A dialética das águas

Foto: ALEXANDRE MOTA / O TEMPO (reprodução Twitter)

Por vezes em janeiro, noutras fevereiro, não que já não tenha ocorrido em março, verdade recorrente a qualquer mês e dia santo, todo santo ano, é que setembro também chove na terra da garoa – e não deveria? Em datas e dias como hoje o Tietê se torna violento, o Pinheiros agressivo e o Tamanduateí revolto. O lixo dos populares é criminoso, a chuva também detém sua carga de culpa. Todos; todos e tudo são responsáveis por parar a “cidade que não para”. Cabe a Deus e ao mundo uma parte na tragédia (anunciada já em João Ramalho).

Tentativa deslavada de enxugar a responsabilidade real e capital da questão. O rodizio de placas é suspenso para que os autos transitem livremente, mas para onde, por onde, e porque meu Deus?

“São Pedro castigou São Paulo”, afirma o inventivo e imaginativo jornalista escapista. Na louvável e cínica tentativa de isentar autoridades e reais autores, inacreditável até mesmo para redatores e editores, São Paulo é lavada por uma enxurrada de meias verdades que em nada altera a dura realidade das enchentes.

Vão-se os móveis e imóveis, bens e poréns levados pela água suja e turva da chuva, vidas que se acabam, prestações que não se pagam, boletos infindáveis de mercadorias irrecuperáveis. O custo de vida em São Paulo se eleva a cada carga d’água, e água arrasta carro, arrasa casa, atrasa o lado. E é chover no molhado dizer que o mau tempo era inesperado.

O coração financeiro do país não possui, ainda, um plano emergencial para deter, verter ou reter as águas que ano que vem irão de novo desolar, arrasar e arrastar mais vidas. Fato é que quando a água suja dos rios bate na Barra Funda, rios que apenas reagem – ano após ano –  a alteração forçada de seu curso natural em nome do “progresso”, São Paulo recorda a todos a verdade a qual ricos e pobres estão submersos: a materialidade concreta do real. O atraso que a iluminada ponte estaiada intencionalmente não ilumina se impõe. “Nós somos do avesso”, não o avesso do baiano Caetano, mas o avesso de Juninho Pernambucano, que de cara lavada admite que o Brasil é atrasado, atraso que hoje feito nunca tem pressa em retroceder. São Paulo é onde este atraso melhor se apresenta.

São de açúcar os sonhos de bonança em São Paulo. O delírio de grandeza e grande eloquência paulistano se dilui em chuva. E a medida está tomada, dirimir em água a culpa da catástrofe até que o céu esteja novamente limpo. Referir-se ou referenciar o capital pega mal na capital. Não faz bem para imagem da metrópole. “Sorriam e acenem”, diriam pinguins melhor ajustados a água e a ficção. Onde ganancia é fluxo, franqueza é luxo que não se pode ter. Águas passadas São Paulo retomará a dinâmica do lucro, a mesma lógica que a assola e devasta em dilúvio ano após ano, cada vez, e uma vez, mais.

E de boas intenções o Tietê está cheio, tão cheio que por vezes transborda.

Por Eudes Cardozo

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