lula,
sou filha de nordestinos que migraram pra são paulo sem diploma por melhores ventos como você. em 2002, papai e mamãe me vestiram tua camiseta vermelha no quintal da nossa casinha alugada com aqueles dizeres; a esperança venceu o medo. preocupados com o porvir, não me deixaram ir comemorar tua vitória com eles nas ruas. hoje, ainda angustiados, eles sabem como é difícil me arrancarem delas. eu era uma menina de 10 anos com aquela blusa. não entendia. mas sentia.
ainda menina, mas já com meus 20, escrevi numa madrugada em claro a carta de motivação que me selecionou pro meu intercâmbio. enquanto assistia repetidas vezes teu discurso lá onde eu queria chegar. no instituto de estudos políticos de paris. que te deu o título de doutor honoris causa sem precisar ser doutor. e que também me deixou adentrar aqueles portões mais tarde. lula, você foi a maior inspiração pública que tive pra estudar política e trabalhar com ela. meu sincero muito obrigada.
sei que demorei pra te escrever. porque confesso que me afastei de você. mas estou desnorteada ao ver te tombarem. lula, quero falar com luiz inácio. você. de carne e osso. aí dentro. mais matéria que mito. com todas suas contradições. com todas tuas dores e prazeres. todas tuas proezas e destroços. todas tuas palmas e vaias. sem endeusamento ou satanização. sem maniqueísmos que abatem e abreviam a realidade. você. antes do primeiro presidente operário do país, um menino de garanhuns do agreste pernambucano. do sertão do brasil. você.
do pau de arara ao palácio da alvorada. você. quem passou fome nos rincões e lutou para erradicá-la no país. do sindicato dos metalúrgicos ao banco dos emergentes dos brics. você. do sofá de frei beto onde lhe bateram a porta para sua prisão à época de uma ditadura declaradamente vil. você. aos braços do povo que há pouco te carregou de onde você começou. como nessa foto de um garoto de 18 anos. antes de ser preso uma vez mais por uma manta totalitária trajada de democracia quiçá ainda mais torpe por sua ardilosidade nesses tempos agoniantes.
você, luiz inácio. de um país que te venera e te despela. que aconteceu? quando te vi pela primeira vez na minha universidade, vi também a maior chance do brasil diante da minha voz rouca, minhas pernas trêmulas e meus olhos lacrimejados. vi o maior aumento do salário mínimo, a menor taxa de desemprego, o menor índice de analfabetismo e de pobreza da história brasileira em forma de gente. louvei a aprovação de 10% do pib para educação, as políticas do bolsa família, prouni, mais médicos, ciências sem fronteiras e o minha casa minha vida.
gritei pela destinação de 75% dos royalties do pré-sal para a educação e 25% para a saúde. bradei pela comissão da verdade. apoiei a emancipação da nossa diplomacia para que deixássemos o quintal do capitalismo com uma política externa livre das amarras da periferização. briguei com quem brindava o teu luto na perda de dona marisa. quem nasceu filha de agricultores em uma casa de pau-a-pique. quem começou a trabalhar como babá aos 9 anos de idade. quem liderou uma marcha em protesto contra as prisões políticas de sindicalistas. quem foi tua companheira.
mas senti que você foi me perdendo conforme eu crescia e me indagava. diminuir a miséria não era necessariamente questionar a desigualdade que nos abisma. e os de cima, luiz inácio? por que os esqueceu? aliança pra quem? que eram os conchaves? que dita governabilidade foi aquela? por que ascensão pelo consumo? como conciliar classes antagônicas? como harmonizar dominantes e dominados? como pacificar um país historicamente dilacerado? luiz inácio, você não lutou pelo imposto sobre grandes fortunas. não tolheu a financeirização da economia, das políticas públicas ou a maximização dos lucros dos bancos.
não afrontou o agronegócio pela reforma agrária. não repensou a segurança pública pela antimilitarização. não regulamentou a mídia que te queima pra democratizá-la pra população. não reestruturou a máquina pública para que se desamarrasse de relações escusas com construturas. não disputou o poder judiciário que você lá colocou e votou pela privação da tua própria liberdade. luiz inácio, você não fala de trabalho de base ou de luta de classes. não questionou o capital produtivo ou o financeiro. não se despersonificou no partido dos trabalhadores. mas te vendo padecer, penso: e daí, clarisse? acorda. ele é um homem. de virtudes e vícios. é grande, mas não um deus onipotente.
abandonemos essa fragmentação que nos descomunica. a quem interessa sermos sectários? enquanto nos chicoteamos, o autoritarismo se unifica. como bem disse laura carvalho, se os poderosos forjam o que forjam com um mediador que quis dar o mínimo de dignidade para uma massa de miseráveis, quem quis dar aos de baixo sem incomodar os de cima, imaginem o que fazem com um revolucionário? marighella assasinado. e você encarcerado. se a utopia pela ruptura se perder no horizonte do futuro, e as dores do hoje?
como conciliar com quem nos aprisiona, aniquila ou anestesia? te quero forte pra que a crítica te arme. pra não acomodar o o que te esfola. pra não apertar a mão de quem te explora. te quero livre, luiz inácio. mas não só livre da cela. te quero livre do que te prende. de quem te acorrenta. livre do sujo, triste e velho ódio de classe.
não ceda por nós. não desisti de você, lula.
à luta,
clarisse de almeida.
brasil, 2018.