Certo dia a aldeia estava deserta, ninguém a cruzar o pátio, a correr atrás de bola. Era dia de jogo, clássicos de Copa, o Brasil em campos. Todos se recolhiam no interior das grandes casas frescas; na TV a paixão grande.
Galinhas vagueavam calmamente na tarde e lhes dei nomes de um artigo em revista que lia para passar o tempo:
- CO (monóxido de carbono) É um gás asfixiante
- NOx (Óxidos de nitrogênio) São gases irritantes
- HC (hidrocarbonetos)
- CH4 (metano)
- CHO (aldeídos)
- MP (material particulado)
- CO2 (dióxido de carbono)
Fora uma rua tal do Ouvidor aquele instante, tão só me senti com as galinhas, ternas, buscavam créditos entre as traves de gol, no centro sagrado das aldeias alto xinguanas. Imagem black, a cor da bola se recolhia. Enfeitava assim o país com preto, índio, bola e galinhas. Aguardamos sempre um grito de gol, bem sei dessa vida entre as fronteiras da alegria e os venenos de cada dia.
Era uma bola. No princípio tudo é bola, depois é que veem-se os mitos, a caverna, as especulações, os jornalistas.
Quem é dono da bola? Quem inventou a roda? É gol, penalty, cartão amarelo? Saberemos nunca, apenas que no princípio foi bola, sem dono, sem grana, sem copas.
Paulinho é o nome do cara, sangue Xukuru. Em caro passado fora a flecha Fulni-ô das Alagoas, Mané Garrincha de sangue indígena, mestres fundindo genomas, mas sempre gols de bailarino.
O explorador alemão Max Schmidt relata, adentrando na Amazônia, que chegando em aldeia dos índios Pareci viu um grupo jogando bola, usando apenas a cabeça nas bolas pesadas de látex de mangabeira. Assim o fazem ainda hoje, também os índios Zoé e os Irantxe/Manochi.
É notório o quanto o futebol assimilado tornou-se instrumento de relação entre as etnias e distintas aldeias.
Observa José Ronaldo Mendonça Fassheber e Maria Beatriz Rocha Ferreira:
O futebol introduzido entre os indígenas permite-nos algumas análises sociológicas importantes. Um exemplo claro, é a posição de centralidade que o campo de futebol ocupa dentro de diversas aldeias. O futebol pode ser percebido também pela interação e pela integração social dos moradores de uma terra indígena (TI), destes com os de outras TIs e com a população e com as equipes da cidade em competições municipais e regionais.
O futebol, mesmo que não seja tradição indígena, parece trazer consigo elementos da tradição. Por exemplo, as equipes podem ser formadas ou montadas na tradição da patrilinearidade (determinação de uma linhagem paterna) e da uxorilocalidade (regra de residência em que o genro vai morar na casa do sogro) entre alguns povos Jê. Desta maneira constituem-se equipes formadas por um grupo de filhos e de genros geralmente ligados às lideranças das TIs. Renovam-se, pois, as tradições. As relações futebolísticas entre parentes de muitas aldeias permitem o trânsito pelas terras que cultural e imemorialmente são suas. Esta dimensão ocupa também o espaço das cidades construídas sobre elas. Então, os contextos urbanos, suburbanos e rurais tornam-se as localidades do encontro e relações sociais entre índios e não índios, onde eles demarcam suas diferenças e singularidades.”
Não sei quem é Deus, palavra sempre usada para algumas imagens de campo entre todos os povos, mas sinto nele um espírito sagrado em si, a vaguear pelo todo chamado universo de bolas, planetas, constelações. Vi também deus como ser com bolas na mão certa vez. Tudo é bola, joga-se para a atmosfera e cai nas pontas dos pés de alguém. Vira show. Tem-se o mito, a parábola, o armistício.
Beautiful.
Imagens de Eugênio Sávio e Helio Carlos Mello.