Ciro Gomes: muita coragem e pouco juízo

Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História da UFBA, com ilustração de Gervásio

 

 

Estamos nos aproximando de outubro e, ao que tudo indica, teremos eleições.

A cada dia que passa aumenta a ansiedade e a temperatura das disputas dentro do campo político progressista. É natural que seja assim. É curioso e um tanto contraditório também.

Afinal, todos vimos a presidenta Dilma ser golpeada. Todos vimos 54 milhões de votos serem rasgados.

Ainda assim, estamos levando o rito eleitoral a sério. Ainda assim, continuamos acreditando nas instituições.

Ingenuidade?

Acho que não. É fragilidade mesmo.

Como não há mais nada a ser feito, como o “não vai ter golpe” foi apenas uma palavra de ordem sem capacidade de mobilizar as bases da sociedade, só restou ao campo progressista digerir o golpe e aguardar o próximo ciclo eleitoral para tentar ocupar outra vez um pedacinho do Estado. Por isso, as eleições são tão importantes. Daí vêm as disputas e a ansiedade.

Neste ensaio, tento analisar o horizonte que o cenário eleitoral começa a desenhar para o campo político progressista. Antes carece esclarecer a nomenclatura que me acompanha até o fim. Propositadamente, não falo em “esquerdas”, mas sim em “campo político progressista”. O motivo é muito claro: não existe governo de esquerda na democracia burguesa. Pra ter governo de esquerda só com ruptura revolucionária e estamos muito longe, muito longe mesmo, de uma situação revolucionária.

Já que não existe governo de esquerda na democracia burguesa, o máximo que dá pra fazer é governo de centro com inclinação progressista, que use o Estado para promover políticas públicas de proteção e acolhimento aos mais pobres.

Se é assim, considero representativas do “campo político progressista” as pré-candidaturas de Lula, Ciro Gomes, Guilherme Boulos e Manuela D’Ávilla. Cada uma dessas pré-candidaturas tem suas potencialidades, limites e contradições.

Sobre Guilherme Boulos e Manuela D’Ávila dá pra falar rápido, com poucos toques no teclado. Suspeito que Manuela nem candidata será. Creio que hora “H”, o PCdoB abrirá mão da candidatura própria para apoiar a candidatura progressista que se mostrar mais forte.

A candidatura de Boulos até poderia decolar, se recebesse apoio explícito de Lula, se Lula estivesse livre para sair por esse brasilzão em campanha, pegando Boulos pelo braço e dizendo “Tá aqui o meu garoto”. Não vai acontecer. Que pena! Boulos mereceria o apoio.

Na verdade, na verdade mesmo, a campanha vai girar ao redor de Lula. É que ninguém mais faz política no campo progressista brasileiro sem reivindicar o legado de Lula. Os antilulistas perderam.

O lulismo é o capital político mais valioso da história do Brasil. Uma das principais perguntas que qualquer intérprete da crise brasileira contemporânea deve fazer a si mesmo pode ser formulada mais ou menos assim:

Como Lula sobreviveu politicamente após quatro anos de intensos ataques jurídicos e midiáticos?

Nunca antes na história do Brasil alguém foi tão massacrado como Lula foi nos últimos quatro anos.

A resposta passa pela compreensão daquele que me parece ser o principal aspecto do imaginário político brasileiro, algo que é compartilhado coletivamente, principalmente entre os brasileiros e brasileiras mais pobres: a ideia de que o Estado deve agir como agente provedor de direitos sociais.

Ou em outras palavras: em uma sociedade extremamente desigual, de modernização incompleta, onde a miséria extrema é um problema estrutural, as pessoas mais vulneráveis esperam que do poder público venha alguma proteção.

Após os 13 anos de governos petistas, Lula acabou personificando esse imaginário. Os brasileiros e brasileiros mais pobres olham para Lula e enxergam a imagem do Estado provedor. Por isso, votam nele, ainda que não estejam completamente convencidos de sua inocência.

Sim, leitor e leitora, há uma parte considerável da sociedade brasileira que desconfia da inocência de Lula e que mesmo assim votaria nele. Não se trata, exatamente, da lógica ademarista do “rouba, mas faz”, mas sim de um cálculo eleitoral pragmático, típico daqueles que precisam de soluções urgentes para problemas urgentes.

Trata-se do “se roubou, não sei. Só sei que com Lula o prato estava mais cheio. Por isso, quero votar nele”.

Já que o lulismo é o capital político mais valioso da história brasileira, o próprio Lula decidiu, em vida, dividir o seu espólio. É isso que ele vem fazendo nas suas últimas aparições públicas. Ora de forma mais explícita, ora com alguma discrição.

Tomo como exemplo a inauguração da transposição do Rio São Francisco, que aconteceu em Monteiro, sertão da Paraíba, em 19 de março de 2017. Ali, Lula, no Nordeste, em seu principal nicho eleitoral, dividiu a paternidade da mais aclamada obra de infraestrutura já feita no Brasil com Ciro Gomes.

Percebam, leitor e leitora: Lula disse que Ciro Gomes, que havia sido ministro da Integração Nacional de seu primeiro governo, era um dos “pais da transposição do São Francisco”.

Muito provavelmente, a candidatura de Lula não será homologada pelo Tribunal Superior Eleitoral. Qualquer um minimamente atento à crônica política sabe disso. Lula sabe disso, e sabe há muito tempo. Por isso, o esforço de dividir o espólio em vida.

O golpe neoliberal não destituiu Dilma para entregar a Presidência da República a Lula. Não mesmo.

Mesmo assim, o PT está certíssimo em se manter firme, dizendo que Lula será candidato. É estratégia de denúncia do golpe e de defesa daquele que de fato será o candidato do partido. Quanto mais tarde o nome for anunciado, menos tempo o golpe neoliberal terá para atacá-lo.

Com isso, com o sequestro do principal presidenciável, a eleição já começa fraudada?

Sem dúvida!

Mas é a única eleição que temos, é a única chance que o campo progressista tem de retomar aquilo que lhe foi tomado pelo golpe neoliberal. Só restaram as eleições.

Com esta triste obviedade, podemos começar analisar com mais cuidado a estratégia eleitoral de Ciro Gomes.

É que o mantra “É Lula ou Nada” é irresponsável e só faz sentido como retórica política provisória, algo que perderá sua validade no momento em que o TSE impugnar a candidatura de Lula.

Não pode ser “nada”, até porque o “nada” é o que temos hoje. É péssimo ter “nada”. É desesperador ter “nada”.

Quem leva a sério o mantra “É Lula ou nada” tá jogando uma pá de terra na cova do Presidente Operário. Se depender do “nada”, se a situação continuar tal como está hoje, Lula morrerá na cadeia. A defesa de Lula depende da vitória de um governo progressista nas eleições de 2018.

Gostemos ou não, Ciro Gomes já é protagonista no atual cenário eleitoral. Qualquer entrevista, qualquer gesto e qualquer palavra são interpretados com atenção. A pergunta é sempre a mesma: será Ciro o herdeiro do lulismo?

Hoje, eu diria que não, que Ciro não herdará o lulismo. Não herdará, em virtude de suas próprias escolhas.

Uma das principais características da experiência de crise que vivemos aqui no Brasil é a tal da polarização. É que o resultado mais óbvio das crises é o encolhimento da zona consensual. Ou seja, as pessoas passam a concordar cada vez menos e a brigar cada vez mais.

Diante desse cenário de polarização, Ciro Gomes fez uma escolha, arriscada, corajosa, imprudente: construir sua imagem como o candidato do centro, como o líder capaz de reconciliar o país.

Por isso, com uma mão ele bate no Lula e com a outra bate na política econômica do golpe neoliberal. O objetivo é abocanhar esse eleitorado que é antipetista mas não chega a ser de direita, e que podemos chamar aqui, na falta de um termo melhor, de “centro”.

Consigo entender os motivos que levaram Ciro Gomes a adotar esta estratégia, que me parece bem equivocada.

A estratégia de Ciro Gomes seria mais adequada se o cenário fosse diferente.

Se o capital político de Lula tivesse sido completamente destruído pelo golpe, cerca de 30% do eleitorado brasileiro estaria voando por aí, órfão de pai e mãe. Seriam eleitores decepcionados com o lulismo, mas com convicções progressistas. Aí, sim, faria sentido bater forte em Lula e dizer “vem que sou o futuro e a esperança”.

Se Lula fosse candidato, também faria sentido um comportamento mais agressivo. Afinal, com Lula na urna, Ciro seria franco atirador. Em todo jogo, ataca mais quem tá perdendo. Na política não é diferente.

Mas não!

O capital político de Lula não foi destruído e Lula provavelmente não será candidato. O resultado é um ativo na forma de 17% do eleitorado que está disposto a votar em quem Lula indicar, segundo a pesquisa DataFolha divulgada em 10 de junho.

Partindo do princípio de que Ciro tem algo próximo a 10%, não seria mais prudente ter adotado um tom mais moderado, conciliatório, em relação a Lula e ao PT?

A conta é fácil: 10 + 17= certeza de segundo turno.

Será possível, depois de discursos tão agressivos, uma costura capaz de viabilizar a aliança entre PDT e o PT em torno do nome de Ciro Gomes? Hoje, temo que não.

Aconteceu algo entre o evento de Monteiro e o dia em que escrevo este ensaio. Lá, Lula piscou para Ciro Gomes.

Ciro respondeu o flerte com um tapa no rosto. Foi um ato corajoso, ousado, sem dúvida. Esbofetear o grande símbolo da política nacional não deixa ser um ato de coragem.

Já há muito tempo que Ciro Gomes demonstra ter mais coragem que juízo.

 

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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