é pregar o ódio, a intolerância, o desrespeito ao outro que pensa ou vive de modo diferente daquele que julgam ser o correto. Enquanto Cristo abominou tanto a violência a ponto de aconselhar que alguém uma vez agredido na face, deveria oferecer a outra a seu algoz, o candidato que se diz cristão incentiva a violência, a agressão, sugere que se deve matar seus adversários, tendo espalhado tanta raiva que ela acabou se voltando contra si. Afinal, Cristo também disse que colhemos aqui na terra o que plantamos.

Enquanto Cristo defendeu do apedrejamento a prostituta, desafiando que aquele que não tivesse pecado atirasse a primeira pedra, os cristãos bolsonaristas adoram atirar pedra sobre aqueles que vivem estilos de vida e têm comportamentos com os quais não concordam. O capitão é uma figura misógina e machista que trata as mulheres com desprezo, naturalizando a pretensa inferioridade delas. Diversas vezes fez apologia do estupro, e considerou uma derrapada ou uma fraqueza ter posto no mundo uma filha. Enquanto Cristo, ainda na cruz, perdoou o ladrão que estava a seu lado, o candidato da direita defende simplesmente a eliminação física, o assassinato de bandidos e malfeitores, o uso da violência, das armas e da matança para se resolver problemas sociais complexos. Enquanto Cristo pregou o perdão e a solidariedade, o capitão prega a vingança e a intolerância. Enquanto Cristo expulsou os vendilhões do templo, Bolsonaro, embora em adesivos seja considerado o último patriota, é o candidato do mercado porque tem um assessor para economia, Paulo Guedes, que se rege pela cartilha neoliberal e está disposto a vender o país para os interesses internacionais. Enquanto Cristo foi socorrido e teve sua sede aplacada por uma samaritana, uma mulher palestina que, já naquele tempo, era considerada pertencente a uma raça inferior aos judeus, o candidato de parcela dos militantes cristãos é explicitamente racista (embora os ministros do Supremo Tribunal Federal, possivelmente seus eleitores, não conseguiram ver racismo no capitão ter dito em alto e bom som que os moradores de quilombo nem para procriar prestavam), define os índios como vagabundos e como um entrave para o desenvolvimento do país, faz piadas de péssimo gosto com os grupos étnicos minoritários. Enquanto Cristo beijou leprosos e acolheu pessoas com toda sorte de enfermidades, que atendeu todos aqueles considerados párias da sociedade, o capitão faz da diferença um estigma, açulando os preconceitos sociais mais básicos contra os mais vulneráveis, açulando o ódio e a intolerância em relação a gays, lésbicas, travestis, transexuais, restituindo a ideia ultrapassada de que sejam doenças. Inúmeras vezes disse preferir que um filho nascesse morto a ser homossexual. A sua crueldade contra os mais vulneráveis é profundamente anticristão.

O mais chocante, no entanto, é ver pessoas que se dizem seguidoras e fiéis de um homem que foi vítima de tortura, que foi seviciado pelos seus inimigos e levado à morte infamante numa cruz, se colocar ao lado de um defensor da tortura, ter como candidato à vice-presidente um general que defende publicamente o assassinato de pessoas. Não sabemos qual a maior barbárie, se é daquele que defende tais ideias, ou se é daquele que segue e vota em uma pessoa como essa. Se é inegável que o pensamento cristão foi fundamental para o desenvolvimento do que chamamos de civilização ocidental, isso se deve pelo caráter humanista e generoso de muitas de suas formulações, independente do que os homens tenham feito ou façam com elas. Como seguidores de Cristo, um homem que foi flagelado a chicote, que teve sua fronte varada por espinhos de uma pretensa coroa, que teve que arrastar a pesada cruz de madeira onde iria ser morto por um longo trajeto em subida, que caiu algumas vezes, ferindo os joelhos, que teve pregos cravados nas mãos e nos pés, que padeceu fome e sede, que ao pedir água recebeu uma esponja embebida em vinagre, que teve seu flanco perpassado por uma lança e, mesmo assim, perdoou a todos, se colocam ao lado de um político que publicamente, num dos momentos mais tristes para a democracia brasileira, ofereceu o seu voto ao torturador da presidente da República, num gesto abjeto em que se reuniu machismo, misoginia e crueldade sádica.

Ainda hoje recebi em meu celular um print de uma conversa no Facebook em que uma mulher, o que causa mais pasmo, dizia que Bolsonaro iria dar vida e educação a seus filhos, quando ele nem sequer educação pessoal tem que dirá dar educação a alguém. Seus comportamentos e falas deseducam, são uma ameaça para nossas futuras gerações. Como alguém que só prega a violência e a morte pode dar vida a alguém? Cristo veio ao mundo para dar nova vida e foi morto pelas elites judaicas, pelos fariseus, os privilegiados da época, porque viram nele uma ameaça à ordem, um transgressor, um perigo para seus privilégios. Sua mensagem, pregando que os ricos teriam enorme dificuldade em entrar no reino da glória desagradou as elites econômicas, políticas e religiosas de seu tempo. Se existisse o termo, possivelmente ele teria sido considerado um comunista. No entanto, as ditas lideranças cristãs de hoje estão pouco dispostas a fazer o que Cristo aconselhou ao jovem rico que lhe procurou perguntando o que fazer para se salvar, ou seja, vender tudo o que tivesse e se juntar a ele. Ao contrário, muitos do que usam o seu nome, muitos dos que se juntam a Ele hoje é para enriquecer à suas custas, é para acumular fortunas em seu nome, construindo templos nababescos para alguém que passou sua vida a pregar em desertos, praias e montanhas, que dormiu ao relento com seus apóstolos e que no Sermão da Montanha ensinou a viver uma vida simples. Muitos desses que se dizem cristãos e apoiam Bolsonaro, como ele próprio, levam uma vida muito distinta daquela por ele ensinada. Enquanto ele amou os pobres, esses que bem poderiam ser nomeados de sepulcros caiados, como ele chamou aos hipócritas que também pululavam em seu tempo, se aproveitam das carências e da ingenuidade dos mais pobres, oferecendo milagres e graças em troca do pouco que possuem.

Cristo escolheu seus apóstolos entre os homens mais simples de seu tempo, entre os trabalhadores. Ele confiou seu legado e sua mensagem a um pescador. Enquanto hoje, aqueles que se reúnem em torno da candidatura de Bolsonaro o fazem para evitar que possamos ter um governo que volte a cuidar minimamente dos mais pobres, que reconheça os direitos dos trabalhadores, surrupiados pelo governo dos golpistas. Há no apoio a Bolsonaro uma clara recusa a um retorno a um governo preocupado mais com o trabalho do que com o capital, com o lucro, com a banca. Aquele candidato que pretensamente defende as famílias, porque se deixa levar por preconceitos moralistas em relação aos avanços civilizacionais realizados nas relações de gênero e nas próprias relações familiares, promete continuar realizando uma política econômica e desmontando as políticas sociais sem as quais não é possível sequer a existência de vida familiar. Políticas que jogam milhões de lares na miséria, no desespero, na falta de esperança, na violência, na criminalidade, podem ser tudo, menos favoráveis as famílias.

Mas, alguns elementos podem ser arrolados para que compreendamos de onde advém essa adesão de uma parcela expressiva dos cristãos e, mais particularmente, dos evangélicos à candidatura de Bolsonaro. Além do fato de que ele hipocritamente tenha ido se banhar no rio Jordão, se batizar e se dizer um evangélico, embora tudo que fale e muito do que faz seja uma negação desse cristianismo, ele atende a certos traços que, ao longo do tempo, marcou a produção de corpos e mentes entre os evangélicos que, durante muito tempo se constituíram em uma minoria religiosa, muitas vezes perseguida e estigmatizada no Brasil. A maioria das comunidades evangélicas surgiu a partir da atuação de missionários estrangeiros, que possuíam formas culturais diferentes e recusavam a se integrar a cultura brasileira, majoritariamente católica, considerada depravada e imoral, quando não diabólica. As comunidades evangélicas cresceram enfatizando suas diferenças em relação à sociedade inclusiva. O rigor das regras morais e de comportamento impostas visavam diferenciar essas comunidades dos católicos e, notadamente dos seguidores de religiões de matriz africana, contra os quais se tinha o maior preconceito. Esse isolamento e essa enfâse na diferença na construção da identidade evangélica, fez surgir entre os evangélicos uma ideia de pureza e superioridade em relação aos demais. Os convertidos a alguma religião evangélica, costumavam e costumam dizer que abandonaram o mundo, que se retiraram da vida mundana, passando a viver, pretensamente, uma vida sacralizada fruto da graça e da bênção. Esse pretensa aristocracia moral é um passo para a intolerância em relação a quem leva uma vida diferente ou tem valores e comportamentos distintos. O fechamento das comunidades evangélicas, agravado pelo preconceito que sofriam por parte dos católicos, se tornava e se torna um caldo de cultura para o desenvolvimento de uma subjetividade de grupelho, um investimento coletivo de desejo reativo a sociedade inclusiva e a quem a representa.

Diante da crescente fragilização dos vínculos sociais trazidos pela velocidade das mudanças em amplos aspectos da existência, diante da fragilização dos vínculos domésticos trazidos pela sociedade do capital, diante da destruição dos laços comunitários, com o crescimento da solidão e do isolamento, as denominações evangélicas, por não serem, em sua maioria, igrejas de massa como a Igreja Católica, podiam e podem oferecer um simulacro de vida comunitária e até de vida familiar alternativa. Pessoas sozinhas e perdidas encontram nas igrejas seus novos irmãos, constituindo subjetividades coletivas de fusão, marcadas por laços muito mais afetivos, passionais, do que racionais. Os outros, os diferentes, o mundo lá fora se torna aqueles que devem ser convertidos nesse dentro comunitário do qual não se considera mais possível sair ou viver sem ele. As comunidades evangélicas rapidamente se tornaram lugares em que um rebanho se forma em torno de um pastor que se intromete e dirige todos os momentos da vida do fiel. Isso foi um passo na direção de tornar as igrejas currais eleitorais dos pastores, com irmão votando em irmão, inclusive com o uso de recursos arrecadados entre os fieis para financiar campanhas. Uma instituição disciplinar e totalitária na qual só há obediência ou exclusão, expulsão. A busca por padronização das condutas, a vigilância constante que um passa a exercer sobre o outro, o medo do pecado, do demônio, das coisas do tinhoso, faz muitas pessoas se tornarem fóbicas sociais, com dificuldade de conviver com o estranho, com o distinto, disso é um passo para o ataque e agressão aquele que parece ameaçar de contaminação a pureza duramente conquistada, a custas de muita asceses e sacrifício de seus desejos. Os maiores inimigos se tornam aqueles que não se proíbem, que desfrutam de prazeres e alegrias que pretensamente comprometem uma vida verdadeiramente cristã. Esquecendo que Cristo fez questão de marcar a diferença de seu ministério ao iniciá-lo numa festa e realizando como primeiro milagre a transformação de água em vinho. Como muitos ao se tornar evangélicos transformam a água de sua vida em vinagre, só tem amargor e fel para distribuir para todos. Só pessoas muito infelizes e amargas podem pensar que um admirador de torturadores, um despreparado emocional e intelectualmente, pode vir a ser alguém que trará vida a nação.

Muitos evangélicos e cristãos se acham no direito de atirar pedra em quem não pensa como eles, como aconteceu com uma menina no Rio de Janeiro, apedrejada por evangélicos ao sair de um terreiro de candomblé. O calvinismo, uma das doutrinas que deu origem ao puritanismo, pregava a existência de pessoas predestinadas à salvação pelo próprio Senhor. Muitos entre os evangélicos se tornam pessoas pretensamente puras, predestinadas, uma espécie de casta privilegiada pelo divino, que se julgam no direito de discriminar, quando não de perseguir como sendo gente diabólica, os crentes de outras religiões, os homossexuais, os travestis, os transexuais, as feministas, os comunistas, etc. Essas subjetividades autoritárias e intolerantes se encontram e se veem no sujeito intolerante e autoritário que é Bolsonaro. Não há demonstração maior de autoritarismo do que o militante evangélico a querer converter a todos em qualquer lugar e hora, impondo sua fala a quem não o quer ouvir, impondo sua música a que não quer escutar, se achando no direito de ocupar o espaço do outro sem sequer pedir licença. Eles se pretendem possuidores de uma única Verdade, a verdade que leem, muitas vezes de forma equivocada e precária em partes da Bíblia, um livro que é uma reunião de textos de épocas, tradições e autores diferentes, cheio de contradições, do qual se escolhe a passagem que se quer e que permite embasar a atitude preconceituosa e intolerante daquele que se diz portador da Verdade. O capitão, até na forma de falar, também parece possuir a Verdade, ele é o dono da verdade, até porque foi o próprio Deus que a revelou. Muitas vezes ficamos perplexos vendo dois cristãos conversando e relatando as vontades de Deus, de forma a pensarmos que deve ter tido uma conversa íntima com Ele. Não há possibilidade de vida democrática e republicana sem o debate e confronto de ideias e, para isso é preciso que a verdade seja algo que não pertença a ninguém mas que se construa nas discussões. Aquele que se julga com a Verdade, também se julga no direito de julgar o outro, desqualificar suas ideias e suas falas. Daí porque Bolsonaro e seus seguidores serem uma ameaça à democracia e à República. O fascismo se alimenta desses desejos de pureza, de superioridade, de distinção, de segregação, de conversão do outro, se necessário à força, de eliminação do outro, de verdade absoluta. Podemos entender porque setores ditos cristão tenham aderido ao fascismo, isso já ocorreu no passado, tanto na Itália, quanto na Alemanha. Essa busca por um governo de escolhidos, de semelhantes, de irmãos na fé e na crença, moralmente superior e puro, um governo que garanta a ordem, a segurança das famílias, é um passo para a adesão ao fascismo que, como podemos ver na atual campanha, com a peixeirada que vitimou o próprio candidato da intolerância, é um passo também para um regime de força, para um regime antidemocrático e assassino.

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2 Comments

2 Comments

  1. Manoel Mariano

    26/04/19 at 14:20

    Para os fascistas (Bolsonaro e seus aceclas) Jesus Cristo seria considerado um daqueles 30 mil que mereceria ser metralhado. Para eles, seria um comunista a menos. O fascismo de hoje é mais cruel, cínico e hipócrita.

  2. Glivi Wchôa Carneiro

    06/11/19 at 14:34

    Era exatamente disso que eu falava com meus amigos e conhecidos, antes da tragédia anunciada, a Eleição de um Falso Cristão e um autentico fascista!

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LUTA ANTIRRACISTA PRECISA ACERTAR A ‘CABECINHA’ DE WILSON WITZEL

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Há anos a tática sobre segurança pública no Rio se concentra em operações espetaculares que resultam, de tempos em tempos, em um derramamento de sangue, com direito a traficantes, moradores de comunidades e policiais mortos.

O roteiro todos já conhecem. Unem-se policiais de diversos batalhões, eles invadem determinada localidade com poder de fogo muito superior, e terminam matando principalmente a ponta da cadeia do tráfico, a base da estrutura das facções, enquanto seus líderes comandam tudo de longe ou de dentro dos presídios, e no dia seguinte um novo comando paralelo se instala no mesmo lugar.

É uma máquina de moer gente. Mata-se loucamente, e no dia seguinte é como se nada tivesse mudado.

A situação é esta porque em certos locais do Rio a única chance de um jovem criado em situação de miséria comprar um tênis da moda é segurando uma arma que ele não sabe atirar direito. A parcela da população favelada que sobra do espaço da cidadania, por motivos que vão desde abandono familiar, déficit educacional ou imposição de terceiros, é seduzida por uma rede comércio ilegal que promete dignidade no contexto da extrema exclusão e sacrifica a vida destas pessoas como copos descartáveis.

São quase sempre jovens negros, no tráfico, na polícia ou nas casas vizinhas ao confronto entre eles. E suas mortes não comovem nem de perto tanto quanto o cãozinho morto na porta do Carrefour.

É assim desde que a abolição foi seguida pela recusa em absorver os negros no mercado formal de trabalho e a imigração de estrangeiros brancos para substituí-los. A pobreza se perpetuou a partir da negligência em gerar oportunidades e condições de vida saudável, e nela a criminalidade floresceu desde sempre.

Se soubesse da história do Rio, Wilson Witzel, o novo governador eleito no estado, que repete a palavra matar o tempo todo para agradar os ouvidos de uma classe média tanto preocupada com roubos quanto é racista, adepta de praias segregadas, odienta do funk, do samba e de pagode, faria algo para interromper a espiral macabra que corrói sua sociedade por dentro.

Alteraria o atraso social com políticas públicas inteligentes de ensino integral, cooperativas de trabalho, reforma do sistema penitenciário, investimento em tecnologia da informação e preparo de suas polícias. Enfrentaria o racismo com mais educação e cultura, e não faria coro com privilegiados que gostam de se remeter aos negros com termos tipicamente usados para animais, como “abate”.

Em 2010, o Rio viu Sérgio Cabral vencer Fernando Gabeira aproveitando-se, em parte, da crença de que o adversário era veado e maconheiro. Dali seguiu-se uma bandalheira que resultou, nos últimos anos, no colapso total das contas públicas. Já não há mais espaço de tempo para novos demagogos. E nem a população suporta mais mentiras no lugar de competência. Algo melhor que matar precisa vir à cabeça do novo governador. E eu sugiro que superar o seu racismo entranhado seja o melhor começo.

Por: Rodrigo Veloso – Colaborador dos Jornalistas Livres morador do Rio do Janeiro formado em Relações Internações

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OS BACHARÉIS DA RESISTÊNCIA

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Artigo de Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História da Universidade Federal da Bahia, com ilustração de Duke

 

O ano de 2005 é chave para a compreensão da crise brasileira contemporânea. Foi aí, no chamado “mensalão”, que se desenhou pela primeira vez aquela que, na minha percepção, é a característica mais importante da crise: o ativismo político dos profissionais da lei.

Desde 2005 que juízes, desembargadores, ministros dos tribunais superiores e procuradores são personagens recorrentes na crônica política. Depois de 2014, a Operação Lava Jato se tornou palco para a fama desses profissionais. Mais do que nunca, o Brasil é a República dos Bacharéis.

Os marqueteiros da Operação Lava Jato afirmam que pela primeira vez na história do Brasil os empresários milionários sentiram na pele o peso da lei. É uma meia verdade. Se é meia verdade, por consequência lógica, é meia mentira também.

Os empresários presos atuavam no ramo da construção civil e de obras de infraestrutura. Os agentes econômicos envolvidos com atividades financeiras e especulativas não foram incomodados. Somente os mais ingênuos são capazes de acreditar que Marcelo Odebrecht ou Léo Pinheiro são mais corruptos que os executivos do Itaú ou do Santander, que também financiavam campanhas eleitorais, que também estabeleciam relações nada republicanas com a classe política.

Por que uns foram presos, enquanto os outros estão aí, lucrando bilhões todos os anos?

A seletividade da Operação Lava Jato é óbvia e salta aos olhos de qualquer um que queira enxergar a realidade. A narrativa do combate à corrupção está sendo utilizada como pretexto para o desmanche do Estado e dos investimentos públicos em infraestrutura, o que favorece os interesses ligados ao capital financeiro nacional e internacional. A comunidade jurídica brasileira colaborou com esse projeto, ajudou a desmontar parques industriais, levando empresas nacionais à falência, sempre com o pretexto do “combate à corrupção”.

Como bem disse Eugênio Aragão, ex-ministro da Justiça, a Justiça brasileira “prometeu acabar com os cupins, mas acabou ateando fogo à casa”.

Porém, seria um erro dizer que a comunidade jurídica é um bloco homogêneo, que todos os seus integrantes se movem na mesma direção. Alguns momentos na cronologia da crise mostram que o cenário não é tão simples, que há bacharéis dispostos a confrontar a hegemonia daqueles que entregaram seus serviços aos interesses do capital financeiro internacional.

Destaco aqui três nomes: Rodrigo Janot, Rogério Favreto e Marco Aurélio de Mello.

Em algum momento da crise, os três contrariaram interesses hegemônicos. Meu objetivo aqui é relembrar esses episódios e sugerir que a resistência democrática não pode abrir mão da institucionalidade. Ir às ruas e disputar o imaginário das pessoas não significa deixar de operar por dentro das instituições burguesas, explorando suas contradições. Uma coisa não exclui a outra. Uma coisa complementa a outra.

 

Rodrigo Janot

Rodrigo Janot foi empossado pela presidenta Dilma Rousseff como procurador geral da República em 2013, sendo reconduzido ao cargo, também por Dilma, em 2015. Janot foi personagem protagonista em alguns dos momentos mais agudos da crise brasileira, no período que compreendeu a derrubada de Dilma Rousseff e a ascensão de Michel Temer.

Sinceramente, não sou capaz de definir a identidade ideológica de Rodrigo Janot, de dizer se ele é de esquerda ou de direita. Talvez ele não pense a realidade nesses termos. Antes de se tornar procurador geral da República, Janot tinha atuação engajada na defesa dos direitos da população carcerária. No segundo turno das eleições presidenciais de 2018, Janot se manifestou a favor da candidatura de Fernando Haddad.

26 de agosto de 2015. Sabatina de recondução de Janot à chefia da Procuradoria Geral da República. Senado Federal. A crise institucional se aprofundava e começava a se desenhar no horizonte o golpe parlamentar que meses depois derrubaria Dilma Rousseff.

A oposição, liderada por senadores do PSDB e do DEM, colocou Janot contra a parede. Ana Amélia, Aécio Neves, Aloísio Nunes, Antonio Anastasia exigiam que a PGR denunciasse a presidenta Dilma Rousseff. Foram quase 12 horas de uma sabatina tensa e atravessada pelo partidarismo político. Por inúmeras vezes, Janot disse que não havia indícios suficientes para fundamentar uma denúncia contra a presidenta da República.

Janot não denunciou Dilma enquanto ela estava no exercício do mandato.

Já com Temer, o comportamento de Rodrigo Janot foi completamente diferente. Foram duas denúncias, em pleno exercício do mandato. A primeira denúncia foi apresentada em junho de 2017. A segunda veio três meses depois, em setembro.

Michel Temer precisou acionar suas bases na Câmara dos Deputados para barrar as duas denúncias. Precisou liberar verbas para os deputados aliados. Precisou gastar capital político. Acabou lhe faltando fôlego político para aprovar a Reforma da Previdência, que era a grande agenda do seu governo. Capital político tem limite, igual a peça de queijo: diminui um pouco a cada fatia retirada.

Se Temer não conseguiu aprovar a Reforma da Previdência, parte da derrota pode ser explicada pelas flechas disparadas por Rodrigo Janot, que acabou colaborando para defender os direitos previdenciários dos trabalhadores brasileiros do ataque do capital especulativo.

Qual era o seu objetivo? Comprometimento com uma agenda social-democrata? Um republicanismo genuíno que parte do princípio de que não pode existir seletividade na aplicação da lei? As duas coisas juntas?

Não dá pra saber. Fato mesmo é que ao desestabilizar Michel Temer, Janot contrariou os interesses do rentismo.

 

Rogério Favreto

Quem acompanha a trama da crise brasileira lembra bem do dia 8 de julho de 2018. Era manhã de domingo e o país foi sacudido pela notícia que dividiu a sociedade, deixando metade da população em estado de graça e a outra metade babando de ódio.

“Lula vai ser solto!”. Assim, estampado em letras garrafais em todos os veículos da imprensa.

Rogério Favreto, desembargador do Tribunal da 4° Região em diálogo direto com lideranças petistas, autorizou um habeas corpus de urgência, determinando a soltura imediata de Lula.

Todos os envolvidos sabiam que Lula não seria solto. Lula nem fez as malas. O objetivo ali era tático: levar as instituições burguesas a extrapolar os limites da própria legalidade.

Sérgio Moro despachou estando de férias e negou o habeas corpus, o que ele não poderia fazer. Moro contrariou a ordem de um superior, subvertendo a hierarquia do Poder Judiciário.

Thompson Flores, presidente do Tribunal da 4° Região, cassou a decisão de Favreto, o que somente poderia ser feito pelo colegiado dos desembargadores.

Em um ato de resistência, Rogério Favreto deixou claro para o mundo que Lula é um preso político que a todo momento inspira atos de exceção.

 

Marco Aurélio Mello

Marco Aurélio Mello, tendo mais coragem que juízo, vem sendo a voz da resistência no Supremo Tribunal Federal. Eu poderia dar vários exemplos de ações de Marco Aurélio em defesa da Constituição, da legalidade democrática e da soberania nacional. Fico apenas com dois.

1°) Em 19 de dezembro de 2018, na véspera do recesso do Judiciário, Marco Aurélio soltou um bomba: em decisão autocrática determinou que a Constituição fosse respeitada, ordenando a libertação de todos os presos condenados em segunda instância, o que beneficiaria o presidente Lula.

É que a Constituição é clara. Só pode prender depois do trânsito em julgado. Se está errado ou não é outra discussão. Constituição não se questiona, a não ser para fazer outra Constituição.

Liminar pra cá, liminar pra lá. Procuradores da Lava Jato convocando entrevista coletiva para dizer como STF deveria agir. Mais uma vez a sociedade dividida. Novamente, Lula nem fez as malas, pois experimentado que é, sabia muito bem que não seria solto.

Dias Toffoli, presidente do STF, derrubou a decisão de Marco Aurélio, contrariando o regimento interno da Casa, que diz que somente a plenária do colegiado é legítima para anular ato autocrático de um ministro.

Se Lula não estivesse preso, o regimento seria respeitado. Lula não é um preso comum.

2°) Na última semana, vimos outro embate entre Marco Aurélio e Dias Toffoli. Dessa vez, o motivo foi a venda dos ativos da Petrobras. Marco Aurélio, outra vez em decisão autocrática, proibiu a venda, num ato de defesa da soberania nacional. Dias Toffoli autorizou a venda, se alinhando aos interesses privados e internacionais.

Apresentei três exemplos, de três profissionais da lei que em algum momento da crise contrariaram os interesses que hoje ditam os rumos da política brasileira. Não existiu nenhuma articulação entre eles. Os exemplos mostram apenas que as instituições burguesas não são homogêneas, que existem contradições que devem ser exploradas.

A resistência democrática, portanto, precisa se equilibrar sobre dois pés. Um nas ruas, agitando e apresentando soluções para o nosso povo, que já vai começar a sentir na pele as consequências de um governo ultraliberal, autoritário e entreguista. O outro pé deve estar bem fincado nos corredores palacianos, onde se desenrolam as tramas institucionais.

Precisamos, sim, de líderes populares, de líderes que saibam falar ao coração do povo, que entendam as angústias da nossa gente. Precisamos também de articuladores, de conhecedores da lei e dos regimentos, de lideranças versadas no jogo jogado nos bastidores. Resistência democrática é trabalho de equipe.

 

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Armai-vos uns aos outros

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Por José Barbosa Junior
O presidente da República Fundamentalista de Vera Cruz (antigo Brasil – porque agora nada pode ser vermelho), decretou nesta terça-feira algumas flexibilizações na Lei que regulamentava a posse de armas, o que, na prática, significa que ele liberou geral. A proposta anterior, de no máximo duas armas por cidadão, passou para quatro armas, sendo liberadas outras mais, conforme a necessidade apresentada pelo futuro portador.
Em resumo, a barbárie está liberada oficialmente em nosso país. “Cidadãos de bem” agora vão poder, finalmente, matar os bandidos que lhe atormentam a vida. Por bandidos leia-se pobres, pretos, pardos e párias, que de já tão coisificados, tornaram-se sem valor e pessoalidade em sua existência.
O que mais me choca, porém, é que Bolsonaro foi eleito e é apoiado, inclusive e principalmente nesta questão, por gente que se afirma cristã. Isso mesmo! Gente que diz seguir aquele nazareno marginal que afirmou que “bem-aventurados são os pacificadores, pois eles serão chamados filhos de Deus”, aliás o mesmo que afirmou que “quem vive pela espada, morrerá pela espada”.
Parece estranho. E é.
Mais estranho ainda porque em toda a campanha do atual presidente, ele fez questão de repetir o versículo que diz “e conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”.
A verdade é que a liberação de armas só gerará mais violência num país que respira violência.
A verdade é que mais mulheres serão vítimas de feminicídio, já que seus maridos machões agora poderão ter suas armas para suprirem seus outros fracassos.
A verdade é que mais LGBT’s morrerão nas mãos de homofóbicos que disfarçam seus preconceitos em discursos machistas e religiosos.
A verdade é que agora fica mais fácil planejar o suicídio, endêmico numa sociedade cada vez mais doente e adoecedora, refém de um sistema que empurra pessoas à depressão (sem contar as depressões que independem de fatores externos) e num país onde adolescentes cada vez mais se matam por conta de bullying e outras coisas mais. Ah! E sem falar no alto índice de suicídio entre pastores, tema cada vez mais recorrente nos últimos anos.
A verdade é que as brigas de trânsito, de bares, de baladas agora serão resolvidas na base do “quem saca primeiro”, porque com essa liberação a ideia de que o outro possa estar armado será sempre evidente e, entre ele e eu, é melhor que eu saque antes dele.
A verdade é que temos um governo violento, que ampara e incita à violência, que não esconde o prazer na tortura e na morte dos inimigos. Isso legitima e legitimará a barbárie!
Em nome da verdade… no governo mais mentiroso que já temos! E eu aguardo o dia da liberdade! Ela virá… mais cedo ou mais tarde!

*Teólogo e Pastor da Comunidade Batista do Caminho em Belo Horizonte.

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