Na semana em que o Ministério da Justiça divulga o censo que prova a explosão demográfica nas penitenciárias de mulheres, publicamos entrevista com a antropóloga Debora Diniz, que passou anos entrevistando e ouvindo os relatos das encarceradas
O Brasil registra crescimento inquietante no encarceramento de mulheres, nos últimos 15 anos. Entre 2000 e 2014, a população feminina privada de liberdade saltou de 5.601 indivíduos para 37.380. Para dizer o mínimo, trata-se de uma verdadeira explosão demográfica, incrementando a população dos presídios de mulheres em 567%. Como comparação, no mesmo período, a população masculina encarcerada subiu 220%.
E quem são essas mulheres tão perigosas que precisam ser retiradas do convívio social?
Responde o relatório do Departamento Penitenciário Nacional, órgão do Ministério da Justiça, divulgado nesta semana:
“Em geral, as mulheres em submetidas ao cárcere são jovens, têm filhos, são as responsáveis pela provisão do sustento familiar, possuem baixa escolaridade, são oriundas de extratos sociais desfavorecidos economicamente e exerciam atividades de trabalho informal em período anterior ao aprisionamento. Em torno de 68% dessas mulheres possuem vinculação penal por envolvimento com o tráfico de drogas não relacionado às maiores redes de organizações criminosas. A maioria dessas mulheres ocupa uma posição coadjuvante no crime, realizando serviços de transporte de drogas e pequeno comércio; muitas são usuárias, sendo poucas as que exercem atividades de gerência do tráfico.”
Em uma só expressão: são pés-de-chinelo.
Também são negras (duas a cada três mulheres presas, ou 67%, são negras). Um terço do total estava presa sem condenação (no estado de Sergipe, o índice das presas sem condenação atinge a vergonhosa taxa de 99%!!!).
Para ir além da frieza dos números e começar a compreender o que é a devastadora experiência da prisão feminina, a antropóloga e militante feminista Debora Diniz passou anos na Penitenciária Feminina do Distrito Federal, chamada de Colméia. Fez entrevistas e aplicou questionários (prancheta nas mãos e olhar inquisidor). Foi quando percebeu que usava uma abordagem intrinsecamente masculina, identificada com o método policial. Largou tudo isso e se pôs a apenas escutar os relatos de mulheres que frequentavam o Núcleo de Saúde da cadeia.
No livro “Cadeia, relatos sobre Mulheres” (224 páginas, Civilização Brasileira, R$ 26), lançado recentemente, Debora coleciona 50 textos que explicam a experiência carcerária real, vivida no maior presídio feminino da Capital da República, habitado por quase 700 seres humanos. É sobre suas humanidades (tantas vezes negadas) que a autora fala neste livro doloroso e perturbador. Leia a seguir a entrevista concedida por Debora aos Jornalistas Livres.
Jornalistas Livres — Você está lançando esse livro, “Cadeia”, com relatos das mulheres privadas de liberdade. E esta entrevista está sendo realizada dentro da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, da USP, território masculino por excelência, marcado por quadros, esculturas, afrescos, retratos de homens. Como as mulheres da sua pesquisa se relacionam com esse mundo do Direito, marcadamente masculino e patriarcal?
Debora Diniz — As cadeias foram pensadas como instituições feitas por homens para homens. É muito recente nós agendarmos a questão das mulheres dentro de uma faculdade como esta. Isso não quer dizer que as mulheres em presídios não tenham história no Brasil. Mas até isso é uma história miúda, é uma história esquecida. Então as mulheres que vivem nesses espaços, elas enfrentam camadas de silenciamento e de resistência que lhes são muito particulares. “Cadeia” é um livro que tenta contar o mundo miúdo e cotidiano da sobrevivência no presídio na capital da República. As formas tradicionais com que nós nos aproximamos, e quando eu digo “nós”, refiro-me às pesquisadoras desses espaços, são formas também masculinas de contar histórias. Chegamos lá com uma prancheta, um questionário. Aqui está a pergunta que vou fazer a você. Qual é a sua cor? Quantos anos você tem? Que crime você cometeu? Para essas mulheres, nós estamos reproduzindo as maneiras policiais tradicionais. É a interpelação do poder punitivo sobre elas. Em um dos filmes que eu fiz lá, bastava eu chegar com a câmera e os indivíduos já chegavam dizendo: “Eu matei”, “eu roubei”. Neste livro, eu tentei fazer de um jeito diferente. Não fazia pergunta alguma. Sentava-me como num sonho do cinedocumentário, como a mosca na parede, só ouvindo o que acontecia.
Jornalistas Livres — Mas será que aqueles que trabalham por ali: carcereiras, médicas, psicólogas, não acabavam encenando para você?
Debora Diniz — É possível, mas é difícil. É difícil encenar todos os dias, durante seis meses, dez horas por dia. Há uma hora em que a desgraça vem. Quer um exemplo? Na hora em que chega aquela dizendo: “Eu vou matar, e vou matar agora.” E aí vem o sossega leão, a droga calmante. E se ouve a ordem: sossega, injeta, amarra! Isso é o que está no livro. Trata-se de um livro que retrata uma longa escuta daquilo que é dito para sobreviver num espaço de sobrevivência que é um núcleo de saúde.
Jornalistas Livres — Uma das coisas de que o livro trata com bastante ênfase é a questão do abandono. Nas filas de visitas dos presídios masculinos, vê-se um monte de mulheres aguardando a hora de entrar para ver os seus maridos, filhos, noamorados. Mas, nas filas dos presídios femininos há poucos homens e, em geral, muito menos gente. Sugere-se com isso que as mulheres são de fato abandonadas muito mais frequentemente do que os homens. Como elas lidam com o abandono?
Debora Diniz — Há duas formas de responder a essa pergunta sobre o abandono nas cadeias. A primeira é por aquilo que é palpável nas filas de visitas… As mulheres visitam os homens e a pergunta que sucede é: quem é que visita as mulheres? E a resposta que advém é: outras mulheres. Porque o cuidado é coisa de mulheres. Fora e dentro dos presídios. As principais visitadoras de mulheres presas são outras mulheres. As mulheres dos afetos… a vizinha, a amiga. Depois, a mãe, a filha, a irmã. Então, o mundo do cuidado se reproduz no mundo da cadeia. É por isso que os homens saem ganhando. Eles saem ganhando porque eles já são mais bem cuidados aqui fora por nós. Mas há um segundo nível do abandono e esse é o que mais me provoca. A cadeia é uma máquina de produzir abandono. No sentido existencial, a pessoa se transforma em um indivíduo só, porque os parentes, os aderentes começam a sumir. As pessoas se cansam. Elas têm vidas para viver. É muito difícil enfrentar a visita vexatória; o dia da visita é quinta-feira — e quem trabalha??? A cadeia é uma máquina cuja engrenagem produz uma mulher que se transforma em um indivíduo só. Então, sobreviver em cadeia é permanentemente manter vínculos. É por isso que os princípios da lealdade e da confiança são tão fortes no mundo do crime e da bandidagem da cadeia. Porque é por onde se resiste. É por onde se sobrevive. Quando o Estado falha, a família é uma instituição fundamental, não é? Por isso não é à toa que várias alegorias da família estão presentes dos regimes das organizações criminosas. É o “irmão”, o “pai”, o “primo”, o “tio”. Trata-se de produzir vínculos de solidariedade que de outra forma já se perderam.
Jornalistas Livres — Estamos vendo o aumento dramático da população carcerária feminina. É possível esperar que as cadeias femininas comecem a apresentar aqueles espetáculos de violência explícita a que nos acostumamos nas rebeliões ocorridas em penitenciárias masculinas?
Debora Diniz — A sua pergunta pressupõe uma resposta preditiva sobre quais serão os efeitos da feminização da prisão. Ou seja, já que vamos crescer em número de mulheres encarceradas, como elas vão resistir aos abusos de poder? Uma hipótese é que haverá formas de lidar com o encarceramento que reproduzirão as formas do feminino. Estudos internacionais mostram que os processos de adoecimento e de medicalização do sofrimento são mais intensos nas cadeias femininas. Medicalização psiquiátrica, contenção, depressões, sofrimentos intensos, suicídios. As estatísticas internacionais mostram que esse tipo de problema é muito mais intenso nas cadeias femininas do que nas masculinas. Isso faz com que a linha-dura do sistema penal se apresse em dizer: “É porque são as loucas que são criminosas.” Mas pode ser que seja esse sistema que produz o adoecimento nas mulheres.
Jornalistas Livres — E as rebeliões sangrentas?
Debora Diniz — Tenho a hipótese de que as formas de resistência femininas são muito mais difíceis do que a dos homens. Porque o homem, quando ele cai no crime e vai parar pela primeira vez em uma cadeia, ele passa por um teste que se chama de “carômetro”… Ele entra na cadeia e os carcereiros submetem a ele uma lista com os rostos de todo mundo que está na ala a ele destinada. Em geral, o novato aponta seus inimigos dizendo “guerra”, “guerra”, “guerra”, indicando as alas para as quais não pode de modo algum ir. De outro lado, ele indica as alas em que estão seus amigos e parceiros.
Já uma mulher, quando chega, ela não vem desses grandes bandos criminosos. O teste do “carômetro” é a prova de que aquela será uma experiência solitária. Pela primeira vez, ela terá de formar redes de solidariedade no crime, lá dentro. Quando nós vemos que não há essa força tão bruta, essa resistência tão massificada, é porque elas são muito mais solitárias do que eles dentro do presídio. E, para formar o bando de resistência, precisa de muito mais tempo.
Jornalistas Livres — “Orange is The New Black”, o nome da série produzida pelo Netflix, é uma experiência exclusivamente americana, ou as cadeias femininas brasileiras têm similitudes com aquela situação?
Debora Diniz — Uma das coisas que ouvi, tão logo o livro foi lançado, foi o convite: “Vamos fazer uma série brasileira como ‘Orange is the New Black’?” Na verdade, tanto na série americana como no livro “Cadeia”, mostra-se a microvida cotidiana que existe em um presídio feminino. Nesse sentido, são muito parecidas as realidades retratadas. As personagens, a entrada do sexo, a personagem que ocupa o lugar do poder masculino, o bicudo de cadeia (um bicudo de cadeia não é uma simples contrafação do homem, mas é um personagem muito curioso. Não lava roupa, não melhora a comida e ela tem benefícios por isso)… E esse é um dos personagens de um dos episódios do seriado. As orgias sexuais que acontecem à noite… Eu jamais direi que a cadeia é um lugar feliz, mas como é um lugar em que se vive, os prazeres existem, as formas de encontro existem. Em algum sentido, o que existe em comum é a humanidade vivendo. E, nessas instituições, as formas de encontro e desencontro acabam sendo muito parecidas, porque as formas de gerenciamento são as mesmas.
Jornalistas Livres — Não daria para encerrar essa entrevista sem lhe perguntar o que você acha da redução da maioridade penal.
Debora Diniz — Uma das grandes descobertas que eu fiz em “Cadeia” é que uma em cada quatro mulheres que hoje estão presas em regime fechado passou pela cadeia na adolescência. Me permita chamar uma unidade sócio-educativa, destinada a adolescentes em conflito com a lei, de cadeia. Uma em cada quatro! Então, estamos falando de um itinerário punitivo que começou muito cedo na vida.
Se compararmos a população do presídio feminino da capital (700 mulheres) com a da unidade sócio-educativa que tem uma média de 50 internações por mês, praticamente todas as adolescentes que passaram pelas unidades sócio-educativas acabaram presas quando adultas… Então reduzir a maioridade penal me parece apenas uma brutalidade e uma violência. Trata-se daquela realidade que nós não queremos ver e queremos o quanto antes esconder dentro dessas instituições. A minha decisão depois de “Cadeia” foi ir para esse momento anterior… Lá eu descobri que elas chamam o reformatório de “cadeia de papel”. É uma alegoria linda. Nem é uma cadeia de verdade, mas já é um projeto de cadeia. Desde janeiro deste ano eu puxo um plantão. A cada 72 horas, passo 24 na unidade, vivendo por ali. Não tenho mais idade para me passar por adolescente. E elas sabem que não sou uma carcereira. Está sendo uma imersão definitiva para contar essa história de que aquilo ali já é punição suficiente para o adolescente infrator no Brasil. Não precisamos de mais sofrimento e dor.