Retomada da Terra Sagrada

Cinco guerreiros caminham pela trilha na mata nativa. “Tudo limpo”, avisa alguém. No local escolhido, começam a limpar onde será o “Apy”, Casa de Reza, na língua Tupi. “Aqui é onde nossos filhos crescerão”, afirma Awaratan Wassu, líder indígena em Guarulhos, a 20 Km de São Paulo, capital. “Você viu que lugar lindo?”, pergunta Alex, liderança do povo Wuerá Caimbé, “ali tem um lago, ali uma nascente. Águas cristalinas”, diz com olhos de quem observa ancestrais. Enquanto os facões cortam a vegetação rasteira, chegam as mulheres com os mantimentos. 

Foto: Christian Braga

Rosa Pankararu é a primeira a entrar no espaço sagrado. “Paz, tranquilidade. Este local é como se eu estivesse na minha aldeia, na minha terra. A mente da gente vai longe, sabia? Acho que cada parente aqui está com a mente longe, tenho certeza que cada um está na sua terra”. Rosa nasceu em Pernambuco, na Aldeia Brejo dos Padres, vive em Guarulhos há 32 anos, onde teve dois filhos. “Nós vamos poder fazer uma casa de farinha aqui?”, grita para todos mirando longe. Respondem com sorrisos, afirmativas e exemplos de como era a casa de farinha em suas aldeias.

Área da Terra Sagrada em Guarulhos que há 40 anos está sem uso, antigamente usado para a criação de porcos. Foto: Christian Braga

A aldeia multiétnica, Projeto Terra Sagrada, começou a ser gestado em 2002 pelas lideranças dos povos indígenas de Guarulhos. Em 2008 foi feito projeto junto à Prefeitura e neste ano, em abril, o Subsecretário de Igualdade Racial, de acordo com os indígenas, levou-os até duas terras, dois locais para que escolhessem onde seria a aldeia. “Aqui tem nascentes, tem mata nativa. Aqui escolhemos”, diz Alex Wuerá Caimbé. “Se é aqui que vocês querem ficar, é aqui que vão ficar, essa terra será de vocês. Não se surpreendam se em agosto tudo já estiver resolvido, disse o secretário. Gerou expectativa, fomos a nossas casas, falamos com nossos filhos, nos preparamos, fizemos um projeto para aqui viver”.

Toda a estrutura de concreto que já estava no local será derrubada e cada etnia vai ter uma área na aldeia. Foto: Christian Braga

Projeto que começa com a Casa de Reza. Local onde tudo acontece, o coração da aldeia. Nele são realizados os torés, cerimônias de canto e dança para conectar com os ancestrais, a cultura e a tradição de suas etnias. Nos torés, as diferenças, as questões, as propostas da aldeia são tratadas. Ao chegarem na Terra Sagrada, a primeira providência foi limpar o terreno para fazer a Casa de Reza. Entre tirar as folhas, revirar a terra e preparar a fogueira, Xukuru explica “a casa de reza é a primeira. Nela a gente faz orações, reza, dança o toré. Casa de Reza é a base para todas as etnias, e cada um em sua área poderá fazer seu templo. Temos diferentes religiões. O importante na aldeia é estar todo mundo junto, porque para ser aldeia o índio tem que estar junto. E é importante conhecer os costumes uns dos outros, acompanhar os saberes”. Cada etnia das 14 representadas nesta retomada de terra terá uma área própria em que irá desenvolver as tradições de seu povo.

A limpeza no local foi feita rapidamente pelas nove etnias que vão morar no local. Foto: Christian Braga

“Terra é amor. Terra para índio é um sonho, o nosso sonho de consumo”, diz o líder Caimbé. Pai de quatro filhos, dentre eles um bebê de seis meses, Alex se mudou para a Terra Sagrada. “Não estamos aqui brincando de casinha, a partir de segunda-feira meu endereço e dos meus filhos é aqui”. A decisão de retomar a terra foi tomada há cerca de 15 dias após reunião das lideranças com a Prefeitura de Guarulhos. “A Terra Sagrada existe? – indagamos ao subsecretário. Ele abaixou a cabeça, cruzou as pernas e disse ‘não’. Ficamos sem chão”.

 

Há cerca de 1600 indígenas em Guarulhos, 14 etnias têm representantes na Associação Arte Nativa Indígena, organização com sede no Centro de Referência Indígena Kuaray Werá, de acordo com seu coordenador Awaratan Wassu. “Cada povo tem seu representante”. Nenhum indígena é Guaru, os donos primeiros da terra, aqueles que deram nome a Guarulhos. Os Guarus foram exterminados, suas terras tomadas, sua cultura e tradição extintas. A retomada da Terra Sagrada é uma homenagem aos parentes, como os indígenas se consideram e se chamam, além de representar a real possibilidade de vivenciar usos e costumes, de estar em contato com a natureza e de que os donos primeiros possam cuidar da mata, do local sagrado dos ancestrais, garantindo condições de vida a povos em situação de vulnerabilidade.

A aldeia multiétnica Terra Sagrada ocupará 130 mil metros quadrados de área de mata ao norte da cidade de Guarulhos, próximo ao Rodoanel. O projeto prevê uma área comum, cujo centro é a Casa de Reza, e espaços próprios para cada etnia atuantes na Associação Arte Nativa Indígena e no Centro de Referência Indígena Kuaray Werá de Guarulhos. “Já conta com uma enfermeira, uma auxiliar de enfermagem e com a futura assistente social da aldeia”, diz Vanusa Caimbé. Para ela, morar na aldeia significa conviver com a natureza, ter hortas, plantas e não depender de remédios para uma simples dor de cabeça ou de barriga. A proposta é valorizar a cultura indígena em seus mais diferentes aspectos, dando suporte para que tradições não se percam, como no caso dos Guarus.

“Sabe aquela árvore ali que eles podaram?”, aponta a diretora da Associação Arte Nativa Xukuru, “é ameixa. Serve para fechar ferimentos, ferida de útero. É cicatrizante, une a carne. A floresta é rica em tudo. A gente pode sobreviver desta terra”. Para o líder dos Wassu e coordenador do movimento indígena, Awaratan “este é um projeto pedagógico para cultivar, preservar, viver uma cultura profundamente vinculada à sacralidade da terra. É terra indígena. Nós cuidamos da terra, preservamos a mata. Temos respeito e cuidado com a natureza”. O discurso comum das lideranças presentes na retomada da Terra Sagrada foi o de buscar evitar a destruição de mais uma área de mata em Guarulhos.

“É uma área de mata, os não-indígenas estão entrando, destruindo já, queremos reverter isso”.

Foto: Christian Braga

Após a base da Casa de Reza, da fogueira pronta e do compartilhar do café, acontece a primeira dança sagrada no espaço prometido. O toré reúne saberes e ritmos. Retoma a conexão com a ancestralidade, reforça a beleza da cultura nativa brasileira.

 

Foto: Christian Braga | Foto: Guilherme Silva

“Não tem processo ”, foi a constatação que as lideranças chegaram na reunião com a Secretaria de Igualdade Racial. “Cadê o número do processo?”, pergunta Awaratan Wassu, “como podemos acompanhar o andamento sem um número de processo?” Ao perceberem que a Terra Sagrada pode ser promessa vazia, as lideranças indígenas decidiram retomar a terra dos Guarus.

“Hoje serão só os guerreiros, homens e mulheres. Crianças e mais mulheres entrarão no final de semana”, conta Awaratan Wasu. “A gente não quer morar em apartamento, a gente quer pisar na terra. É um direito que a gente tem, é um direito que a gente vai correr atrás”, reafirma Neide Xukuru. “Queremos conversar com o Prefeito, queremos um posicionamento”, diz Aléx Wuerá Caimbé. Na concentração da caravana em rumo à Terra Sagrada, Awaratan Wassu avisa:

“De lá eu só saio amarrado. Arrastado pelo trator”.

Histórico da Retomada Sagrada

A retomada ocorreu na tarde de 27 de outubro, sexta-feira. Após concentração no Centro de Referência Indígena Kuaray Werá, uma pequena caravana levou as guerreiras e os guerreiros até imediações da Terra Sagrada, no limite das obras do Rodoanel Norte. No dia anterior, as lideranças indígenas entregaram documento com reivindicações para a Chefe de Gabinete do Prefeito de Guarulhos. Dentre elas, está a imediata cessão da terra para a construção da aldeia multiétnica e a transferência da coordenação indígena para outra secretaria. “Não estamos satisfeitos com a Secretaria da Igualdade Racial”, reafirma Awaratan Wassu.

27 de outubro de 2017 – Retomada da Terra Sagrada – entrada das lideranças indígenas na área prometida.
26 de outubro de 2017 – Entrega de documento reivindicatório da Terra Sagrada ao Prefeito de Guarulhos.
Início de outubro de 2017 – Subsecretaria de Igualdade Racial diz não ter o número do processo de efetivação da Terra Sagrada.
Abril de 2017 – Escolha do local da Terra Sagrada e compromisso da Subsecretaria de Igualdade Racial na entrega do local ainda este ano.
Janeiro de 2017 – Apresentação do projeto Terra Sagrada para a nova gestão municipal de Guarulhos.
2008 – Elaboração e entrada do projeto junto à Prefeitura de Guarulhos.
2002 – Concepção do Projeto Terra Sagrada pelas lideranças indígenas de Guarulhos.

Texto: Caru Schwingel | Fotos: Christian Braga

 

Foto: Christian Braga

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