AMOR DE ÍNDIO

Conheci aquele senhor em 2003. Senhores são simpáticos ao primeiro olhar, bons velhinhos. Ele, contrário à tradição, evidenciava um primeiro olhar rigoroso entre frase firme: muito prazer, Roberto Baruzzi. Preciosos risos seriam consequências no trabalho em equipe,  cravado entre rios volumosos e mata densa entre os excluídos.

 

Um ano faz que o médico Roberto Geraldo Baruzzi, do Departamento de Medicina Preventiva da Escola Paulista de Medicina, faleceu. Fundador do Projeto Xingu, programa de extensão universitária da Unifesp, foi pioneiro no exercício e construção de uma assistência à saúde indígena no Brasil.

 

Nascido em abril de 1929,  em 1952 ingressou na faculdade de medicina, sendo também funcionário da Caixa Econômica Federal no período noturno. Concluído o curso de medicina passou ao Departamento Médico da Caixa, na Praça da Sé, quando atendeu muitos pacientes em plena epidemia de Gripe Asiática que então acometia a cidade. Como médico pertenceu à instituição por vinte anos, chegando a chefia do departamento médico do banco.

Em 1962, Baruzzi fez o Curso de Medicina Tropical com o professor Carlos da  Silva Lacaz, e após foi estudar saúde pública na Bélgica, pois os belgas tinham grande experiência em doenças tropicais no antigo Congo Belga. Baruzzi dedicaria suas ações à medicina pública. Após se aproximar da Medicina Preventiva e ao professor Leser, ele ingressa na Caravana Médica ao Araguaia, a partir de julho de 1963, viagens com destino a região da Ilha do Bananal, em atendimento aos Tapirapé, Karajá e a um grupo Kaiapó recém- contactado. Em uma dessas viagens, durante um desvio de rota, o avião da FAB fez um pouso no Posto Leonardo Villas Bôas, no Xingu. Nessa ocasião, na pista, um homem se aproximou e perguntou se havia alguém que pudesse atender um índio doente. Essa pessoa era Álvaro Villas Bôas.  Dr. Baruzzi prestou o atendimento necessário e seguiu viagem, mas ali ficou depositada uma semente, que germinou após o encontro do médico com Orlando Villas Bôas no retorno a São Paulo.

 

Do encontro com Orlando, em 1965, nasceu o acordo que a Escola Paulista de Medicina mandaria equipes de saúde ao Xingu e abriria o Hospital São Paulo para retaguarda hospitalar. 

Começaram a se organizar quatro viagens ao ano com os profissionais de saúde para assistência aos índios, coisa inédita, para pesquisa, assistência e vacinação. Dr. Baruzzi concebeu  um fichário dos índios, com todas as informações: nome, fotografia, anotações médicas em prontuário. Foi algo inédito e revolucionário na atenção à saúde indígena.

É de Roberto Baruzzi o relato:

O contato direto com os índios foi mesmo no Xingu, e a partir daí as coisas foram acontecendo, o programa foi caminhando. Também não tinha competição entre os cuidados de saúde deles e os nossos…Eles mantinham a medicina deles, com os pajés responsáveis pela saúde nas aldeias. Isso era quase uma sinergia. Não era um caso de um contra o outro, nós respeitávamos a capacidade deles, suas crenças e tradições, e eles respeitavam a nossa capacidade, o que tínhamos a oferecer, sabiam que estávamos lá para ajudar. Às vezes nós conseguíamos resolver o problema do paciente, às vezes os pajés eram mais indicados…Uma vez tivemos uma criança em coma provocado pela malária, tentamos de tudo, mas não dava certo, e o pai resolve tirar a criança, nós tentamos fazer com que ele mudasse de idéia, sem conseguir, então, desligamos o soro com antimalárico que estava sendo aplicado por via endovenosa, ficamos desolados. De repente a criança volta para dar continuidade ao tratamento, o pai havia levado a criança para o pajé e voltou animado. A criança se curou, a participação do pajé foi importante…

 

Ao longo dos últimos 51 anos, o trabalho se consolidou com a participação de amigos, antropólogos, doutores, professores, alunos, indigenistas e profissionais das artes e comunicação. Professor Baruzzi gostava de destacar a figura extraordinária de Orlando Villas Bôas e seu irmão Claúdio, e juntos inseriram páginas importantes na política de preservação física e cultural de povos indígenas e na defesa de seus direitos.

 

Homenagem ao Dr. Baruzzi, que até seus últimos dias frequentava a Escola Paulista de Medicina.

Há um ano me despedi do professor, que em final perseverante animava a todos a prosseguir, com seu rigor e seu vigor, em determinação firme no comprometimento com a saúde dos povos indígenas. Seu legado é um divisor de águas, sua vida e dedicação à saúde e respeito à diversidade das curas e tratamento das doenças indica um caminho e fortalece o espírito de todos.

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