Artigo de Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia*
“Golpista” é aquele tipo de adjetivo que ninguém quer trazer escrito na testa. Entendo. Não pega bem mesmo.
Por isso, os momentos de ruptura política geralmente são marcados por duas camadas de conflitos: os conflitos pelas posições de poder e as disputas pela representação do evento no plano da memória.
Quem perde na primeira camada vai se esforçar para desqualificar, no plano das representações, a vitória do adversário. Quem vence na primeira camada tentará vencer também a disputa das representações. É ai, nessa tensão, que o termo “golpe” ganha significado político.
Hoje, no Brasil, vivemos a sobreposição dessas duas camadas de conflito. Por um lado, a sobrevivência política de Lula e do Partido dos Trabalhadores mostrou que a destituição da presidenta Dilma não foi um ponto final nos conflitos que desestabilizam o sistema político brasileiro desde junho de 2013.
Ao mesmo tempo, o significado da derrubada da ex-mandatária está em disputa e as recentes polêmicas envolvendo as disciplinas que estão sendo oferecidas em diversas universidades públicas mostram que temperatura dos conflitos está alta e que o jogo está sendo jogado.
Acho que dá pra falar na existência de duas trincheiras nesses conflitos pela representação do impeachment da presidenta Dilma: em uma estamos nós, os professores das universidades públicas. Na outra está o Ministério da Educação, que é a situação política que chegou ao poder após a queda de Dilma Rousseff.
“Golpe” é uma palavra que jamais é inocente, assim como a sua negação também não é. Os que dizem “foi golpe” e os que dizem “não foi golpe” estão atolados até os pescoços no conflito, são partes em conflito. Não há neutralidade aqui, de ninguém.
Os professores dizem “foi golpe” e o Ministério da Educação diz “não foi golpe”. Ninguém é neutro, ninguém é inocente. Estão todos interessados. Por isso, não entro aqui no mérito da questão, apesar de ter uma posição muito firme a respeito.
Quero mesmo é dizer algumas palavras sobre o funcionamento da universidade e da pesquisa científica no Brasil, com a intenção de destacar o despreparo da atual gestão do Ministério da Educação, que parece estar disposta a mobilizar os mecanismos jurídicos e policiais do Estado para silenciar os professores/cientistas, ferindo com isso os valores mais sagrados da universidade: a liberdade de pensamento e a difusão do conhecimento.
Primeiro, é inegável que a interrupção do mandato de Dilma Rousseff é um evento de primeira importância na história política brasileira e, como não poderia deixar de ser, tornou-se objeto dos campos disciplinares dedicados aos estudos políticos nacionais. O mesmo aconteceu com outros eventos: a independência, a proclamação da República, a Revolução de 1930, o golpe de 1964 e por aí vai.
Esses campos disciplinares são formados por especialistas (sociólogos, historiadores, cientistas políticas, economistas) que produzem ciência dentro das universidades públicas. No Brasil, é na universidade pública que a ciência é produzida. No Brasil, o cientista, quase sempre, é o professor universitário, doutor na sua área de especialização e concursado.
Entre esses estudiosos (doutores e concursados), a tese de que o impedimento de Dilma Rousseff foi um golpe parlamentar contra o regime presidencialista de governo é bastante acolhida, já tendo sido difundida em diversas publicações especializadas.
Mas qual é a lógica das publicações especializadas?
Explico, pois ninguém é obrigado a saber:
Diferente do que acontece com outros tipos de publicações, as publicações especializadas são sempre controladas pelo campo científico. Para um artigo ser publicado numa revista especializada ou para um livro ser publicado por uma editora é necessário que especialistas na área avaliem o material e certifiquem sua qualidade científica. É assim que a ciência funciona, que a universidade pública funciona: os membros da comunidade científica monitoram uns aos outros, avaliam uns aos outros.
Ora, se é assim, o fato de vários professores, de cientistas especializados, utilizarem o termo “golpe” para definir o impedimento de Dilma Rousseff é um claro sinal de que a tese faz algum sentido. Não estou querendo dizer que ela é necessariamente verdadeira, ou que seja a única possível. Estou dizendo que ela é cientificamente válida, que tem respaldo nas pesquisas disponíveis, na bibliografia que vem sendo produzida.
Eu estaria sendo irresponsável se falasse que a tese do golpe é consensual, pois estamos lidando com um tipo cientificidade que não opera com verdades cabais, que está sempre aberto ao contraditório. Há muitas vozes dizendo que não foi golpe, principalmente na imprensa hegemônica. Mas nos campos especializados, a tese no golpe é majoritária; conheço poucos colegas que ainda insistem em dizer que não foi golpe.
Se a tese é válida, se está respaldada por diversos especialistas, não há nenhum motivo para que ela não seja ensinada, difundida. Quando o ministro da Educação diz que os professores “não podem ensinar suas teses”, ele demonstra não conhecer a essência da universidade, que é, justamente, produzir e ensinar teses.
A inabilidade do ministro não se esgota no desconhecimento do próprio ofício, sendo também política. Ao tentar impedir que os professores/cientistas digam “foi golpe”, o ministro, como um zagueiro caneludo e estabanado, faz gol contra, joga contra o próprio patrimônio e acaba ajudando a confirmar a tese que insiste em tentar silenciar.
(*) Com ilustração de Edu