Eu nunca me esqueci de uma certa aula de direito ambiental, no quarto ano da faculdade. Uma discussão acalorada sobre a Farra do Boi, em que o direito dos animais era contraposto ao direito à cultura. Os pobres ruminantes eram arduamente “defendidos” por uma parte da sala [majoritariamente não-vegetariana], enquanto a tradição catarinense era defendida pela outra (totalmente paulista!). É um debate interessante, mas não preciso entrar no mérito [não como carne, e curto cultura! ].
Não tive tempo para pensar na reação deles se “descobrissem” que existe um genocídio do povo negro em curso no Brasil. Uma colega, cujo nome não será revelado [mas você pode substituir pelo nome de qualquer colega racista de teu trabalho, escola, faculdade, igreja…] soltou a seguinte afirmação: “Se a Farra do Boi é cultural, então a escravidão também foi! ” (sic). Rostos horrorizados olharam para ela e depois se voltaram para mim. Este texto não é a resposta que dei para ela, mas fruto de uma reflexão posterior. Vamos falar sobre RESSENTIMENTO ou VITIMISMO…, mas de quem?
Minha colega [insira o nome aqui], vai nos servir de exemplo hoje. Tem muita gente falando de vitimismo negro (sic), e acho que não podemos fugir deste assunto que tanto vitima o bom senso. Vou chegar no tal do “vitimismo negro”, mas antes tenho que falar brevemente do “ressentimento racista” e seu lugar na história e política do Brasil.
Reconstituindo
A “república” se tornou “real” no Brasil quando as aspirações republicanas encontraram o ressentimento escravagista. A Monarquia morreu sem honra, ou distinção, e a República nasceu sem virtude, neste país de abolição atrasada e democracia racial infecunda. O 15 de novembro é a generalização do 14 de maio no imaginário popular dos brasileiros. Se o dia 20 de novembro é a data oficial do Dia da Consciência Negra; o 14 de maio é, não-oficialmente, o[s 365] dia[s] da consciência branca. Não bastou um dia pós a Lei Áurea (13 de maio de 1888) para que todo o ressentimento racista aflorasse nas mentes das elites (e das massas).
A parte histórica que trato aqui pode ser lido com mais profundidade no livro do senhor Flavio Gomes, Negros e Política (1888 – 1937), que descreve uma peculiar movimentação de fazendeiros escravagistas que ficou conhecida como 14 de Maio. Insatisfeitos com a libertação dos negros, fazendeiros passaram a engrossar o coro republicano pelo fim da Monarquia no Brasil. Os “ex-escravos perceberam rapidamente que seus ex-senhores haviam trocado suas roupas de fazendeiros por fardas republicanas”1. Nada de progressismo; apenas negócios. Esta é a base material de uma ideologia política baseada em (I) mitigar os efeitos econômicos e políticos da libertação de negros na estrutura capitalista, e (II) impedir a Liberdade de negros no país.
Não garantir acesso a terras e dar preferência à mão de obra de colonos de outros países (europeus ou asiáticos) são exemplos da primeira; criar uma constituição que excluía analfabetos e mulheres era exemplo o segundo exemplo imediato. Nada de trabalho digno, terras ou participação política aos negros. As consequências, que se seguem hoje, em bases econômicas, são menores salários (SOBRETUDO PARA AS MULHERES NEGRAS) e baixos níveis de acesso à educação superior para negros. No âmbito das liberdades constitucionais, afronta ao direito à vida, por meio de genocídio e encarceramento em massa. O nosso modelo de democracia representativa, garante um Congresso e um corpo Administrativo majoritariamente branco, dando prova da não concretização das Liberdades Políticas (direito a participação, deliberação e decisão no âmbito da vida pública).
Voltando a hoje
Apesar de tudo o que foi dito, o povo negro segue resistindo, sobrevivendo e criando. Não há de se falar em cultura brasileira sem se falar do legado de negros e negras que aqui vivem. Racistas amam nossas músicas (conscientes ou não da negritude que nelas bate!). E apesar das estruturas formais de opressão institucionalizadas, foram criados Quilombos com estruturas sociais e políticas ricas; além de diversos movimentos sociais de pauta racial que continuam a surgir até hoje. Temos muito do que nos orgulhar, enquanto negros.
Mas voltando aos racistas… A consciência não é um produto metafísico. É fruto das relações sociais que são construídas e reificadas. O surgimento de estruturas racistas baseadas na necessidade da opressão de uma raça sobre a outra, garante a existência de uma consciência racista. Falar em mera “falta de caráter” de alguns é um reducionismo que casa com a ingenuidade e adultera com a desonestidade intelectual. Daí surge o que chamamos aqui de Ressentimento Racista: a não aceitação da perda de privilégios econômicos, sociais, culturais e políticos. É não aceitar que quando a escravidão foi abolida, abolimos uma forma de manifestação de “cultura racista” [partindo da premissa da nossa colega, que não entende que a escravidão tendia à destruição de vidas e culturas].
Aqueles que “nenhuma culpa tiveram pelo mal que foi feito com a escravidão”, mas que hoje gozam dos privilégios dela advindos, não podem aceitar qualquer avanço na questão racial. Não vão aceitar cotas raciais; não vão aceitar fim da desmilitarização; não vão aceitar descriminalização das drogas; não vão aceitar reforma agrária e nem demarcação de terras indígenas; não vão aceitar direitos trabalhistas para empregadas-domésticas… E quando qualquer novo direito é conquistado; ou quando a voz negra se faz impossível de não ouvir, as elites de 14 de Maio ressurgem: de camisetas da CBF, escrevendo em colunas de jornal ou vociferando pela internet. AGEM COMO SE VÍTIMAS FOSSEM! FICAM RESSENTIDOS!
Mas, o que é a condição subjetiva de um negro ou negra, que passou a vida sendo explorado (como escravo ou empregada-doméstica), e por isso expressa indignação; com a reação de massas racistas contra qualquer conquista de direito ou reivindicação negra?! A nossa organização política e social é o fruto de um ressentimento racista com o fim da escravidão! Há umas voz em cada mente racista que grita: “Vocês já saíram de nossas fazendas, por que ainda querem mais?”. E depois chegam com discurso de vitimismo negro!
O povo negro a cada dia ganha mais consciência de seu papel na luta de classes.
Estamos aprendendo a nos orgulhar cada dia mais de nossa imagem, sem medo de nos inserirmos em espaços que outrora foram negados a nós. A cada dia abaixamos menos as nossas cabeças. Isto não é vitimismo! E na próxima vez que alguém falar que feriado da consciência negra é vitimismo eu me orgulharei de dizer: “ZUMBI MATOU FOI POUCO [escravocratas torturadores]!”.
Nenhum direito a menos!
1 – GOMES, Flavio. Os negros e a política. Ed. Zahar. p. 20 e 21
Uma resposta
Muito bom, usarei como professora de história da rede pública em minhas aulas