A corrupção é secundária

Jessé Souza. Foto Lula Marques/Agência PT

“O domínio permanente de classes sobre outras exige que as classes dominadas se vejam com ‘inferiores’, preguiçosas, menos capazes, menos inteligentes, menos éticas […]. Se o dominado socialmente não se convence de sua inferioridade não existe dominação social possível.”

A aparência

Parece heresia dizer que a corrupção não é o que mais importa, mas sabe quando somos levados a discutir o acessório e passamos batidos pelo substancial? Ou quando o astuto batedor de carteiras grita “pega ladrão”, junto com a multidão, para desviar a atenção sobre si? É exatamente isso que temos feito e estamos fazendo, presentemente, quando focamos exclusivamente na “corrupção só do Estado”.

Em todos os momentos de nossa história, em que parecia que iniciaríamos a construção de um país mais inclusivo, o tema “corrupção do Estado” ganha as manchetes, as conversas pelos bares, e é usado para retirar do poder líderes legitimamente eleitos. Aliás, é isso que temos feito desde Getúlio Vargas, passando por Jango, e agora por Lula e Dilma. Coincidentemente, a corrupção se torna questão candente em governos com preocupações com as camadas mais carentes da nossa sociedade.

A essência

Mas, poderíamos perguntar: a “corrupção dos políticos e dos funcionários públicos” não é a causa de todos nosso males? Não. A causa de nossos males é que vimos criando e recriando, desde sempre, a sociedade mais desigual e injusta do planeta. A corrupção é reflexo, é sintoma que desvia nossa atenção, que esconde, de todos nós, a causa real. A causa real de nosso males é que expropriamos as chances de vida digna de parcela significativa de nossa população. Parcela substantiva do produto brasileiro, que caberia às camadas mais carentes, é transferida para as classes endinheiradas.

É dessa elite que parte o processo de corrupção para, não só preservar seus privilégios, mas para nos fazer crer que a culpa é nossa. Esse processo de “fazer nossa cabeça” passa por nossos intelectuais que afirmam sermos corruptos de nascença, que nossa singularidade é sermos patrimonialistas, que todos nos apropriamos do que é público para benefício privado sem distinção de classe.

“Na verdade, o mercado capitalista, aqui e em qualquer lugar, sempre foi uma forma de ‘corrupção organizada’, começando com o controle dos mais ricos acerca da própria definição de crime: criminoso passa a ser o funcionário do Estado ou o batedor de carteiras pobre enquanto o especulador de Wall Street – matriz da avenida Paulista – que frauda balanços de empresas e países e arruína o acionista minoritário, embolsa, hoje mais que antes da crise, bônus milionários. Enquanto os primeiros vão para a cadeia, o segundo, que às vezes arrasa a economia de países inteiros, ganha foto na capa da revista The Economist como financista do ano.”

A legitimação

Aqui a questão fundamental é que precisamos nos enxergar corruptos para legitimar a profunda desigualdade que deve ser omitida. Precisamos aceitar que fomos excluídos por nosso pecado original: “a culpa é nossa, o que se há de fazer”. Tendo a “corrupção somente do Estado” como culpada, legitimamos as “diferenças” de capital econômico, de capital cultural e de capital social.

“Ora, como diria o insuspeito Max Weber, os ricos e felizes, em todas as épocas e em todos os lugares, não querem apenas ser ricos e felizes. Querem saber que têm ‘direitos’ à riqueza e felicidade. Isso significa que o privilégio – mesmo o flagrantemente injusto, como o que se transmite por herança – necessita ser ‘legitimado’, ou seja, aceito por aqueles que foram excluídos de todos os privilégios.”

Afirmar que a corrupção é secundária não significa compactuar, muito menos diminuir seus efeitos maléficos sobre nossa sociedade, especialmente, sobre os mais pobres. O que se quer acusar é que trazendo a “corrupção só do Estado” para o centro de todas as conversas e de todas as notícias, ocultamos, encobrimos a desventurada sina dos excluídos de todos os privilégios, que constituem a maioria dos brasileiros.

A palavra do intelectual

Mais além de ocultar e encobrir a verdadeira questão, explica-se a razão de todos os infortúnios, legitima-se que não podemos se construir um país mais igualitário, pois somos corruptos de nascença, nossa herança portuguesa e nosso viés patrimonialista obstruem nosso caminho.

“Esse serviço que a imensa maioria dos intelectuais brasileiros sempre prestou e ainda presta é o que possibilita a justificação, por exemplo, de que os problemas brasileiros não vêm da grotesca concentração da riqueza social em pouquíssimas mãos, mas sim da ‘corrupção apenas do Estado’. E isso leva a uma falsa oposição entre Estado demonizado e mercado – concentrado e superfaturado como é o mercado brasileiro –, como reino da virtude e da eficiência.”

No Norte, a virtude

“Os EUA foram assim transformados em modelo exemplar para o mundo, e comparações empíricas com outros países foram realizadas em escala massiva para demonstrar que os EUA eram o paraíso na terra e todos os outros países, realizações imperfeitas desse modelo.”

Nossos irmãos do Norte lograram construir um país menos desigual porque sua herança cultural é virtuosa. Abaixo do Equador só temos vício, sensualidade e emoções que nos definem como indivíduos de segunda classe. Impeditivos para construções mais igualitárias, mais desenvolvidas, mais racionais. Isso é o que as teorias sobre nosso povo nos incutem. Há teorias, que operam no sentido de comprovar que é inevitável termos uma sociedade injusta e corrupta, que foram construídas por alienígenas, mas há, também, aquelas desenvolvidas por nossos intelectuais.

No Sul, o vício congênito

“A reprodução de todos os privilégios no tempo depende do ‘convencimento’ e não da ‘violência’. Melhor dizendo, essa reprodução depende de uma ‘violência simbólica’, perpetrada com o consentimento mudo dos excluídos dos privilégios, e não da ‘violência física’. É por conta disso que os privilegiados são os donos dos jornais, das editoras, das universidades, das TVs e do que se decide nos tribunais e nos partidos políticos.”

Fazem-nos acreditar que, em lugar algum do mundo, há corrupção tão abrangente como no Brasil. Querem nos fazer crer, e quase sempre conseguem, que em nenhum outro país a elite se apropria do Estado em benefício próprio. Que, por exemplo, as indústrias armamentista e petrolífera não se apropriam, para benesses privadas, da máquina de guerra do Estado norte-americano. Mas seriam estas, realmente, singularidades do nosso país? Ou a singularidade escamoteada seria o título mundial de desigualdade?

A corrupção secundária

“A abissal desigualdade brasileira não humilha e desumaniza apenas os excluídos sociais que perfazem ainda 30% da população. Não existe problema real no Brasil que não advenha de sua monumental desigualdade: (in)segurança pública, gargalo de mão de obra qualificada, escola e saúde pública de má qualidade. O que distancia o Brasil das sociedades que admiramos não é a corrupção do Estado, que é um problema real em qualquer lugar. O que nos afasta das sociedades ‘moralmente superiores’ é que exploramos, aceitamos e tornamos fato natural e cotidiano conviver com gente sem qualquer chance real de vida digna sem ter culpa disso.”

Uma espiada no novo livro de Jessé

“O que a Lava Jato e seus cúmplices na mídia e no aparelho de Estado fazem é o jogo de um capitalismo financeiro internacional e nacional ávido por ‘privatizar’ a riqueza social em seu bolso. Destruir a Petrobras, como o consórcio Lava Jato e grande mídia, a mando da elite do atraso, destruiu, significa empobrecer o país inteiro de um recurso fundamental, apresentando, em troca, não só resultados de recuperação de recursos ridículos de tão pequenos, mas principalmente levando à destruição de qualquer estratégia de reerguimento internacional do país. Essas ideias do Estado e da política corrupta servem para que se repasse empresas estatais e nossas riquezas do subsolo a baixo custo para nacionais e estrangeiros que se apropriam privadamente da riqueza que deveria ser de todos. Essa é a corrupção real. Uma corrupção legitimada e tornada invisível por uma leitura distorcida e superficial de como a sociedade e seus mecanismos de poder funcionam.”

Por fim

“Luta de classe não é apenas a greve sindical ou a revolução sangrenta nas ruas que todos percebem. Ela é, antes de tudo, o exercício silencioso da exploração construída e consentida socialmente.”

Notas

1 Esse texto e as citações nele contidas baseiam-se em Souza, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo, LeYa, 2015. 272 p.

2 Está para ser lançado, possivelmente em outubro próximo, o novo livro de Jessé Souza “A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato”

COMENTÁRIOS

Uma resposta

  1. César, não conhecia o pensamento de Jessé Souza. Sua apresentação, foi tão generosa, tão convidativa e tão convincente, que agora ja me sinto “amigo íntimo” dele. Obrigado.

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