Na mentira do nosso cotidiano enterraram nossa memória e com ela também indígenas, trabalhadores e trabalhadoras do campo, negras, negros e imigrantes; os corpos femininos, os corpos transexuais; a vida operária, sem-terra, sem-teto. Personagens de uma mesma história sangram no desdobrar de uma ordem cada vez mais fascista.
O Cordão da Mentira, formado por sambistas, grupos de teatro, coletivos culturais e artísticos, militantes e movimentos sociais, propõe uma intervenção estética e política para marcar a resistência ao avanço reacionário dos últimos anos e recentemente representado pela ascensão da extrema-direita ao poder. Começou a desfilar pelas ruas de São Paulo em 2012, ocupando as ruas para lembrar o sangue derramado por nossos tombados de ontem e hoje e para continuar denunciando a mentira do nosso passado que não passa – pois a tortura, os assassinatos e os desaparecimentos forçados nunca deixaram de ser política de Estado.
Em 13 de dezembro de 2018, 50 anos após o decreto do AI-5 (que institucionalizou os crimes de Estado), o Cordão realizou ato simbólico nos entornos do TUSP e, além de cantar a resistência com a Roda de Samba Cordão da Mentira, o ato contou com a presença do Movimento Mães de Maio, de representantes do Comitê Memória, Verdade e Justiça e da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, além das intervenções do Slam da Guilhermina, Cabaré Feminista, Coletivo Merlino, Arrastão dos blocos, Terreiro Grande, dentre outros.
Neste momento em que nosso país ameaça regredir 50 anos e voltar aos tempos da ditadura militar, que gente nossa continua a tombar pelas ruas, assassinada pela covardia da extrema direita, a disputa de narrativa histórica deve ser nosso compromisso. Justamente por isso, e identificando a necessidade de expandir a militância para o maior número de frentes possíveis, o Cordão decidiu articular novas formas de resistir, pensando também na própria sobrevivência enquanto coletivo político de oposição. Diante de uma nova (re)estruturação, escolhemos não sair às ruas neste abril de 2019 — para então voltarmos fortalecidos, ainda neste ano, ao front de luta.
No próximo 31 de março/1º de abril, quando se completam 55 anos da consumação do golpe civil-militar, e em cenário político em que a cúpula bolsonarista, além de institucionalizar o ódio como prática de governo, exalta e homenageia em público torturadores e milicianos, o Cordão continua a se posicionar, por meio desta carta, enquanto oposição resistente ao desgoverno que hoje se apresenta.
Não pode ser ignorado o fato de que uma parcela substanciosa da população brasileira resolveu apostar na violência e no obscurantismo como solução, um desdobramento dos imperativos de controle e submissão do conformismo ideológico que também é consequência do sistema político herdado pelas imposições violentas da Ditadura. A perda da memória, lapidada pelas perseguições e desaparecimentos utilizados como política de segurança pública na normalidade democrática, organiza as razões do engajamento de extrema-direita em nosso tempo. Não confrontar a monstruosidade abominável do nosso passado legitima a normalidade sangrenta do nosso presente, perenizando o lastro da mentira que vivemos todos os dias.
Manifesto do Cordão da Mentira
Desde 2012 denunciando AS MENTIRAS da nossa históriaNa mentira do nosso cotidiano enterraram nossa memória e com ela também indígenas, trabalhadores e trabalhadoras do campo, negras, negros e imigrantes; os corpos femininos, os corpos transexuais; a vida operária, sem-terra, sem-teto. Personagens de uma mesma história sangram no desdobrar de uma ordem cada vez mais fascista. O Cordão da Mentira, formado por sambistas, grupos de teatro, coletivos culturais e artísticos, militantes e movimentos sociais, propõe uma intervenção estética e política para marcar a resistência ao avanço reacionário dos últimos anos e recentemente representado pela ascensão da extrema-direita ao poder. Começou a desfilar pelas ruas de São Paulo em 2012, ocupando as ruas para lembrar o sangue derramado por nossos tombados de ontem e hoje e para continuar denunciando a mentira do nosso passado que não passa – pois a tortura, os assassinatos e os desaparecimentos forçados nunca deixaram de ser política de Estado. Em 13 de dezembro de 2018, 50 anos após o decreto do AI-5 (que institucionalizou os crimes de Estado), o Cordão realizou ato simbólico nos entornos do TUSP e, além de cantar a resistência com a Roda de Samba Cordão da Mentira, o ato contou com a presença do Movimento Mães de Maio, de representantes do Comitê Memória, Verdade e Justiça e da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, além das intervenções do Slam da Guilhermina, Cabaré Feminista, Coletivo Merlino, Arrastão dos blocos, Terreiro Grande, dentre outros. Neste momento em que nosso país ameaça regredir 50 anos e voltar aos tempos da ditadura militar, que gente nossa continua a tombar pelas ruas, assassinada pela covardia da extrema direita, a disputa de narrativa histórica deve ser nosso compromisso. Justamente por isso, e identificando a necessidade de expandir a militância para o maior número de frentes possíveis, o Cordão decidiu articular novas formas de resistir, pensando também na própria sobrevivência enquanto coletivo político de oposição. Diante de uma nova (re)estruturação, escolhemos não sair às ruas neste abril de 2019 — para então voltarmos fortalecidos, ainda neste ano, ao front de luta. No próximo 31 de março/1º de abril, quando se completam 55 anos da consumação do golpe civil-militar, e em cenário político em que a cúpula bolsonarista, além de institucionalizar o ódio como prática de governo, exalta e homenageia em público torturadores e milicianos, o Cordão continua a se posicionar, por meio desta carta, enquanto oposição resistente ao desgoverno que hoje se apresenta. Não pode ser ignorado o fato de que uma parcela substanciosa da população brasileira resolveu apostar na violência e no obscurantismo como solução, um desdobramento dos imperativos de controle e submissão do conformismo ideológico que também é consequência do sistema político herdado pelas imposições violentas da Ditadura. A perda da memória, lapidada pelas perseguições e desaparecimentos utilizados como política de segurança pública na normalidade democrática, organiza as razões do engajamento de extrema-direita em nosso tempo. Não confrontar a monstruosidade abominável do nosso passado legitima a normalidade sangrenta do nosso presente, perenizando o lastro da mentira que vivemos todos os dias. Nosso posicionamento político, no entanto, não será apagado tão facilmente. Ele não se resume a uma cobrança de sujeitos moralmente elevados. Não são apenas nossas consciências que nos impelem a agir e pensar. O dever de memória e justiça é cobrado pela realidade objetiva, passada e presente, entendendo que não é possível viver sem confrontar a realidade do mundo e do que nos tornamos como sociedade. A realidade nos impele para nosso engajamento. A ditadura não interrompeu sua sangria, os cadáveres acumulados não permitem falar em página virada, e o sofrimento sem voz abarcado num arco histórico que não se fecha passa a se tornar ensurdecedor. Foi assim, e continuará sendo assim, que acusamos a mentira sobre a verdade do nosso passado.Não há o que comemorar nesta data. Não cabem "celebrações efusivas", tampouco "discretas". Não aceitamos mais ditaduras, genocídios e torturas em nome de uma elite assassina. Não compactuaremos com regimes de exceção. Renovamos nossa resistência a mais um regime de autocracia racista e machista a condenar o nosso povo à miséria e à ignorância. Não abandonaremos o dever de lembrar de nossos mortos e desaparecidos e dos nossos (diariamente) violentados pelo Estado. Abriremos os porões e impediremos que continuemos a ser assombrados pelos fantasmas que os militares escolheram (e ainda escolhem) não encarar. Muitos tombaram antes de nós, tombaram por não temer sonhar com um mundo de justiça e igualdade social. É esta a coragem que nos inspira. Há ainda muita poesia a ser escrita, muitos sambas a serem compostos e dançados. Tentam amedrontar-nos e lançar-nos à escuridão, mas a resistência mostra o porvir de nossa aurora, sementes lançadas no tempo para transformar o próprio tempo. Até lá, não iremos nos calar. Gritaremos até que nos ouçam. Até que a mentira não seja mais tratada como verdade.
Gepostet von Jornalistas Livres am Freitag, 29. März 2019
Nosso posicionamento político, no entanto, não será apagado tão facilmente. Ele não se resume a uma cobrança de sujeitos moralmente elevados. Não são apenas nossas consciências que nos impelem a agir e pensar. O dever de memória e justiça é cobrado pela realidade objetiva, passada e presente, entendendo que não é possível viver sem confrontar a realidade do mundo e do que nos tornamos como sociedade. A realidade nos impele para nosso engajamento. A ditadura não interrompeu sua sangria, os cadáveres acumulados não permitem falar em página virada, e o sofrimento sem voz abarcado num arco histórico que não se fecha passa a se tornar ensurdecedor. Foi assim, e continuará sendo assim, que acusamos a mentira sobre a verdade do nosso passado.
Não há o que comemorar nesta data. Não cabem “celebrações efusivas”, tampouco “discretas”. Não aceitamos mais ditaduras, genocídios e torturas em nome de uma elite assassina. Não compactuaremos com regimes de exceção. Renovamos nossa resistência a mais um regime de autocracia racista e machista a condenar o nosso povo à miséria e à ignorância.
Não abandonaremos o dever de lembrar de nossos mortos e desaparecidos e dos nossos (diariamente) violentados pelo Estado. Abriremos os porões e impediremos que continuemos a ser assombrados pelos fantasmas que os militares escolheram (e ainda escolhem) não encarar.
Muitos tombaram antes de nós, tombaram por não temer sonhar com um mundo de justiça e igualdade social. É esta a coragem que nos inspira.
Há ainda muita poesia a ser escrita, muitos sambas a serem compostos e dançados. Tentam amedrontar-nos e lançar-nos à escuridão, mas a resistência mostra o porvir de nossa aurora, sementes lançadas no tempo para transformar o próprio tempo. Até lá, não iremos nos calar. Gritaremos até que nos ouçam. Até que a mentira não seja mais tratada como verdade.