LIMPEZA ÉTNICA: Aung San Suu Kyi: do Nobel da Paz ao ódio internacional

Por Igor Zahir estecial para os Jornalistas Livres

– Aung San Suu Kyil

Em agosto de 1995, logo após ser temporariamente libertada da prisão domiciliar, Aung San Suu Kyi, líder de fato do Mianmar (antiga Birmânia), fez um discurso inspirador na Conferência Internacional de Mulheres em Pequim, sobre como “a tolerância genuína requer um esforço ativo para tentar entender o ponto de vista dos outros; isso implica uma mente aberta e visão, bem como a confiança na própria capacidade de enfrentar novos desafios sem recorrer a intransigência ou violência”. Durante os anos seguintes, ela manteve essa mensagem pacificadora, inclusive quando foi presa novamente – tornando-se a prisioneira política mais famosa do mundo naquela época – e seu partido foi perseguido.

Finalmente libertada pelo regime militar, ao falar para mais de quatro mil pessoas em novembro de 2010, Suu Kyi garantiu “estar preparada para conversar por igual com qualquer pessoa e não guardar ressentimento por ninguém”. Ali, a ativista daria lugar à líder política que, desde 2016, ocupa o cargo de Conselheira de Estado – por ter dois filhos com nacionalidade britânica, a Constituição birmanesa proíbe que Suu Kyi assuma a presidência, mas devido à sua importância no movimento de redemocratização do país, ela é considerada a líder de fato de Mianmar.

Ela entrou também para uma seleta lista de dissidentes políticos que fizeram história em seus países como símbolos de liberdade perante a autocracia e ditadura militar. Nomes como Nelson Mandela, que após quase 30 anos atrás das grades, foi o responsável pelo fim do apartheid na África do Sul e assumiu a presidência do país; Václav Havel, o dramaturgo que lutou e se tornou o primeiro presidente pós-comunista da Checoslováquia; e Corazon Aquino, viúva de um líder da oposição do governo Ferdinando Marcos, e que se tornou posteriormente presidente das Filipinas – a primeira mulher a ocupar a chefia de estado de um país asiático.

Em comum entre esses líderes, além dos valores democráticos, estão as tentativas da oposição de envolvê-los em golpes ou escândalos de corrupção. Alguns escapam ilesos, mas nem todos têm sucesso ao provar sua inocência. Lech Walesa, ex-presidente da Polônia, passou de herói na luta contra o comunismo, para comprovado espião do próprio regime que combatia. Boris Yeltsin, primeiro presidente da Rússia após o fim da União Soviética, ficou marcado pela era repleta de desemprego, deterioração, conflitos e desastres econômicos no país. Agora, uma polêmica reviravolta ameaça a popularidade e reputação da carismática Aung San Suu Kyi, que em 1991 recebeu o prêmio Nobel da Paz por sua resistência pacifica contra o regime ditatorial, teve um filme sobre sua vida, uma música do U2 em sua homenagem e, quando em prisão domiciliar, recebeu apoio público de políticos como Barack Obama e Hillary Clinton.

Desde agosto passado, o caos tomou conta de Mianmar, quando um grupo de insurgentes rohingyas atacou cerca de 20 delegacias da polícia birmanesa em Rakhine, no oeste do país, onde se encontra a minoria muçulmana rohingya. Em contrapartida, o exército deu início às “operações de limpeza”, com o objetivo de deter “terroristas extremistas” e proteger a população civil. Cerca de 700 aldeias foram queimadas, centenas de moradores foram mortos e, até o fechamento desta reportagem, mais de 480 mil refugiados rohingya passaram para Bangladesh, antes de serem perseguidos até a fronteira. De maioria budista, Mianmar é dominado pela influência religiosa de monges radicais que apontam os muçulmanos como uma ameaça e os rohingya (que vivem por lá há gerações) como imigrantes ilegais de Bangladesh desde 1982. A eles, é negado o direito a usufruir de serviços básicos como educação e saúde.

 

Mais da metade dos refugiados rohingya é formada por menores de idade – só de crianças, o número ultrapassa seis mil integrantes. O Ministério da Segurança Social de Bangladesh divulgou nota afirmando que vai construir 14 mil novos abrigos para elas ficarem separadas dos adultos. De acordo com o governo bengali, os jovens entre os 13 e os 18 anos são os mais necessitados, já que muitos foram separados dos seus pais e podem, futuramente, se revoltar e adquirir tendências a atividades criminais. A primeira-ministra de Bangladesh, Sheikh Hasina, declarou total apoio aos rohingya, mas exigiu que o governo Mianmar acolhesse com segurança os seus cidadãos refugiados.

Após ser criticada por líderes e ativistas no mundo todo, Aung San Suu Kyi rompeu o silêncio ao fazer um discurso nacional afirmando “condenar todas as violações dos direitos humanos e a violência ilegal” e “se comprometer com a restauração da paz em todo o Estado”. Tais palavras, por um lado agradaram aos seus eleitores birmaneses, mas por outro geraram maior desconforto e decepção entre os aliados internacionais, visto que em momento algum a líder do país admitiu a grave postura dos seus militares. A questão é evidente: o que aconteceu com aquele belo discurso de Suu Kyi de recusar a “intransigência, intolerância e a violência”? Onde foi parar sua visão e mente aberta, que ela pregou por tantos anos?

Politicamente falando, é irrelevante se ela compartilha ou não do mesmo ponto de vista birmanes de que a minoria rohingya não é bem-vinda em seu país. Isso porque é de conhecimento público que, independente de suas opiniões, Suu Kyi sabe que não tem mais autoridade do que os militares de Mianmar, que podem derrubar novamente seu governo caso haja uma indisposição entre as duas partes. Quem domina as fronteiras e as armas são os generais. Nessa complexa relação, Suu Kyi é a líder, mas quem governa de maneira independente é o exército fundado por seu próprio pai.

vídeo da primeira-ministra de Bangladesh, Sheikh Hasina, e da situação dos rohingya:

Enquanto isso, instituições pacificadoras internacionais cobram da líder birmanesa um posicionamento maior perante a catástrofe humanitária. Na ONU, o secretário-geral, Antonio Guterres, e o alto comissário para os Direitos Humanos, Zeid Ra’ad Al Hussein, compartilham da opinião de que o tratamento de Mianmar com os rohingyas corresponde a uma verdadeira limpeza étnica. Para Adama Dieng, assessor especial das Nações Unidas para prevenção do genocídio, quando os rohingya são mortos e transferidos forçadamente, de forma generalizada ou sistemática, isso pode constituir limpeza étnica e pode constituir crimes contra a humanidade – ou seja, um genocídio. “Ainda não estamos lá, mas é hora de agir”, declarou Dieng.

Recentemente, a paquistanesa Malala Yousafzai, mais jovem laureada com o Nobel da Paz, cobrou em seu Twitter: “Venho condenando reiteradas vezes nos últimos anos esse tratamento trágico e vergonhoso. Espero que a minha colega laureada Aung San Suu Kyi faça o mesmo. O mundo aguarda e os muçulmanos rohingya aguardam”.

Além de Malala, outros ganhadores do Nobel da Paz demonstraram sua consternação diante do caos que atingiu Mianmar. “Apelo a você e aos seus colegas do poder para que estendam a mão a todas as partes da sociedade a fim de tentar restabelecer relações amigáveis com toda a população num espírito de paz e de reconciliação”, disse o Dalai Lama em correspondência endereçada a Suu Kyi. “Os questionamentos que me fazem levam-me a crer que são inúmeros os que têm dificuldade em compreender que o que está acontecendo aos muçulmanos se passa num país budista como a Birmânia. Como seu colega budista e prêmio Nobel, eu venho até você e seus colegas mais uma vez para encontrar uma solução duradoura e humana para este problema grave”, concluiu o principal líder espiritual tibetano, que já havia discutido o ocorrido com ela em junho de 2016, e agora se diz “decepcionado ao ver que a situação parece piorar e a violência está aumentando”.

Cinco mulheres que também foram laureadas enviaram carta formal através da Nobel Women’s Initiative: “Como colega de Prêmio Nobel, um ícone mundial para a Liberdade Universal e Direitos Humanos, agora Conselheira de Estado e líder de fato da Birmânia, você tem a responsabilidade pessoal e moral de defender os direitos dos seus cidadãos. Quantos Rohingya têm que morrer? Quantas mulheres Rohingya serão estupradas? Quantas comunidades serão arrasadas antes de você levantar sua voz em defesa daqueles que não têm voz? Sua indiferença não está de acordo com a visão de ‘democracia’ para o seu país que você nos descreveu e para o qual todas nós a apoiamos ao longo dos anos”. A carta foi assinada pelas ativistas Mairead Maguire, da Irlanda do Norte; Jody Williams, dos Estados Unidos; Shirin Ebadi, do Irã; Leymah Gbowee, da Libéria; e Tawakkol Karman, do Iêmen.

Até o fechamento desta edição, a petição online “Retirem o Prêmio Nobel da paz de Aung San Suu Kyi” já havia recolhido quase 430 mil assinaturas, com a justificativa de que ela não fez praticamente nada para impedir esse crime contra a humanidade em seu país. Contudo, o diretor do Instituto Nobel, Olav Njølstad, divulgou um texto no site oficial explicando que “nem o testamento de Alfred Nobel nem os estatutos da Fundação Nobel em Oslo ou Estocolmo [que escolhem os indicados] contemplam a possibilidade de que um Prêmio Nobel seja retirado”.

Há quem diga que, diante da sua passividade política, Aung San Suu Kyi não deve ser responsabilizada pela limpeza étnica em Mianmar e que o Exército, detentor do poder, é quem tem que ser pressionado pelas autoridades ao redor do mundo. Para os defensores desse ponto de vista, é uma questão de enfrentar os que mandam mais. Antes de tudo, é preciso lembrar que, em meio a toda essa catástrofe, existe um povo à beira do genocídio. Quando assumiu o cargo, Suu Kyi declarou que seu país estava com sede de paz. Se a líder de fato pensa dessa forma, imagine o que passa pela cabeça dos rohingya que, sob seu governo, perderam qualquer direito mínimo à dignidade?

 

Igor Zahir é escritor e jornalista. Após ter feito reportagens sobre ativismo e Direitos Humanos para as principais revistas femininas do Brasil durante anos, atualmente está focado no noticiário estrangeiro e colabora, semanalmente, como correspondente internacional deste portal.

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