Luther King, Coca-cola e a comoção seletiva cotidiana: uma passagem negra sobre Atlanta

Michelle Alexander, autora de The New Jim Crow
Michelle Alexander, autora de The New Jim Crow

No último dia 14 de agosto completou 43 anos que o pastor protestante Martin Luther King Jr. recebeu o Prêmio Nobel da Paz pela sua liderança nos movimentos por direitos civis, que tomaram os Estados Unidos entre as décadas de 1950 e 1960. De forma arrebatadora, o movimento promoveu muitos desdobramentos na vida da população negra daquele país, sua participação política, econômica, midiática, em um lugar onde, àquela época, ainda havia as placas restringindo a entrada de pessoas negras em banheiros, ônibus, bares e restaurantes, bem como em escolas, serviços de saúde. A mesma época onde se garantia a não participação da população negra no exercício do voto a partir de uma complexa estrutura de discursos e instituições brancas.

E lá estávamos nós na sexta cidade mais negra dos Estados Unidos, Atlanta, para debater com mais de 1700 pessoas de cerca de 80 países, estratégias para a reforma das políticas sobre drogas no mundo, no Congresso da Drug Policy Alliance. A cidade abriga uma elite negra, é verdade, e é bastante comum pessoas negras ocupando carros caros circulando pelo centro da cidade, ou frequentando o aeroporto internacional mais movimentado do mundo, e sendo proprietárias dos estabelecimentos que frequentávamos na noite da cidade. Atlanta foi também a cidade a eleger o primeiro homem negro à prefeitura (Maynard Jackson, em 1973), e a primeira mulher negra para algum cargo no Sul do país (Shirley Franklin, eleita em 2001 para a Presidência da Câmara). O atual prefeito de Atlanta é negro, Kassim Reed. [O Portal Correio Nagô entrevistou Reed logo após a sua reeleição em 2013]. E é também a cidade onde em 1886 se vendia o primeiro copo de Coca-Cola da história, uma fórmula do farmacêutico John Stith Pemberton, que buscava uma bebida que lhe pudesse aliviar as dores das feridas trazidas da Guerra Civil. Assim, poderia substituir o seu uso abusivo de morfina.

O Papa Leão XIII já havia condecorado, com uma medalha honorífica, a fórmula do químico Angelo Mariani, que em 1863 utilizava as propriedades dos alcalóides da folha de coca em uma receita de vinho. Até aquele momento não era nem considerada a possibilidade de tornar ilegal ou ao menos desaprovar os alcalóides da planta andina que, isolada ainda na primeira metade de 1800, era ministrada como anestésico e estimulante, e surpreendia especialistas os seus miraculosos efeitos. Sigmund Freud recomendava o seu consumo terapêutico aos pacientes, e produziu uma de suas mais conhecidas obras sobre o tema, ÜberCoca. A surgimento da psiquiatria tem uma relação bastante próxima com a difusão dos alcalóides andinos entre as populações brancas européias e dos Estados Unidos. No Brasil, o seu consumo era parte do conjunto de substâncias consumidas na high society carioca, no período conhecido como a Belle Epoque.

Em 1914, o Brasil subscreveu um protocolo suplementar da Convenção Internacional do Ópio, por meio do Decreto 2.861 de 08 de julho daquele ano, e logo um ano depois, mais um decreto, de número 11.481 de 10 de fevereiro de 1915, que menciona “o abuso crescente do ópio, da morfina e seus derivados, bem como da cocaína” e a necessidade de observância dos termos da Convenção. Ao fim da primeira guerra mundial, segue a Convenção de Genebra de 1925, também subscrita pelo Brasil. E onde tem um lugar fundamental a configurar-se a transnacionalização do controle de substâncias psicoativas.

A noz de cola utilizada na fórmula de Pemberton é de origem africana, e é uma denominação genérica de várias árvores da família das esterculiáceas. Seu fruto, chamado noz de cola, também possui alcalóides, e poderosas propriedades estimulantes. Pode ser encontrada com os nomes de mukezu, oribi, orobó, obi, orobô e abajá. O uso de suas amêndoas foi difundida na região norte da América Latina por intermédio das pessoas negras escravizadas que mascavam a cola para suportar os trabalhos penosos. Junto aos panos da costa, o sabão preto, o dendê (sobre o qual escrevi na semana passada), a noz de cola era uma das mercadorias africanas mais comuns no tráfico transatlântico com o Brasil.

Mas ao longo dos seus 125 anos de história, a bebida mais popular do mundo, que tem mais países consumidores do que os participantes da Organização das Nações Unidas, deixou um rastro de sangue, fraudes, sonegações e corrupção por onde passou. Afeta a vida de produtores de coca e cola através da exploração do trabalho escravo, sendo responsável pela falta de água em diversos comunidades negras e indígenas, e patrocina mudanças nas políticas públicas de gestão das águas em diversos locais do mundo, em prol de seus interesses. Em algumas comunidades indígenas de Chiapas, zapatistas declararam a muitos anos zonas livres do comércio de Coca-Cola, onde não seriam consumidos seus produtos. No Brasil, recentemente a Coca-Cola foi responsabilizada pelo Ministério Público do Trabalho por práticas de escravização em Minas Gerais.

Em Memphis, às vésperas do seu assassinato em 1968, Dr. King e outras lideranças convocaram um boicote à Coca Cola, justamente por observar que as pessoas negras, desde a Atlanta a Memphis, e por todo o país, faziam todo o trabalho duro na cadeia de produção e comércio, e não alcançavam posições de destaque na empresa, além de não serem os maiores consumidores. A partir das denúncias e do boicote de outras lideranças dos direitos civis, a empresa foi pressionada a se posicionar publicamente, afirmando que não praticava discriminação de qualquer origem. Ainda assim, foi condenada a pagar uma ação judicial de mais de 2 milhões de dólares movida por trabalhadoras e trabalhadores da empresa.

Dudu Ribeiro, da Iniciativa Negra Por Uma Nova Política de Drogas, fala na Conferência Mundial de Politicas de Drogas em Atlanta

Quando chegamos na cidade de Atlanta para discutir a política sobre drogas, o peso da questão racial nos impõe desde a história de Martin Luther King Jr aos efeitos do capitalismo industrial no controle dos corpos negros produzido também na própria guerra às drogas. O novo papel a ser cumprido pela prisão, explanados nos postulados do século XIX e nas demandas produzidas pelo e para o avanço do capitalismo industrial no mundo, que alcançará a reforma do sistema de punições, não só produzirá uma nova percepção da intenção do cárcere, como também, uma nova percepção da dimensão do autor de desvios. E se aliará com a emergência dos discursos e práticas que buscavam consolidar a existência no “outro”, negro, uma raça biológica e culturalmente inferior, propensa aos vícios e potencial agente da degeneração da raça.

O discurso de Michelle Alexander na abertura do evento, afirmando que não estava otimista com os caminhos percorridos pelas reformas recentes nas políticas sobre drogas nos Estados Unidos hoje nos levanta questões importantes para serem pensadas a nível global, mas também local, sobre os processos de reforma em debate pelos diversos setores. O presidente Trump se pronunciou dizendo que “vencerão a nova epidemia” no que tem sido chamado também de “crise dos opióides”, com o país lidando com o aumento crescente do consumo de heroína com alta taxa de pureza vida da China, e outros derivados. Atingiram a marca de 120 mil mortes por overdoses nos últimos 24 meses, duas vezes mais do que as perdas na guerra de 19 anos no Vietnã.

Na mesma eleição que deu a vitória a Donald Trump, eleitoras e eleitores dos Estados Unidos aprovaram através de plebiscito o uso recreativo e medicinal da maconha em diversos estados. Califórnia, Massachusetts, Nevada, Maine, bem como a Flórida, Arkansas, Montana e Dakota do Norte se somaram assim aos estados do Colorado, Oregon, Washington e Alasca. O uso medicinal hoje já alcança 29 dos 50 Estados do país. (ver sobre isso)

E poderia parecer paradoxal os Estados Unidos terem avançado nas reformas das políticas sobre drogas, justamente nas últimas eleições que tiveram como resultado a vitória do conservador Donald Trump. Mas não é. De fato, Alexander nos lembra que o que conecta a vitória dos conservadores nas eleições nos Estados Unidos e o avanço na regulamentação da maconha e do debate sobre as respostas às questões do uso e abuso de drogas no país, responde por um nome: branquitude.

Atualmente, a campanha sobre a crise dos opióides incentiva um sentimento na população do país através de campanhas midiáticas, de compaixão às vítimas, de apelo pelo cuidado, para que as mortes sejam evitadas, e diversas figuras públicas, representantes conservadoras do Congresso, por exemplo, se dedicam a uma disputa por quem oferece mais pelas pessoas e pelas famílias. O governador da Flórida Rick Scott, um republicano conservador, declarou em maio deste ano estado de emergência de saúde e concedeu 54 milhões de dólares para serem investidos em prevenção, tratamento e reabilitação. (ver aqui).

Brasil

No Brasil, o lançamento do filme Ilegal por exemplo, que teve ampla repercussão nos principais veículos de imprensa no Brasil, movimentou os sentimentos de preocupação e comoção com a condição da pequena Anny, 5 anos na época, paciente de uma grave e incurável síndrome que desencadeia episódios frequentes de epilepsia, desde que nasceu, chegando a 80 crises por semana. O único remédio encontrado para o caso foi o CBD, extraído da Cannabis. Imediatamente até os mais conservadores no Congresso Nacional, como é o caso do Senador Magno Malta, buscaram prestar apoio a mudanças na legislação que permitissem o acesso, ainda que através da importação do produto já processado, a Anny e a outras famílias brancas que tivessem condições de custear o remédio. E nos últimos meses, inúmeras decisões foram proferidas e a própria ANVISA segue a passos firmes no processo de regulamentação da maconha para fins medicinais no Brasil.

Ou seja, quando as dificuldades com drogas atingem a população branca, quando os efeitos dos abusos, ou as condições do comércio ilegal interessam às pessoas brancas, as políticas mudam, as pessoas mudam, as propagandas mudam. Quando as vítimas são pessoas brancas diversos processos de mudanças são disparados, dinheiro é investido, e a população precisa ser comovida. No entanto, o mesmo tratamento não é dirigido à população mais comumente afetada pelo consumo e pela repressão ao uso de crack, a maioria negras e pobres, constituindo a representação comum na realidade brasileira ou nos Estados Unidos.

Se a maioria das pessoas envolvidas com o comércio, a produção e a venda de heroína fossem negras, não estaria havendo a mesma disputa nos Estados Unidos, como lembrou Alexander, bem como se colocássemos a vida de uma criança negra para movimentar a mudança de políticas no país, tão pouco teríamos grandes efeitos. Justamente, porque a comoção promovida, financiada, organizada pelas estruturas orientadas pelo racismo é seletiva. E a população é incentivada a comover-se seletivamente. Bandeiras no Facebook para as mortes em Paris e não para as mortes na Somália, lembra? (Por que não somos todos Somália?)

Por isso que os ciclos de reformas e mudanças que defendemos nesse país e em qualquer local do globo, trará sempre a centralidade das questões ligadas à raça. A reconfiguração dos dispositivos de controle, dos mercados e das políticas, instrumentalizada pelos discursos jurídicos, econômicos e midiáticos, herdados do escravismo, consolidam saberes e práticas sobre o crime e o desvio, mas também sobre o cuidado e a compaixão que são profundamente racializadas. Assim como a patologização do uso de drogas versus a criminalização do uso de drogas é um oposto e um complemento que guardam racializações profundas, as mudanças em curso trarão essas mesmas condições. A articulação entre velhas e novas formas de dominação nas modernas democracias, farão surgir novas governamentalidades, e onde continuarão no centro a sujeição da vida ao poder da morte, como uma necropolítica do Mbembe, e o olhar sobre quem se quer cuidar, proteger, promover, resgatará a nossa história de colonização sempre.

Em 1963, o pastor King anunciava sobre a Proclamação da Emancipação dos Estados Unidos, que “esse importante decreto veio como um grande farol de esperança para milhões de escravos negros que tinham murchados nas chamas da injustiça. Ele veio como uma alvorada para terminar a longa noite de seus cativeiros. Mas cem anos depois, o Negro ainda não é livre”.

Estaremos sempre atentos portanto em cada processo de mudança sobre nossas vidas que não tragam em sua centralidade a extensão das nossas vozes, as reparações à nossa história, a superação dos traumas que são de todas as sociedades, e que a nossa comoção seja algo da nossa própria humanidade, estendida, ampla e verdadeira, e não apenas um espelho dos brancos para nos dizer por quem devemos chorar.

Texto do Dudu Ribeiro, da Iniciativa Negra Por Uma Nova Política sobre Drogas, especial para os Jornalistas Livres

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