Bar da Rosinha socorre mais de 400 famílias que o governo federal ignora 

Rosinha, (Foto: Fabiana Ribeiro)

Segunda-feira, 10 horas da manhã. No Bar da Rosinha, que fica bairro Jardim Monte Cristo, na periferia de Campinas (SP), alguns usam máscaras de proteção. Para tocar o pequeno comércio, a líder comunitária conta com Orlando, seu marido, e ambos moram na casa dos fundos. Caixas de cervejas ficam empilhadas ao lado da sala.

O casal vive ali há 23 anos. Seu Orlando participou da ocupação do complexo Monte Cristo/Oziel/Gleba B desde o início. Naqueles cerca de 1.500.000 m2 antes sem função social e em dívidas com o governo hoje residem mais de 6 mil famílias, cerca de 60 mil pessoas, segundo dados da Prefeitura de  Campinas. O território é símbolo de uma batalha fundiária encampada de forma maciça nos anos 1990 por movimentos sem terra e sem teto e foi considerado uma das maiores ocupações da América Latina.

Cestas básicas com orgânicos em parceria com o MST  (Foto: Fabiana Ribeiro)

O Bar da Rosinha é “point” antigo. Ali, moradores comemoram aniversários e o local faz vezes de “buffet”. É Rosinha mesmo quem faz o bolo por encomenda. O local também é ponto de encontro de lideranças da luta por moradia. Mesmo pequeno, em torno de 3×5 metros, o bar acolhe todo mundo. 

Por volta das 10h30, uma caminhonete simples, de modelo antigo e com pequenos amassados na lataria, estaciona silenciosamente na porta do bar. Não existem ali carros de luxo, buzinas, gritos e ninguém se fantasia de verde e amarelo com camiseta de CBF. É tudo silencioso, sereno e focado.

Gilmar e Tiririca mal saem do veículo e já encontram com o homem de cerca de 60 anos, vestido com a jaqueta de petroleiro. Outros ali paramentados com luvas e máscaras começam a retirar as 90 sacolas da carroceria lotada. São cestas básicas destinadas às famílias que precisam, e muito, daquelas doações. Em estado de vulnerabilidade social e impactadas pela crise da pandemia do novo coronavírus, aguardam pelos alimentos.

ALIMENTOS ORGÂNICOS DO MST

As cestas que trazem alface, chicória, mandioca, limão, mamão, abacate  e limão são frutos da parceria do Sindicato dos Petroleiros de Campinas com a ocupação. Segundo o representante do sindicato, a categoria se cotizou para comprar alimentos orgânicos numa parceria com o assentamento do MST Milton Santos, em Americana (SP).

A ação é realizada pela Central Única das Favela (CUFA) de Campinas que desenvolve dois projetos: CUFA contra o Vírus e Mães da Periferia. A ponte com a ocupação foi feita pela filha do casal Rosinha e Orlando, a ativista de movimentos culturais e sociais Andrea Mendes. Nesse momento em que a pandemia avança pelas periferias, ela é mais uma voluntária na luta contra o desdém do poder público e em busca de políticas públicas.

No Monte Cristo não há creches suficientes nem transporte. Falta programa de moradia e de segurança capaz de atender minimamente a população. Falta água, programa de moradia e de segurança. E vale ressaltar: ali a movimentação de pessoas é grande.

FAMÍLIAS INTEIRAS EM DOIS CÔMODOS

Boa parte dos trabalhadores atuam nos serviços essenciais em atividade. São motoboys, motoristas do transporte coletivo, equipes de limpeza, operadores de caixas em mercados. Ou seja, além de estarem inseridos num quadro de alta vulnerabilidade social – pela falta de água,  alimentação precária -, estão suscetíveis a serem vetores de transmissão do coronavírus dentro da comunidade.

Há também os que foram dispensados e se somam aos desempregados, como terceirizados de funções variadas, balconistas de pequenos comércios, manicures, diaristas e informais que não estava inscritos em programas sociais. Historicamente segregados, com a pandemia, suas vulnerabilidades ficaram ainda mais agravadas.

Fora isso, na maioria das casas é impossível manter ou fazer qualquer tipo de isolamento em caso de alguém estar contaminado. Famílias inteiras residem em apenas dois cômodos.

Cristiane recebe de Andrea, filha de Rosinha, cesta básica e leite doados pela CUFA: na região, moradores lindam com a falta de moradia, saneamento básico, água, emprego, comida, acesso à informação e, claro, a celular com app para solicitar o moroso auxílio emergencial de R$ 600 (Foto: Fabiana Ribeiro)

Por conhecer e vivenciar essa realidade, em sua busca por ajuda Andrea encontrou com o presidente da CUFA Campinas, Henry Paulino,  que levou para o território o projeto Mães da Favela com o acréscimo da distribuição de cestas básicas e kits de limpeza.

A iniciativa atende 480 famílias na região e a ação faz parte das atividades nacionais da CUFA que, até abril, já distribuiu mais de 461.000 cestas pelo Brasil. No estado de São Paulo, foram cerca de 81.000, além de 8.400 “vales-mãe”, ou seja, a assistência imediata de R$ 120 para complementos das cestas básicas. Em geral, o dinheiro é gasto com gás e remédios.

QUEM SÃO OS ESQUECIDOS?

As mais 6 mil famílias da região Monte Cristo – Parque Oziel – Gleba B estão inseridas entre os 13,6 milhões de pessoas que moram em comunidades periféricas e movimentam cerca de R$ 119,8 bilhões por ano. Essa população, que á base da pirâmide social, forma a massa trabalhadora que dá a sustentação aos serviços considerados fundamentais e que permanecem funcionando durante o isolamento social da pandemia da covid-19. 

Favelas movimentam um volume de renda maior que 20 dos 27 Estados do Brasil. Os dados são da pesquisa “Economia das Favelas – Renda e Consumo nas Favelas Brasileiras”, desenvolvida pelos institutos Data Favela e Locomotiva e encomendada pela Comunidade Door.  

Desse imenso contigente, 50% é formado por trabalhadores informais, que não têm renda nenhuma nesse momento. Historicamente segregados e apartados de seus direitos sociais, com a pandemia, suas vulnerabilidades ficaram ainda mais explícitas e agravas.

Isolamento Coronavirus abril 2020 Foto: Fabiana Ribeiro

FOMENTO À ECONOMIA LOCAL

Existem duas modalidades de cestas e ambas são entregues duas vezes na semana. Às segundas-feiras, a comunidade recebe  hortifrutis. Às quintas, macarrão, arroz, feijão, café, farinha, bolacha, óleo, molho de tomate, pacote de papel higiênico, água sanitária e sabão em pó.

Em Campinas, pensando também no fortalecimento da economia local, a CUFA estabeleceu parceria com um supermercado da região  – o Generoso – que fica localizado no bairro. Facilidade para os doadores, que podem acertar o pagamento da doação diretamente com o estabelecimento, faz o dinheiro circular na comunidade.

“ESTADO DE MISÉRIA” 

Naquela segunda-feira, após descarregar as cestas da caminhonete, a equipe de voluntários recheou o carro de Andrea. O golzinho branco, com mais de 20 anos de rodagem, teve seu encosto do banco traseiro retirado para comportar as cestas das famílias. De tão lotado, sobrou só a vaga da motorista e de um voluntário. Frutas, verduras e legumes orgânicos, além de leite e alimentos, seguiram para a distribuição.

O primeiro destino foi a Gleba B, na rua José Fidélis Filho, estreita e sem asfalto. Cerca de 50 das 300 famílias moradoras “estavam em estado de miséria”. A confidência vem de Néia, liderança comunitária local que sabe o destino de cada cesta e conhece a história de cada família mapeada e cadastrada por voluntários no começo do projeto.

“São pintores, pedreiros que estão sem trabalho”, conta ela. Ou seja, são aqueles que estão 40% da população do Brasil em 21 Estados, cujo trabalho informal é a principal ocupação e fonte de renda, como apontam dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de fevereiro de 2020.

“Agradeço muito a doação, porque aqui sou eu sozinha e Deus fazendo como dá”, diz Néia que, na prática, testemunha outro dado importante: em 2019, houve o aumento da informalidade, que atingiu 41,1%, seu maior nível desde 2016, e bateu recorde em 19 estados e no Distrito Federal

ƒESTADO SEM ROSTO OU SORRISO

Diante da casa número 1853, são levadas três cestas: uma  básicas e duas orgânicas. Da fachada de cimento e portão com ferrugem sai uma jovem de 20 e poucos anos. Gabriela, grávida, atende com um sorriso. Troca algumas palavras, recebe as doações e conta que o marido não está porque saiu em busca de um “bico”.

Mais à frente na rua de terra, em outra casa no cimento e partes inacabadas da construção, uma senhora, Maria Aparecida, de cerca de 70 anos e cabelos grisalhos presos em um coque, também sorri aos voluntários. “Muito agradecida”, disse ao receber a doação.

De volta ao carro, outra mulher aguarda Andrea, que a reconhece de outro encontro, antes da pandemia, quando a recomendou ir ao Posto de Saúde diante da reclamação sobre fraqueza e cansaço. “Lá no Postinho disseram que a dor no estômago era da alimentação, que eu precisava comer mais”, conta, já com a cesta recebida em mãos. E assim segue o dia…

Rua José Fidélis Filho

Interessante lembrar que o poder público costuma não ter rosto. A atuação, na maioria das vezes, ocorre a partir de contatos afastados e impessoais. Se muito, a relação  é “terceirizada” via  ONG’s, uma vez que essas entidades  fazem a ponte entre população e Estado – acarretado um total distanciamento entre as gestões públicas e as populações das periferias. Essa política de Apartheid, no fundo, nega direitos e discrimina. A pandemia do coronavírus só deixou tudo muito mais evidente. 

Quando o gol branco segue para outra região da Gleba B, uma ladeira abrupta marca o ponto de entrega para outras famílias. Diante de um barraco feito de madeira e coberto com lonas, está Seu Oscar. Na casa, vive com a filha Cristiane, que participa do projeto “Mães da Periferia”, e o neto de  2 anos. A moça tenta, no celular emprestado da vizinha, fazer o cadastramento do pai para recebimento do auxílio emergencial de R$ 600 do governo. Ela e Seu Oscar estão desempregados e não tem celular para fazer o cadastro. “Meu pai arrumou um bico mas até ontem estava parado”.

A inscrição no projeto “Mães de Família“ foi bem mais simples. Bastou um dos voluntários da ação pegar seu nome, endereço, o número do CPF e fazer uma foto dela. Os dados foram enviados para a central da CUFA e logo depois o recurso de R$ 120 reais foi liberado.

“MÃES DA FAVELA” ANTES DA PREFEITURA

Para chegar à casa com três cômodos onde vive o casal  Gleiciane e Marcio com seus sete filhos é preciso fazer o  trajeto a pé. Carros não conseguem acessar o terreno íngreme e sem asfalto. Com a sacola de alimentos e as pranchetas, os voluntários descem a ladeira esburacada com cuidado para não tropeçar entre as pedras.

Gleiciane e seu marido são trabalhadores informais que vivem de pequenos serviços temporários e não possuem renda fixa. Contam que o custo de vida aumentou porque, com o isolamento social, as crianças não estão indo à escola municipal desde o dia 23 de março. A merenda faz falta, é preciso mais comida na mesa. As dificuldades não param por ai. Como acompanhar aula “on line”? A família só tem um celular “que está  no conserto”, lembra Gleiciane.

Custo de vida aumentou com as crianças em casa e o programa municipal ainda não redirecionou a merenda escolar para a família de Gleiciane (Foto: Fabiana Ribeiro)

Campinas lançou o Programa de Segurança Alimentar e Nutricional, “NutrirCampinas”, mas noticiou a distribuição a partir do dia 17 de abril. A família de Gleiciane ainda não foi contemplada e, antes disso, ela foi incluída no “Mães da Favela”.

“SOMOS ESQUECIDOS”

Seguindo pela comunidade, os voluntários acessaram um outro grupo de famílias aglomeradas em barracos de madeiras. Para chegar até lá, passaram por becos tão estreitos que uma única pessoa é capaz de passar por vez. Ali não há saneamento básico, energia elétrica individual, água encanada e muito menos acesso às mídias digitais para se cadastrar nos programas sociais ou fazer o cadastro do auxílio do governo. O índice de instrução é mínimo – alguns só assinam o nome – e a dificuldade de acesso à tecnologias é uma enorme muralha.

Becos estreitos: passagem para apenas uma pessoa por vez (Foto: Fabiana Ribeiro)

Adriana, de cerca de 30 anos, afirma que naquele canto estão os esquecidos por todos. “As famílias estão passando fome. Minha vizinha está amamentando e não tinha nada para comer. Eu tinha um pouco de arroz e dei à ela”. O programa de cestas básicas é questão de sobrevivência. Depois de improvisar uma cesta de hortifruti e leite, os voluntários solicitaram a ela uma lista das pessoas necessitadas naquela área.

Antônio já estava na lista. Trabalhava como pedreiro em uma construção de mais um barraco na viela estreita, mas redobrado em cuidados. Fez questão de manter a distância entre pessoas e deixou claro que cuida de sua saúde e do próximo. “Eu tenho que pensar no outro porque não estamos sozinhos no mundo. E temos que fazer o certo para todos.” O pagamento de R$ 400, ele contou, só iria receber daqui  a 30 dias. “Mas o importava é estar trabalhando.” Antônio também não está inscrito em nenhum programa social.”

 

 

Seu Antônio: importância do distanciamento e de não estar sozinho no mundo (Foto: Fabiana Ribeiro)

Para colaborar:
Acesse a CUFA Campinas ou o projeto ReExistência é Viver, focado no auxílio complementar de doação de kits de higiene e máscaras para 100 famílias de uma das comunidades da região, a favela da Matinha, além de painéis informativos sobre como evitar a exposição ao coronavírus. #Mãesdefavela #cufacontraovirus #cufa
 

 

Fotos: Fabiana Ribeiro

COMENTÁRIOS

Uma resposta

  1. Orgulho da nossa gente , Dona Rosinha , seo Orlando e Andrea …..parabéns pela matéria Fabiana
    A Luta continua

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