Nesta quinta-feira ¨dia 19 de Julho¨ poderá ser julgado em segunda instância no TJSP o médico Daniel Tarciso da Silva de Cardoso¨ acusado de estupro de vulnerável quando aluno da Faculdade de Medicina da USP numa festa universitária.
Entidades e movimentos sociais se mobilizam para defender a vítima e falar novamente do assunto, para que ele não se “institucionalize” ainda mais caso o acusado seja absolvido em 2ª instância. A vítima foi perseguida e difamada pelos colegas e professores da faculdade ¨recebeu ameaças do réu¨ desenvolveu transtorno de estresse pós-traumático e abandonou o curso. Restou-lhe dedicar sua vida a obter justiça pela violência que sofreu.
Este caso é emblemático e dos poucos que seguem como processo civil criminal, como não acontece com a maioria dos casos de estupro, apesar das inúmeras denúncias de abusos sexuais e todo tipo de violências que são cometidas nos “tradicionais” trotes que ocorrem em algumas instituições de ensino superior de São Paulo e de outros estados também.
Em 2014, por iniciativa de Adriano Diogo, então deputado estadual, foi criada uma CPI na Assembleia Legislativa para averiguar violações de direitos humanos nas instituições universitárias, que ficou conhecida como CPI dos Trotes. A CPI documentou denúncias de racismo institucional e de uma cultura do estupro nas universidades. O relatório verificou que “112 estupros em 10 anos” teriam sido cometidos “no chamado ‘quadrilátero da saúde’ área da USP onde estão concentradas no Bairro de Pinheiros, na Capital paulista, as faculdades ligadas às Ciências Médicas”.
AQUi NA PLAYLIST sobre o caso na página do YouTube de Adriano Diogo, é possível assistir a íntegra das audiências públicas feitas na Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, matérias e depoimentos sobre o andamento da CPI, e também uma série de vídeos que documentam as práticas destas “festas” que representam “verdadeiras armadilhas” para os calouros e que não terminam no dia “da libertação dos bixos”.
As atitudes misóginas, machistas e homofóbicas, são muitas vezes premiadas por seus pares. Como pode ser visto nesta matéria:
Estudantes de medicina baixam as calças sob os jalecos e ameaçam as mulheres
O tema também foi amplamente discutido pelos Jornalistas Livres aqui
O que o caso de estupro na Faculdade de Medicina da USP revela sobre a nossa sociedade
HISTÓRICO DO CASO
Um dos casos foi o de Daniel Tarciso da Silva Cardoso. Ele foi acusado de dopar uma estudante para manter relações sexuais à força em 11 de fevereiro de 2012, depois de uma festa da USP na sede da Atlética de Medicina.
A vítima procurou o Judiciário já em 2012, bem antes da CPI. No entanto, só depois da Comissão, onde o acusado nunca apareceu para explicar-se, apesar de convocado, é que ele acabou sendo suspenso pela faculdade por um ano e meio. As denúncias dos coletivos feministas da USP eram sumariamente ignoradas pela direção da Faculdade.
Duas estudantes de Medicina da USP que também foram dopadas e sofreram abusos do acusado, foram testemunhas. Drauzio Varella, na época, escreveu e gravou vídeo contra a cultura de estupro na Faculdade de Medicina. No entanto, no fim de 2016, a Faculdade realizou secretamente a colação de grau, para evitar protestos e proteger o acusado.
Em 7 de fevereiro de 2017, o juiz Klaus Marouelli Arroyo, da 23ª Vara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, absolveu-o ignorando não só laudos psicológicos e psiquiátricos que atestam que a vítima passou por abuso sexual, bem como exame médico que comprovou escoriações decorrentes de violência. A sentença invisibilizou a voz e o corpo da vítima.
Em abril de 2017, Daniel Tarciso da Silva Cardoso conseguiu finalmente o registro de médico no Conselho Regional de Medicina de Pernambuco. Além disso, pretende especializar-se em ginecologia e obstetrícia.
Não foi a primeira vez que o acusado enfrentou problemas com a Justiça: entre 2004 e 2008, ele foi policial militar e, já em seu primeiro ano de serviço, matou um homem com oito tiros durante briga em um bloco de carnaval. Condenado por homicídio culposo, o Tribunal de Justiça, acabou extinguindo sua pena em 2012 julgando recurso da defesa. Além de ignorar de forma grotesca as leis e tratados que exigem uma justiça eficaz, justa e responsável com vítimas de crimes tão graves.
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Ao falar das violências e “tragédias” que estão no currículo do ritual e dos envolvidos institucionais, é impossível não lembrar da morte de um estudante Edson Tsung Chi Hsueh, de 22 anos que morreu afogado em uma piscina da Universidade da Medicina após um trote 1999. O Supremo Tribunal Federal acatou a decisão do STJ de absolver os 4 acusados pela morte do jovem calouro, mesmo sem que o caso tenha sido julgado pelo juiz de primeira instancia. Os ministros Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia, Rosa Weber, Gilmar Mendes e Celso de Mello entenderam que o STJ poderia ter arquivado o processo por falta de provas.
ESTUPRO NO TRIBUNAL
texto de FELIPE SCALISA OLIVEIRA¨ 26¨ aluno do 6º ano da FMUSP – Faculdade de Medicina da USP**foi depoente da CPI dos trotes em 2015.
O réu foi inocentado em primeira instância¨ segundo o juiz Klauss Arroyo¨ por “falta de provas” por parte da acusação. O juiz alegou que precisava de certeza e que¨ in dubia pro reo ¨decidiu pela absolvição. Tal dúvida ¨entretanto¨ não eliminou o fato concreto do crime que aconteceu¨ tampouco o sofrimento da vítima.
A vítima¨ estudante da escola de enfermagem da USP não pode contar sozinha o que lhe aconteceu. Lembra-se apenas de tomar uma bebida oferecida por Tarciso durante uma festa e acordado horas depois no quarto do rapaz¨ nua¨ com o réu sobre ela praticando o ato sexual¨ e sentindo dores nas partes genitais e no ânus. Fez um exame de corpo de delito que comprovou a conjugação carnal e abriu um inquérito. Foi perseguida e difamada pelos colegas e professores da faculdade¨ recebeu ameaças do réu¨ desenvolveu transtorno de estresse pós-traumático e abandonou o curso. Restou-lhe dedicar sua vida a obter justiça pela violência que sofreu.
Depôs na CPI dos trotes em 2015 junto a outras mulheres vítimas de violência sexual em universidades. Descobriu que junto a ela havia pelo menos mais 5 casos de abuso envolvendo o mesmo rapaz. Duas dessas vítimas se dispuseram a testemunhar¨ contando o mesmo modo de operação de Tarciso∫ oferecer uma bebida adulterada e ter relações sexuais com a moça desacordada.
O réu tem antecedente. É ex-policial militar e foi condenado por homicídio com arma de fogo (10 disparos)¨ fora de serviço¨ contra um rapaz durante uma festa de carnaval.
O TJSP¨ entretanto¨ reconheceu “legítima defesa” e impôs a pena de serviços comunitários por “excesso”. Após as denúncias de violência sexual¨ Tarciso obteve da FMUSP uma amistosa suspensão de 1 ano e 6 meses. Formou-se em fevereiro de 2017¨ obteve o registro médico de Pernambuco e exerce a profissão médica em São Paulo.
O caso de Daniel Tarciso é o caso mais paradigmático da história de violência sexual nas universidades brasileiras. A “falta de provas” persegue as vítimas¨ que têm sua palavra desacreditada pelos amigos¨ pelo médico¨ pela polícia¨ pelo juiz e pela sociedade. A violência sexual no Brasil só é punida em casos extremos¨ envolvendo crianças e sequestros¨ onde se pune ou o incesto ou o sequestro¨ nunca o ataque à dignidade sexual.
A diferença é que no caso de Tarciso há um conjunto de provas considerável¨ com pareceres psicológicos e psiquiátricos atestando o abuso e negando sinais de falso testemunho por parte da vítima¨ além de um conjunto significativo de testemunhas com narrativas consistentes dando fortes indícios de um comportamento padrão do réu. No entanto¨ bastou que o réu alegasse que o ato sexual foi consentido para o juiz decidir in dubio pro reo.
O sistema de justiça brasileiro vive uma crise de legitimidade. De um lado narrativas criam jurisprudência para crimes materiais com ocultação de provas¨ como o crime de colarinho branco¨ afirmando que bastam fortes indícios para penalizar alguém¨ abdicando das “provas cabais”. De outro¨ o crime de violência sexual¨ em que a vítima de um crime hediondo muitas vezes tem apenas a própria palavra e – embora a jurisprudência torrencial diga que em casos de crime sexual a palavra da vítima tem especial relevância – é obrigada mesmo assim a conviver com o descrédito e o silêncio.
O desembargador Mauricio Henrique Guimarães Pereira Filho tem um processo acelerado¨ que vai ocorrer em período de férias¨ entre uma copa do mundo e as eleições¨ e tem em suas mãos um réu acusado de crimes amparados pela cultura da sociedade¨ que culpabiliza vítimas de violência sexual. Tem também em suas mãos o futuro de uma moça que perdeu sua vida enfrentando todas as instâncias da Universidade e do Estado para não ser violentada consecutivamente. E finalmente tem em suas mãos o poder de romper um paradigma pros próximos casos de violência sexual¨ que seguem ocorrendo e sendo violentamente silenciados.
Esta matéria contém trechos de matéria da: Heloísa Buarque de Almeida (FFLCH), da Rede Quem Cala Consente
Outros Links indicados por Heloisa: Catraca Livre: “Drauzio Varella faz vídeo arrebatador sobre estupros na USP” https://catracalivre.com.br/cidadania/drauzio-varella-faz-video-arrebatador-sobre-estupros-na-usp/ Renan Quinalha: “Cultura do estupro na USP”: https://revistacult.uol.com.br/home/cultura-do-estupro-na-usp/ Jornal do Campus: “Dois anos após CPI, casos de estupro não têm punição”: http://www.jornaldocampus.usp.br/index.php/2016/11/dois-anos-apos-cpi-casos-de-estupro-nao-tem-punicao/ Ponte Jornalismo: “Justiça de SP absolve estudante de Medicina da USP acusado de estupro” https://ponte.org/justica-de-sp-absolve-estudante-de-medicina-da-usp-acusado-de-estupro/ Ponte Jornalismo: “MP recorre de sentença que absolve aluno da USP acusado de estupro” https://ponte.org/mp-recorre-de-sentenca-que-absolve-aluno-da-usp-acusado-de-estupro/ Agência Brasil: “Ex-aluno da USP acusado de estupro obtém registro de médico em Pernambuco” http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2017-06/ex-aluno-da-usp-acusado-de-estupro-obtem-registro-de-medico-em-pernambuco