Jornalistas Livres

Autor: Helio Carlos Mello

  • O PODER DA INTOLERÂNCIA

    O PODER DA INTOLERÂNCIA

     

    As ruas da capital do país estavam diferentes na manhã desta quarta-feira. Mais viaturas na esplanada, mais plumas e rostos pintados nas vias. Os indígenas, muitos, que se abrigam em pousadas simples localizadas no que aqui chamam W3 Norte, ou que em barracas e entre plástico preto ergueram uma aldeia durante o Acampamento Terra Livre, no Eixo Monumental da cidade, resistem ao sol, chuva, banheiros químicos e água de cano. Do improviso e coragem se faz o tempo dos mais simples que à terra pertencem, como semente de buriti ou pequi, tudo é vida que insiste.

    Há uma escada que, aos fundos da grande quadra em que se instalou o acampamento, em seus degraus está escrito por artista desprovido de galerias: O POEMA É ÁREA  PÚBLICA INVADIDA PELA IMAGINAÇÃO. Nada mais apropriado para esses dias de discórdia.

    Políticos se sensibilizaram com a forte agressão impetrada aos povos reunidos na capital e que  foram afrontados em legítima manifestação. Tal confronto levou à convocação da presença de lideranças indígenas de todas as regiões para uma reunião em sala do anexo do Senado durante a tarde desta quarta-feira.

    Muito bem, assim foi e organizou-se o cronograma  entre as lideranças para o vespertino previsto e foram em um grupo de 60 representantes de variadas etnias ao encontro no anexo do povo, definido Senado. A regra era clara, não portar qualquer flecha ou borduna (pedaço de pau usado entre guerras tribais) durante a visita para o diálogo. Saíram do Acampamento e passaram todos por revista de policiais entre viaturas, logo no início da longa caminhada à área dos anexos, aliás essa cidade adora anexos.

    Tudo corria bem até que um capitão exaltado e autocrático (essa emoção é muito evidente entre os policiais daqui) não gostou de ser chamado de baby, palavra sem nenhum importância para o indígena que a pronúncia, e prontamente respondeu: não me chame de baby, meu nome é capitão… Pronto, estava instalada uma discórdia entre orgulho e ofensas.  Cena quase surrealista entre a vaidade de um policial e o mundo de fato quase provocou uma guerra entre dois universos, pois o capitão mobilizou dezenas de policiais para seu resguardo, além de convocar a cavalaria da capital, para escoltar um grupo de 60 indígenas durante o trânsito livre para os  cidadãos em um país nem tão livre assim.

    Um dia após a Marcha Indígena ser brutalmente reprimida pela polícia, com bombas de efeito moral e gás lacrimogêneo, atingindo idosos e crianças, foi convocada uma audiência pública pela senadora Maria Regina Souza, do Piauí, para discutir os desejos do movimento indígena, como a demarcação de terras e a atual situação das terras já demarcadas.

    A comitiva multi-étnica foi covardemente proibida de entrar na audiência pública que discutiria suas próprias questões. Com o falso argumento que a sala não comportaria tantas pessoas, embromaram a comitiva indígena. O ex-senador João Pedro, a senadora Vanessa Grazziotin e a própria senadora Maria Regina tentaram em vão, passar a audiência para um auditório maior, e assim contemplar a todos os presentes. Sentindo-se completamente desrespeitados a comitiva decidiu voltar para o Acampamento Terra Livre. Mais uma vez percebe-se a total indiferença que as instituições tratam as causas indígenas.

    Não fosse suficiente todo o enredo e triste cenário armado na capital do da nação, os indígenas foram abordados por viatura que transitava na rua, no local em que o Acampamento se instala. Centenas de indígenas reagiram a abordagem exigindo respeito, pois nada justificava tais abordagens. Mais uma vez dezenas de policiais se mobilizaram.

    Talvez por providência ou simples capricho da natureza, forte chuva começou a cair na capital, amainando tais ânimos, dissipando fúrias, vaidades e corporações.

    Brasília se mostra cidade proibida. Triste ver o sonho do poeta mergulhado na opressão.

  • BOMBAS EM BABEL

    BOMBAS EM BABEL

    Ontem o dia amanheceu rico na capital do país, Brasília. Fascinante reunião de representantes de dezenas de etnias mostrava o esplendor imensurável da cultura e tradições dos povos indígenas do país. O evento Acampamento Terra Livre, organizado pela Articulação Povos Indígenas do Brasil, me dava a impressão de estar chegando a uma reunião de cúpula de grandes líderes internacionais, desses que às vezes vemos na TV, desde crianças.

    Tamanha  riqueza de detalhes e profusão de línguas originárias, que em muitos momentos provocam forte emoção, me envolvia o pensamento e de fato me sentia numa capital do mundo, me orgulhava da nação que chamamos de Brasil, mas os índios chamavam Pindorama quando uma terra livre se fazia e tudo era índio.

    O objetivo do Acampamento é: “Reunir em grande assembléia lideranças dos povos e organizações indígenas de todas as regiões do Brasil para discutir e se posicionar sobre a violação dos direitos constitucionais e originários dos povos indígenas e das políticas anti-indígenas do Estado brasileiro”.

     

     

     

    Pouco durou meu deleite com a cidade que inspira liberdade entre sua monumental esplanada. A marcha que seguia foi recebida à bomba quando os indígenas em protesto, colocaram blocos de isopor no espelho d’água, feito caixões para os defuntos, aludindo aos muitos mortos nessa guerra pela terra e suas fortunas. Os indígenas e seus guerreiros reagiram com flechas tradicionais às culturas e foram ferozmente atacados com dezenas de bombas de gás, não se importando o batalhão com as muitas mulheres, idosos ou qualquer população acostumada aos rincões; muitos indígenas inclusive com pouco contato com esse artefato que queima a pele e mareja os olhos, chamado entre nós de bomba de efeito moral. Muitos passaram mal sobre o efeito desnecessário de tal truculência imoral. Muitos jovens das etnias revidaram as ameaças ao protesto pacífico que se fazia então.

     

    Apenas a presença de seis deputados e uma senadora conseguiu debelar a fúria da trompa, que fartamente deixaram os índios cheio de fumaça, como eles mesmo descrevem o fato, quando se acalmaram os ânimos. Aquilo que deveria ser motivo para alertar o Congresso sobre a necessidade urgente de atenção às reivindicações das lideranças indígenas, em legítima manifestação e auspicioso encontro, tornou-se instantaneamente uma diáspora.

     

    Jogaram bombas entre tantos, tudo faz lembrar os séculos de martírio perpetrado aos povos originários. O poder ilegítimo que nesse momento envolve a esplanada , arrogante com os povos indígenas durante toda história, mostra sua mão pesada entre arcos e eixos.

    Não, Brasília não é fascinante, escandaliza em suas misérias e mazelas. O arquiteto deve ter pensado paz quando sonhou a cidade, mas se querem guerra terão guerra.

  • MUITOS SÃO OS CANTOS

    MUITOS SÃO OS CANTOS

    Borboletas com plumas invadem o eixo do poder entre as asas. Pensou o urbanista que um dia a esplanada, em sua junção, estaria entre barracas ocupando o plano? O Acampamento Terra Livre se faz piloto nesse momento e a grande aldeia se instala entre poderes.

    A Carta Magna de 5 de outubro de 1988, em seus artigos 231 e 232, reconhece o direito dos povos originários, o direito à identidade cultural própria e diferenciada, bem como seus direitos às terras tradicionalmente ocupadas.

    A atual gestão do governo, ilegítimo e anti-indígena de Michel Temer, evidencia cada vez mais distantes os direitos assegurados. Inúmeras medidas administrativas, jurídicas e políticas que visam desmontar instituições como a Fundação Nacional do Índio, desanimam e torna alerta todos, mas sempre rejuvenescidos quando a resistência é necessária.

    Some-se à tantas ameaças a volta da visão tutelar do Estado,a negação do direito de acesso à justiça, práticas de violência e racismo, bem como o uso irresponsável de recursos naturais em nome da modernização do país.

    E no entanto os indígenas cantam. As mulheres se adornam e os anciões vigiam.

    Brasília, terra livre.

  • A LIBERDADE DA CURA

    A LIBERDADE DA CURA

    Brasília está mais luminosa nessa manhã e uma brisa fresca parece envolver os que estão atentos.

    Algo lembra um quadro de Tarsila do Amaral em cena e cores, numa mistura dos Operários com Abaporu, uma escuta e expectativa. Se o Estado brasileiro é um homem que come gente, aqui na capital agora são dezenas de mulheres que trazem vida, dezenas de indígenas vindas de todas regiões do país e representando os 34 Conselhos Distritais de Saúde Indígena, para a primeira etapa da I Conferência Livre de Saúde das Mulheres Indígenas, iniciado no Memorial dos Povos Indígenas, neste domingo.

    É tempo de direcionamento e fortalecimento nas causas indígenas e com suas mulheres não seria diferente. Estamos em Brasília, onde ocorrem muitas doenças, diz o anfitrião do espaço onde acontece o evento, Álvaro Tukano, como uma provocação aos desafios desses tempos.

    “Antes só os homens saiam da aldeia e viajavam em representações. Agora a mulher está falando, estamos tomando nosso espaço. Agora é o momento de os homens nos ajudarem, carregar água, carregar mandioca. O rio saudável segue livre, e como essa água de rio temos que ir livres. Muitas vezes o rio muda seu curso, assim temos que seguir, entre curvas.” Iolanda Kauwonó Makuxi  

     A palavra inicial é cura e o objeto é a saúde. Garantir a participação das mulheres indígenas na Conferência Nacional de Saúde das Mulheres, realização do Conselho Nacional de Saúde, prevista para agosto deste ano, e a representatividade e especificidade da saúde das mulheres indígenas é o foco. As representantes e suas etnias afirmam que não querem mais serem apenas convidadas a participar, que estão cansadas de cortesias e querem sim serem delegadas na conferência, terem direito a voto.

    O mundo mudou e nas aldeias o novo invade e o admirável se furta. O que se revela nas mãos decididas das mulheres e na voz firme é a segurança para a vida e antigos conhecimentos de cura. Sem as mulheres não existiria o mundo, afirmam elas. Quem seria mãe ou parteira de todos, indagam sempre. Sexo frágil é mentira de branco.

     

    Nesta primeira fase, representantes de cada um dos 34 Conselhos Distritais de Saúde Indígena (Condisi) irão expor suas necessidades de saúde, além de discutir temas considerados prioritários para serem debatidos nas plenárias. A Conferência segue até o dia 27 de abril e contará com a participação das mulheres indígenas que vierem a Brasília para o Acampamento Terra Livre, inclusive com a realização dos debates no mesmo espaço do ATL, no Eixo Monumental.

     

     

     

  • ENTRE PRESIDENTE E ÍNDIO

    ENTRE PRESIDENTE E ÍNDIO

    Na entrada do Memorial dos Povos Indígenas, em Brasília, um índio em bronze guarda os conhecimentos e dignidade dos povos originários.

    Na tarde amena em dia de descobrimento, fiquei por horas em 22 de abril, numa calçada da capital  entre memoriais a observar gestos em bronze consolidados. É sábado, e sábado na capital do país é dia sem palavras, só cabe ao ser ciente de si e sua solidão observar. Mas o fato é que Juscelino Kubitschek olha em paz o infindo, em gesto amplo parece oferecer e ao mesmo tempo consentir benção lá do céu.  Cá em baixo na rua estou entre as quadras, no Memorial dos Povos Indígenas, e olho atento um índio em bronze também, segurando seu arco e flecha em direção a Juscelino ao alto, um olhando o Memorial do outro. O que há nessa relação, nesse entre olhares? Questiono, me surpreendo.

    Visão eterna do índio em bronze para o bronze de Juscelino em memorial, estático entendimento que aguarda em silêncio a ratificação do respeito da nação e legisladores.

    Há algo aqui inserido pelo arquiteto? Artistas adoram isso, meter símbolos, paralaxes, sintaxes, criptografias.

    No Memorial dos Povos Indígenas encontro em espaço tão nobre e de poucos proventos, Francisco Guajajara e Álvaro Tukano, guerreiro e cacique, homens que proferem guardas e sabedorias em puro afinco e resistência, a zelarem pelo espaço indígena na capital. Tímido diante de JK, os memoriais se defrontam em terno respeito e incrível arquitetura e ousadia nas linguagens. O que quis o arquiteto?

    Álvaro, em breve diálogo me diz: cada um pegou seu índio e quer colocá-lo no bolso, a academia, as ONGs, os políticos. Eu venho de uma escola aonde a nota é o que o homem faz. O conhecimento de vocês deixa o índio mais pelado, mais técnico. O meio ambiente é que ensina a gente a sobreviver. A saúde do mundo não é como um saco de bombom, onde tal e qual pega o seu. A terra  e o povo são um só.

    Brasil meio olho do mundo, um eterno retorno ao descobrimento de algo que sempre existiu, e se reinventa e se tutela e se recusa.

    Um homem e seu cocar percorrem o corredor do Memorial indígena. Oscar Niemeyer via o que a nação brasileira ainda tem miopia em saber, o índio no olho do mundo.

    Um amanhã sempre surpreende em Brasília.

  • DESEMBARQUE PELO LADO ESQUERDO DO RIO

    DESEMBARQUE PELO LADO ESQUERDO DO RIO

    Antigamente olhava-se o mundo grande e o horizonte refletia o céu, tal um espelho da verdade.  Certo dia Cunhã pôs o inhame no pilão, como fazia todos os dias no preparo do alimento. Cunhã levantou muito a mão de pilão em seus amassamentos e partiu o espelho, que aos pedaços caiu do céu e a verdade de cada um se fez aos cacos.

    O que está acontecendo? Talvez tenha sido essa a primeira questão que aos nativos ocorreu na visão das caravelas vindo nas águas sem fim. A verdade nunca mais seria a mesma, o martírio se apresentava à terra tão vasta. O senhor se anunciara ao índio que andava na praia em labor e graça. Campo fértil para malícias, o colonizador logo aqui fez sua morada.

    Há um rio que começa na Amazônia e tem sua foz na Avenida Paulista, o caminho do ouro, onde toda riqueza encontra um dono. Desembarque pelo lado esquerdo do rio, esses tempos não são para boas palavras, é tempo de espanto e tristeza.

    O encontro dos saberes entre paradigmas recorrentes. Ailton Krenak e Tom Zé espelham a sabedoria presente.

    Acomodar a sabedoria se faz necessidade única nesses tempos de cão. Desencanto é palavra árida e o auditório da grande livraria está com a lotação esgotada e trava-se a porta; muitos tem sede entre as mentiras rompendo a lógica das coisas. Tom Zé entra pelo palco mesmo, urge ouvir certos homens. O sal da terra interpõe-se entre o preto asfalto e os livros, escandaliza a alma e o poeta apropria-se da cunha anunciando que o sertanejo é antes de tudo um índio.

    Davi Yanomami está triste e com raiva dos governos, pois os garimpeiros voltaram ao Rio Uraricoera com suas dragas e batéias. Davi traz as notícias do fim do mundo: negociam a terra, colocam boi, tiram os peixes do rio, cortam a cabeça da FUNAI, tiram-lhes os braços, quebram-lhes as pernas.  Davi Yanomami, recém chegado de Genebra, onde foi denunciar seus desencantos com os ouvidos moucos daqui, sabe que o presidente não é honesto e segue hoje à Brasília para expor o mapa do garimpo.

    Davi Kopenawa Yanomami reflete as ameaças a seu povo e as infidelidades de nossos governos.

    Ailton Krenak lembra da discrepância entre o projeto de desenvolvimento perpetrado pelo Estado brasileiro, incapaz de solucionar as demandas das populações tradicionais ou propor alternativas, preservar aquilo que é limpo e puro em terras demarcadas. Seguindo a tradição dos cacuetes recorrentes, lembra ele, sem saber o que fazer com os povos indígenas, sedimentando um trauma à todas etnias. O Estado vai escrevendo seu conto: matam o rio, comem a montanha, derrubam a floresta e algum tarado faz mineração por aí. Em equívoco de português nos deram o apelido de índio e seguimos existindo por pura persistência, conclui.

    Mais um dia do índio se anuncia nesse abril, mais um volume da coleção Povos Indígenas do Brasil é lançado https://www.socioambiental.org/pt-br/manchetes.  Como Tom Zé em sua Moda do Fim do Mundo, seguimos nos desencantos, martírio e falsas soluções, cantando: Cumpadi em brasília, espaiaram um boato muito chato, que o mundo vai se acabar. 

    Beto Ricardo, do Instituto Socioambiental, expõe os motivos da publicação Povos Indígenas do Brasil 2011/2016.