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Política

Aragão: “ Quando a coisa ficar insustentável, eles terão que liberar o Lula”

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Por Bruno Falci, de Lisboa, especial para o Jornalistas Livres

 

Encontramos o jurista Eugênio Aragão em uma pequena e bucólica praça de Carcavelos, cidade situada a poucos quilômetros de Lisboa. Trata-se de um cenário muito especial em sua vida. Por isso, ele sempre retorna ao lugar. Antes da entrevista, em uma rápida conversa, Aragão disse que, quando era jovem, viveu três anos em Carcavelos. Sendo filho de pai diplomata, sempre viajou muito e, foi nessa época, que morou em Portugal, sendo perceptíveis seus laços afetivos com o país.

Ele fala de um imenso galpão, que pode ser visto, no vídeo abaixo, ao fundo da praça verdejante, em pleno verão europeu, e faz  um paralelo com a narrativa nostálgica do filme Cinema Paradiso (1988), de Giuseppe Tornatore, Esse galpão, diz Aragão, era um cinema típico de bairro, que ele frequentava assiduamente e que hoje não existe mais, sendo transformado em um centro cultural. Neste espaço tranquilo, tendo ao fundo o “Cinema Paradiso” dos seus tempos juvenis, sentados em um banco da praça, realizamos nossa entrevista que é dedicada às turbulências políticas do Brasil atual.

            Eugênio Aragão, professor titular de Direito Internacional da Universidade de Brasília e doutor em Direito pela Universidade de Ruhr de Bochum (Alemanha), foi  membro do Ministério Público Federal, de 1987 a 2017, e Ministro da Justiça da Presidenta Dilma Rousseff, em 2016. No momento, a atuação de Aragão, que está em Portugal para participar de diversas atividades em seu campo de conhecimento, tem se destacado pela firme defesa dos valores democráticos e dos direitos jurídicos e coinstitucionais, diante dos discursos de intolerância que caracterizam o governo brasileiro. Inicialmente, ele destaca “a importância da entrevista para explicar esse momento insólito, tão extraordinariamente degradante do país, que necessita de uma explicação, pois as pessoas não entendem o que está se passando”. Hoje, Aragão esteve também em um debate na Casa Ninja de Lisboa, organizado em Conjunto com o Dialogo e Ação Petista de Lisboa.

“A Lava Jato é liderada por um pessoal de baixa qualificação”

Nesse contexto, Aragão analisa o papel do The Intercept, que tem divulgado a colaboração ilegal entre o ex-juiz Sérgio Moro e os procuradores da Lava Jato:

“ Tudo isso divulgado hoje, de alguma forma já intuíamos, para  nós não chegou a ser uma novidade. O novo é que pela primeira vez nós temos esses fatos provados, essa combinação entre o juiz e o Ministério Público acusador, que prejudicou a defesa. Isso não tem nem nome porque o processo penal hoje é visto por si só como uma atividade de grande risco do Estado. O processo penal manipula  aquilo que chamamos monopólio da violência do Estado. Então o Estado tem que se conter. O Direito Penal não é uma arma contra o cidadão, ele é para proteger determinados bens jurídicos que são caros para aquilo que se denomina sociedade e para proteger aquele que é acusado em ataque ou investida injusta contra ele. Não é transformar uma persecução em um show, como eles têm feito. Isso degrada o Direito Penal e vai contra a presunção de inocência. Isso é um  dos valores mais caros do Direito Penal.

Aragão esclarece:

“Todo mundo é presumido inocente até o trânsito em julgado de uma sentença penal condenatória. No caso do Lula, a sentença sobre o triplex nem transitou em julgado. Nós temos uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça bastante criticada porque não adentrou nenhuma das questões levantadas pela defesa e apenas se limitou a  discutir a dosimetria, ou seja, só reduzir a pena do Lula. Vê-se claramente uma má vontade do STF em relação ao Lula. Isso, de certa forma, é o que acompanhou esse processo desde o início. Uma profunda má vontade de ouvir e levar a sério a versão da defesa. É como se tudo estivesse previamente liquidado. Lula seria condenado de qualquer jeito e seria excluído do processo eleitoral. O mais importante foi não permitir ao PT voltar a governar o país. E isso que estava em jogo”.

Segundo Aragão, vê-se isso claramente graças aos vazamentos do The  Intercept:

“Os procuradores dizendo sem nenhum tipo de pejo que o importante é o Lula não voltar e o Haddad não ser eleito. Aquilo que nós já desconfiávamos agora está provado, mas provado de uma maneira tão sórdida – essa conversinha do juiz debochando da defesa, chamando de showzinho da defesa é algo realmente chocante. As provas ilícitas (do The Intercept) servem para a defesa, mas não servem para acusar. Elas servem para  provar que o processo contra Lula foi um engodo”.

Indagado sobre a possibilidade da Lava Jato ser não ser somente um ataque ao PT e às esquerdas no Brasil, mas também contra as esquerdas latino-americanas, Aragão afirma:

“Se ela é isso, não sei. A Lava Jato é liderada por um pessoal de baixa qualificação. Nem Moro, nem Dallagnol são pessoas que têm um vasto conhecimento jurídico do processo penal. Não acredito que eles tenham capacidade de montar uma operação para acabar com as esquerdas latino-americanas. Não está na capacidade deles isso. Agora, eles abriram um flanco enorme com a PTfobia deles e que foi aproveitada por outros. Num momento em que o corpo está doente, as bactérias oportunistas tomam conta e as bactérias oportunistas, neste caso, são os  interesses americanos. Já há muito tempo,, desde 2004, 2005, venho percebendo essa aproximação muito pouca republicana entre setores do Ministério Público brasileiro e o Ministério Público americano, de Nova York e Miami. Quando trabalhei na Cooperação Internacional da Procuradoria Geral da República já observava que essas ligações não me agradavam, essas intimidades com seus equivalentes americanos”.

Agenda anti-corrupção sempre foi do PT”.             

Descrevendo a trajetória do golpe, Aragão aponta que a corrupção foi um discurso que pegou na sociedade brasileira, graças à mídia que queria atingir o governo do PT:

“Desde 2013 o combate a corrupção passou a ser uma agenda de acusações para atingir o PT, com muito mais ênfase que antes. Desde a época do mensalão que tentavam atingir o partido, mas 2013 foi o auge, quando o STF começou seus julgamentos em sessões extremamente estrondosas presididas por Joaquim Barbosa, e isso junto com as manifestações de rua. A Rede Globo rapidamente junta a agenda do STF contra a corrupção com a agenda das ruas. Aquilo que era um movimento seu rumo, no início, rapidamente tomou o significado da luta contra a corrupção. Com a PEC 37 o Ministério Público selou seu acordo com a mídia para um grande projeto de derrubada do governo, através da chamada agenda anticorrupção”

Aragão acentua que a agenda anticorrupção sempre foi do PT:

“Criamos todos os instrumentos legislativos que hoje existem para combater a corrupção, começando pela delação premiada e a ficha limpa. O partido nunca fugiu dessa discussão e nunca a utilizou como arma política. Dilma, quando assumiu em 2011, entrou limpando tudo o que ela pode. Colocou a Graça Foster na Petrobras porque não confiava em ninguém para desmontar os esquemas de corrupção. Na hora em que começou a fechar as portas, Dilma começou a se fragilizar e a preparar com isso a sua derrocada”.

“Moro jamais  poderia ser sido juiz de Lula”

A prisão do Presidente Lula é, para Aragão, a síntese do processo da Java Jato. A propósito das denúncias publicadas pelo The Intercept e difundidas pela Folha de S. Paulo e a  revista Veja, o jurista é cético quando analisa o comportamento do judiciário:

“O judiciário, o STF não são instâncias de garantias fundamentais do indivíduo. O STF foi o grande omisso em todas essas barbaridades cometidas pela operação Lava Jato. Eu não acredito que eles queiram dar a mão à palmatória. Sou muito cético em relação a isso. É claro que, em algum momento, eles vão soltar o Lula, mas não se sabe quando. A coisa vai ficar insustentável. Aí eles terão que liberar o Lula”.

Aragão conclui:

“Vamos precisar, na 2ª Turma, pelo menos do Ministro Celso de Mello para assumir claramente esse papel de defender o devido processo legal e reconhecer que Moro jamais poderia ser sido juiz de Lula. Se ele fizer isso, estaremos bem e Lula poderá ser solto e o processo anulado. Se ele não fizer, a luta continua. Nós vamos demonstrar que tudo isso foi um grande engodo. Vai chegar uma hora que vai ficar insustentável”.

 

 

Veja entrevista na íntegra:

Agradecimentos pela colaboração de Caroline Cicarello e Rayra Fortunato no auxilio técnico da entrevista

 

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8 Comments

8 Comments

  1. Sandro Pavezzi

    17/07/19 at 19:52

    As informações transmitidas pelo the Intercept são atribuidas a um hacker, algo que o The Intercept não aprova ou reprova, mas vamos partir do pressuposto que são.

    Neste cenário elas não são aceitas como provas de acusação. Mas se o hacker fizer uma delação premiada elas são validas? ou pelo menos servem para determinar a apreensão dos aparelhos celulares?

  2. Bruno Bomfim

    18/07/19 at 0:39

    O Jornalista não é obrigado a divulgar sua fonte. A prova adquirida de forma ilegal (teoria do fruto da árvore envenenada) não pode ser usada no processo, exceto se ela for única prova capaz de provar a inocência do réu. No caso de Lula, essa é a única prova capaz de provar o que a defesa sempre alegou: que o Juiz Sérgio Moro era parcial.

  3. Paula R.

    18/07/19 at 2:44

    Hackers a atuar para denunciar este tipo de situaçoēs não são hackers, são salvadores da democracia, da justiça, da verdade, a fazerem a vez por quem devia fazer e não faz. Quem não acomodar essa visão está a compactuar com o golpe Bolsonaro. Alegar parcialidade por parte de Moro, é um brutal eufemismo. O Brasil, não passa hoje de uma perigosa anedota mundial

  4. Jose Cicero Da Silva Machado Machado

    18/07/19 at 5:46

    E verdade mais sedo ou más tarde isso vai ficar ruim

  5. Sérgio frade

    18/07/19 at 8:46

    É claro que uma pessoa do calibre do dr Aragão ao comentar o vasa a jato tem sua relevância . Todavia fica aqui a pergunta que não pode calar a lava a jato foi ou não uma coisa boa para o Brasil? O que importa às vezes é o resultado alcançado. O Brasil sempre foi espoliado pela nossa classe política. Agora eu acho que eles vão pensar duas vezes não?

  6. Guilherme Ginjo

    18/07/19 at 14:57

    Dois parágrafos descritivos de jornalismo literário sobre memória afetiva de portugal desconecta demais a pauta do povo que precisa da informação central da conversa. Não precisava desse lirismo todo, muito menos para descrever a porção de privilégios em torno do jurista. Que seja mais discreto, senta na praça e vai direto ao assunto. No mais, as colocações dele são precisas. E o Sergio Frade, aqui acima, acredita em papai noel

  7. Vera Amorim

    20/07/19 at 13:08

    Eu acho, não sou advogada, mas pelo modo como foi conduzida, foi uma operação de acabar o PT e acabou colocando o Brasil mais miserável ainda. As armas contra a corrupçao, delação premiada (uma aberração) e ficha limpa foram colocadas no governo petista. Então o espetáculo foi meramente circense e a corrupção poderia ser conduzida com rigor, sem holofotes e ai sim poderia ser imparcial. Não acredito mais na justiça

  8. Rogério M.

    05/08/19 at 6:33

    É correta observação de que a entrevista, em sua abertura, faz jornalismo literário. Só que entendo isso como algo que pode lembrar o modelo de reportagem de Ernest Hemingway, qur narrava os acontecimentos sem perder o tom psicológico e intimista, revelando contexto, o cenário e as ações que envolviam os personagens. Por outro lado, a matéria em pauta pode ser vista integralmente em vídeo.

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Campinas

Ocupação Mandela: após 10 dias de espera juiz despacha finalmente

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Depois de muita espera, dez dias após o encerramento do prazo para a saída das famílias da área que ocupam,  o juiz despacha no processo  de reintegração de posse contra da Comunidade Mandela, no interior de São Paulo.
No despacho proferido , o juiz do processo –  Cássio Modenesi Barbosa –  diz que  aguardará a manifestação do proprietário da área sobre eventual cumprimento de reintegração de posse. De acordo com o juiz, sua decisão será tomada após a manifestação do proprietário.
A Comunidade, que ocupa essa área na cidade de Campinas desde 2017,   lançou uma nota oficial na qual ressalta a profunda preocupação  em relação ao despacho  do juiz  em plena pandemia e faz apontamento importante: não houve qualquer deliberação sobre as petições do Ministério Público, da Defensoria Pública, dos Advogados das famílias e mesmo sobre o ofício da Prefeitura, em que todas solicitaram adiamento de qualquer reintegração de posse por conta da pandemia da Covid-19 e das especificidades do caso concreto.

Ainda na nota a Comunidade Mandela reforça:

“ Gostaríamos de reforçar que as famílias da Ocupação Nelson Mandela manifestaram intenção de compra da área e receberam parecer favorável do Ministério Público nos autos. Também está pendente a discussão sobre a possibilidade de regularização fundiária de interesse social na área atualmente ocupada, alternativa que se mostra menos onerosa já que a prefeitura não cumpriu o compromisso de implementar um loteamento urbanizado, conforme acordo firmado no processo. Seguimos buscando junto ao Poder público soluções que contemplem todos os moradores da Ocupação, nos colocando à disposição para que a negociação de compra da área pelas famílias seja realizada.”

Hoje também foi realizada uma atividade on-line  de Lançamento da Campanha Despejo Zero  em Campinas -SP (

https://tv.socializandosaberes.net.br/vod/?c=DespejoZeroCampinas) tendo  a Ocupação Mandela como  o centro da  discussão na cidade. A Campanha Despejo Zero  em Campinas  faz parte da mobilização nacional  em defesa da vida no campo e na cidade

Campinas  prorroga  a quarentena

Campinas acaba prorrogar a quarentena até 06 de outubro, a medida publicada na edição desta quinta-feira (10) do Diário Oficial. Prefeitura também oficializou veto para retomada de atividades em escolas da cidade.

 A  Comunidade Mandela e as ocupações

A Comunidade  Mandela luta desde 2016 por moradia e  desde então  tem buscado formas de diálogo e de inclusão em políticas  públicas habitacionais. Em 2017,  cerca de mais de 500 famílias que formavam a comunidade sofreram uma violenta reintegração de posse. Muitas famílias perderam tudo, não houve qualquer acolhimento do poder público. Famílias dormiram na rua, outras foram acolhidas por moradores e igrejas da região próxima à área que ocupavam.  Desde abril de 2017, as 108 famílias ocupam essa área na região do Jardim Ouro Verde.  O terreno não tem função social, também possui muitas irregularidades de documentação e de tributos com a municipalidade.  As famílias têm buscado acordos e soluções junto ao proprietário e a Prefeitura.
Leia mais sobre:  
https://jornalistaslivres.org/em-meio-a-pandemia-a-comunidade-mandela-amanhece-com-ameaca-de-despejo/

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#EleNão

EDITORIAL – HOJE É DIA DE LUTO! PERDEMOS O MENINO GABRIEL

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Gabriel e Lula: aniversário no mesmo dia: 27/10

Gabriel e Lula: aniversário no mesmo dia: 27/10

Gabriel e Lula: aniversário no mesmo dia: 27/10

Perdemos um camarada valoroso, um menino negro encantador de feras, um sorriso no meio das bombas e da violência policial, um guerreiro gentil que defendeu com unhas e dentes a Democracia, a presidenta Dilma Rousseff durante todo o processo de impeachment, e o povo brasileiro negro e pobre e periférico, como ele.

Gabriel Rodrigues dos Santos era onipresente. Esteve em Brasília, na frente do Congresso durante o golpe, em São Paulo, nas manifestações dos estudantes secundaristas; em Curitiba, acampando em defesa da libertação do Lula. Na greve geral, nas passeatas, nos atos, nos encontros…

O Gabriel aparecia sempre. Forte, altivo, sorrindo. Como um anjo. Anjo Gabriel, o mensageiro de Deus

Estamos tristes porque ele se foi hoje, no Incor de São Paulo, depois de um sofrimento intenso e longo. Durante três meses Gabriel enfrentou uma infecção pulmonar que acabou levando-o à morte.

Estamos tristíssimos, mas precisamos manter em nossos corações a lembrança desse menino que esteve conosco durante pouco tempo, mas o suficiente para nos enriquecer com todos os seus dons.

Enquanto os Jornalistas Livres estiverem vivos, e cada um dos que o conheceram viver, o Gabriel não morrerá.

Porque os exemplos que ele deixou estarão em nossos atos e pensamentos.

Obrigada, querido companheiro!

Tentaremos, neste infeliz momento de Necropolítica, estar à altura do Amor à Vida que você nos deixou.

 

 

Leia mais sobre quem foi o Gabriel nesta linda reportagem do Anderson Bahia, dos Jornalistas Livres

 

Grande personagem da nossa história: Gabriel, um brasileiro

 

 

 

 

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Golpe

Presidência cavalga para fora dos marcos do Estado de Direito

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Por Ruy Samuel Espíndola*

O Governo, num Estado de Direito, deve ser eleito, e, depois de empossado, deve ser exercido de acordo com regras pré-estabelecidas na Constituição. Essas são as regras do jogo, tanto para a tomada do poder, quanto para o seu exercício, como ensina Norberto Bobbio. Governo entendido aqui como o conjunto das instituições eletivas, representadas por seus agentes políticos eleitos pelo voto popular. Governo que, numa República Federativa e Presidencialista como a brasileira, é exercido no plano da União Federal, pela chefia do Executivo, pela Presidência da República e seus ministros, como protagonistas e pelo Congresso Nacional, com os deputados federais e senadores, como coadjuvantes.

Ao Governo, exercente máximo da política, devem ser feitas algumas perguntas, para saber de sua legitimidade segundo o direito vigente: quem pode exercê-lo e com quais procedimentos? Ao se responder a tais questões, desvela-se o mote que intitula este breve ensaio.

Assim, pode-se dizer “Governo constitucional” aquele eleito segundo as regras estabelecidas na Constituição: partido regularmente registrado, que, em convenção, escolheu candidato, que, por sua vez, submetido ao crivo do sufrágio popular, logrou êxito eleitoral. Sufrágio que culminou após livre processo eleitoral, no qual se assegurou, em igualdade de condições, propaganda eleitoral e manejo de recursos para a promoção da candidatura e de suas bandeiras, e que não sofreu, ao longo da disputa, nenhum impedimento ou sanção do órgão executor e fiscalizador do processo eleitoral: a justiça eleitoral. Justiça que, através do diploma, habilita, legalmente, o candidato escolhido nas urnas, a se investir de mandato e exercê-lo. Um governo constitucional, assim compreendido, merece tal adjetivação jurídico-politica, ainda que durante o período de campanha ou antes ou depois dele, o candidato e futuro governante questione o processo de escolha, coloque em dúvida sua idoneidade, ou mesmo diga que não estará disposto a aceitar outro resultado eleitoral que não o de sua vitória, ou, após conhecer o resultado da eleição, diga que o conjunto de seus adversários podem mudar para outros países, pois não terão vez em nossa Pátria e irão para a “ponta da praia” .

O Governo constitucional, sob o prisma de seu exercício, após empossado, é aquele que respeita a mínimas formas constitucionais, enceta suas políticas mediante os instrumentos estabelecidos na Constituição: sanciona e publica leis que antes foram deliberadas congressualmente; dá posse a altas autoridades que foram sabatinadas pelas casas do congresso; não usa de sua força, de suas armas, a não ser de modo legítimo, respeitando a oposição, as minorias e os direitos fundamentais das pessoas e de entes coletivos; administra os bens públicos e arrecada recursos públicos de acordo com a lei pré-estabelecida, sem confisco e de modo impessoal; acata as prerrogativas do Judiciário e do Legislativo, ainda que discorde ou se desconforte com suas decisões; prestigia as competências federativas, tanto legislativas, quanto administrativas, etc, etc. Promove a unidade nacional, em atitudes, declarações públicas e políticas concretamente voltadas a tal fim.

O “Governo constitucionalista”, por sua vez, além de ascender ao poder e exercê-lo, tendo em conta regras constitucionais, como faz um governo constitucional, defende o projeto constitucional de Estado e Sociedade, através do respeito amplo, dialógico e progressivo do projeto constituinte assentado na Constituição. Respeita a história política que culminou no processo reconstituinte e procura realizá-lo de acordo com as forças políticas e morais de seu tempo, unindo-as, ainda que no dissenso, através da busca de consensos mínimos no que toca ao projeto democrático e civilizatório em constante construção sempre inacabada. E governo constitucionalista, no Brasil, hoje, para merecer esse elevado grau de significação político-democrática e civilizatória, precisa respeitar a gama de tarefas e missões constitucionais descritas em inúmeras normas constitucionais que tutelam, entre outros grupos sociais, os índios, os negros, os LGBT, os ateus, os de inclinação política ideológica à esquerda, ou a à direita, ou ao centro, sem criminalização ou marginalização no discurso público de quaisquer tendências ideológicas. É preciso o respeito ao pluralismo político e aos princípios de uma democracia com níveis de democraticidade que não se restringem ao campo majoritário das escolhas políticas, mas, antes, se espraiam para as suas dimensões culturais, sociais, econômicas, sanitárias, antropológicas e sexuais etc, etc.

Governos que ascenderam sem respeito a normas constitucionais, como foi o de Getúlio Vargas em 1930 e o que depôs João Goulart em 1964, são inconstitucionais. E governo que se exerce fechando o congresso e demitindo ministros do STF, como se fez em 1969, com a aposentação compulsória dos ministros da Corte Suprema Evandro Lins e Silva, Hermes Lima e Victor Nunes Leal, são governos inconstitucionais, arbitrários, autocráticos, fora do projeto civilizatório e democrático de 1988.

O ponto crítico de nosso ensaio é que um governo pode ascender de modo constitucional, mas passar a ser exercido de modo inconstitucional e/ou de modo inconstitucionalista. O governo do presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, é um exemplo deste último e exótico tipo: consegue ser inconstitucional e inconstitucionalista no seu exercício, embora investido de maneira constitucional.

E o conjunto de declarações da reunião ministerial de 22/4, dadas a conhecer em 22/5, é um exemplo recente a elucidar nossa asserção: na fala presidencial, a violação ao princípio da impessoalidade (art. 37, caput, CF) ressoa quando afirma que deseja agir para que familiares seus e amigos não sejam prejudicados pela ação investigativa de órgãos de segurança (polícia federal). Na fala do ministro da Educação, quando afirma “que odeia” a expressão “povos indígenas” e os “privilégios” garantidos a esses no texto constitucional, o que indica contrariar o constitucionalismo positivado nos signos linguístico-normativos “população”, “terras”, “direitos”, “língua”, “grupos” e “comunidades indígenas”, constantes nos artigos 22, XIV, 49, XVI, 109, XI, 129, V, 176, § 1º, 215, § 1º, 231, 232 da CF e 67 do ADCT. Essa fala ministerial, aliás, ressoa discurso de campanha de 2018, quando o então candidato disse, no clube israelita de São Paulo: “No meu governo, não demarcarei nenhum milímetro de terras para indígenas. Também há inconstitucionalismo evidente na fala do Ministro do Meio Ambiente quando defendeu que se fizessem “reformas infralegais” “de baciada”, “para passar a boiada”, “de porteira aberta”, no momento em que o País passa pela pandemia de covid-19, pois o foco de vigília crítica da imprensa não seria o tema ambiental, mas o sanitário e pandêmico, o que facilitaria os intentos inconstitucionalistas contra a matéria positivada nos arts. 23, VI, 24, VI e VII, 170, VI, 174, § 3º, 186, II, 200, VII, 225 e §§ da CF.

Outras falas e atitudes presidenciais ainda mais recentes, e de membros do governo, contrastam com as normas definidoras da separação de poderes, da federação e da democracia, princípios fundamentais estruturantes de nossa comunidade política naciona. A nota do general Augusto Heleno, chefe do GSI, ao dizer que eventual requisição judicial do celular presidencial pelo STF, levaria à instabilidade institucional, traz desarmonia e agride ao artigo 2º, caput, da Constituição Federal. “Chega, não teremos mais um dia como hoje” e “Decisões judiciais absurdas não se cumprem”. Essas falas presidenciais, após o cumprimento de mandados judiciais no âmbito do inquérito judicial do STF, ordenados pelo Ministro Alexandre Moraes, agridem o mesmo dispositivo constitucional, com o agravante do artigo 85, II e VIII, da CF, que positiva ser crime de responsabilidade do presidente atentar contra o livre exercício do Poder Judiciário. E o atentado contra a democracia poderia ser também destacado na fala do filho do Presidente, deputado federal Eduardo Bolsonaro, que declarou estarmos próximos de uma ruptura e que seu pai seria chamado, com razão, de ditador, a depender das atividades investigativas do judiciário, tomadas como agressões ao governo de seu genitor. E o atentado contra a federação se evidencia nas falas presidenciais contra os governadores e prefeitos que estão a tomar medidas sanitárias no combate a covid-19, em que o presidente objetiva desacreditá-los e incitar suas populações contra esses chefes dos executivos estaduais e municipais, para que rompam o isolamento social, com agressão patente aos artigos 1º e 85, II, da Constituição. Os ataques diários aos órgãos de imprensa e a jornalistas, assim como sua atitude contra indagações de repórteres, também afrontam o texto da constituição da República: 5º, IX e XIV, 220 §§ 1º e 2º, protegidos pelo art. 85, III, da CF.

Em nossa análise temporalmente situada e teoricamente atenta, o conjunto de declarações públicas conhecidas do então deputado federal Jair Bolsonaro, desde seu primeiro mandato parlamentar, alcançado em 1990, portanto após o marco constitucional de 1988, embora constituam falas inconstitucionais e inconstitucionalistas, não servem para descaracterizar a “constitucionalidade” de sua eleição em 2018. Embora ainda reste, junto ao TSE, o julgamento de ação de investigação judicial eleitoral por abuso dos meios de comunicação social, que poderão ganhar novos elementos de instrução resultantes da CPI no Congresso sobre fake news e do inquérito judicial do STF com objeto semelhante. Sua eleição presidencial se mantém válida, assim como sua posse, enquanto essa ação eleitoral não for julgada definitivamente  pela Suprema Corte eleitoral brasileira.

Algumas de suas falas públicas inconstitucionalistas e inconstitucionais pré-presidenciais devem ser lembradas: “Erro da ditadura foi torturar e não matar”; “O Brasil só vai mudar quando tivermos uma guerra civil, quando matarmos uns trinta mil, não importa se morrerem alguns inocentes”; “Os tanques e o exército devem voltar às ruas e fechar o congresso nacional”, etc. E durante o processo eleitoral de 2018, falas inconstitucionalistas também foram proferidas: “No meu governo, não demarcarei um milímetro de terras para indígenas”. “O Brasil não tem qualquer dívida com os descendentes de escravos. Nossa geração não tem culpa disso, mesmo porque os próprios negros, na África, escravizavam a si mesmos”, entre outras.

A resposta a nossa indagação: embora tenhamos um governo eleito de modo constitucional – até decisão final do TSE -, ele está sendo exercido de modo inconstitucional e de modo inconstitucionalista. A Presidência da República atual, caminha, inconstitucionalmente para fora do marco do Estado de Direito. E o passado pré-presidencial do presidente da República demonstra que o seu inconstitucionalismo governamental não é episódico e sim coerente com toda a sua linha de pensamento e ação desde seu primeiro mandato parlamentar federal.

  • Advogado – mestre em Direito UFSC Professor de Direito Constitucional – Presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB-SC – Membro Consultor da Comissão de Estudos Constitucionais do Conselho Federal da OAB – Imortal da Academia Catarinense de Letras Jurídicas, cadeira 14, Patrono Advogado Criminalista Acácio Bernardes. 

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