Bem quando a reforma trabalhista destrói os direitos dos trabalhadores brasileiros, os operários que cuidam dos serviços de limpeza pública e coleta de lixo em Florianópolis estão dando uma lição de bravura e resistência. A imposição de um projeto de lei que, na prática privatiza a Companhia de Melhoramentos da Capital (Comcap), despertou a insurgência dos empregados em defesa desse patrimônio público contra o chamado “Pacote de Maldades” do prefeito Gean Loureiro (PMDB). Impedidos por três diferentes corporações policiais de entrar na sessão que lançaria ao azar o destino de 1.600 famílias, eles fizeram nesta semana um protesto inusitado: bloquearam a entrada da Câmara de Vereadores com 300 quilos de lixo que deixaram de recolher há três dias, quando decidiram entrar em greve.
Em dois dias, o lixo já apodreceu, fazendo com que da Câmara de Vereadores exale o seu fedor pelo Centro de Florianópolis. No protesto simbólico, o lixo está virando chorume, assim como o caráter dos parlamentares que se vendem para lesar a população, mas os aguerridos agentes da limpeza pública não arredaram pé da frente da “Casa do Povo”, onde o prefeito fez seus conluios e traiu sua palavra de que a matéria seria discutida com a categoria antes de ser apresentada ao parlamento municipal. Em vez disso, Gean Loureiro encaminhou o projeto que transforma a Comcap em autarquia e garantiu que seu pedido de votação em regime de urgência fosse aprovado por 16 votos a sete.
Vídeo/reportagem de Talita Burbulhan
Após uma queda de braço com a polícia, o prefeito e os vereadores, os trabalhadores conseguiram suspender a sessão de ontem. Nesta quinta-feira, às 10 horas, o projeto com as emendas deveria ser lido em plenária e depois seguir para as comissões internas e retornar à votação somente na sexta-feira, conforme havia indicado o presidente da Câmara. No entanto, os vereadores entraram nesta quarta ao amanhecer pelos fundos, em 10 minutos passaram o projeto em todas as comissões e aprovaram a toque de caixa, gerando mais revolta e mais violência à base da truculência policial. Na sexta-feira, a categoria se reúne para decidir a continuidade do movimento ou o retorno ao trabalho.
O vereador Lino Peres (PT) considera heroica a resistência dos garis. “A luta corajosa desses homens e mulheres é muito simbólica neste momento histórico de massacre ao trabalhador”. Eles não baixaram a guarda nem mesmo após serem expulsos à força de bala de borracha à queima roupa e chuva de bombas e de terem sido agredidos duramente por três ferozes corporações policiais na noite de quarta: a Guarda Civil Municipal; a Polícia Militar e o Pelotão de Choque. A maioria dos 70 operários que conseguiram entrar na Câmara ao ser aberta a porta da garagem na manhã de quarta permaneceu no prédio o dia inteiro e passou a noite no local para impedir que houvesse uma uma sessão extra atendendo alguma manobra do prefeito para votar o projeto.
Ocupando o 21° andar da Câmara e o calçadão da rua Padre Miguelinho, à sua frente, os garis já colecionam muitos feridos em apenas dois dias: no primeiro, foram ao menos quatro trabalhadores, um deles hospitalizado após desmaiar com princípio de insuficiência cardíaca ao receber bombas de gás lacrimogêneo no rosto e dois tiros de borracha que quase deceparam o dedo mínimo de uma mão. No segundo dia, ao menos seis ficaram bastante feridos com tiros de bala de borracha à queima-roupa disparados a uma distância de menos de um metro e com armas de grosso calibre. Um deles ficou desacordado e foi levado para o hospital de Caridade sangrando muito. O ferimento na parte baixa do abdômen foi tão profundo que por algum tempo muitos acreditaram se tratar de uma perfuração por arma letal. A agressão ocorreu numa emboscada armada pela Guarda Civil e Tropa de Choque quando um grupo pequeno de servidores abordou o vereador Maycon Costa (PSDB), contumaz defensor das propostas do “Pacote de Maldades”, na saída do plenário.
Trabalhadores e prefeito instalaram no Centro de Florianópolis uma verdadeira trincheira de guerra, barulhenta e fedorenta, na qual o gás lacrimogêneo se confunde com o gás da decomposição do lixo. A explosão diurna e noturna de bombas, tiros e palavras de ordem num local de grande circulação de pedestres e concentração de prédios, repercute em todos os edifícios residenciais, comerciais e repartições públicas das imediações. Gean, escondido atrás dos seus vereadores e dos policiais com suas armas, cavalos e cães treinados pela maldade humana, pouco ou nunca aparece. Os garis, de peito aberto, armados apenas com máscaras de proteção distribuídas pelo Sindicato dos Trabalhadores no Serviço Público Municipal, esbanjam uma organização, uma solidariedade e uma coragem que está comovendo os florianopolitanos.
Os operários da Comcap são homens e mulheres humildes, típicos “manezinhos” da Ilha, em sua maioria, alguns mais velhos como Edmilson Moraes, de 68 anos, que só tem o ensino fundamental, outros mais jovens como Cristian Santos, 34 anos, que faz faculdade a distância e fala como um doutor. Eles contam com a simpatia de grande parte da população, que aprova os serviços da Comcap, como a servidora pública Lilian Alagia, que se declarou “insultada com o fato de o prefeito usar um aparato de repressão desmedido e pago com o dinheiro dos contribuintes para agredir pais de família e pessoas que fazem com tanto esmero um serviço essencial para todos nós”. Cristian acredita que a autarquização é o cavalo de troia para terceirizar o serviço e restringir a coleta apenas às áreas de classes privilegiadas da cidade.
Além de feridos, contudo, os trabalhadores colecionam gloriosas conquistas. Em tempos de seguidas derrotas para a classe trabalhadora, eles conseguiram driblar o aparato policial e ocupar a Câmara, evitando que a sessão acontecesse para votação do projeto. Com isso, obrigaram o prefeito a chamar os líderes para negociar duas emendas que dificultam a terceirização dos serviços pela autarquia mas, na opinião do presidente do sindicato, ainda não trazem garantia de que os 1.600 trabalhadores não serão dispensados. Entre os vereadores que votaram contra o regime de urgência, há divergências grandes. Alguns são favoráveis às emendas, outros fecham com os trabalhadores na recusa ao projeto como um todo. O vereador Lino Peres (PT), por exemplo, defendia ontem que a votação desta quinta fosse suspensa e a matéria voltasse para as comissões para ser analisada em suas implicações jurídicas com a participação das entidades dos servidores. Ele, os vereadores Afrânio Boppré e Marquito (PSol) foram aplaudidos pela categoria ao se retiraram da plenária depois que o presidente da Câmara, Guilherme Pereira (PSD), traiu sua palavra e colocou o projeto em votação.
Entre chuvas de papel picado em apoio a sua causa, os garis também recebem reprimendas de moradores dos prédios em volta da Câmara que reclamam do barulho das cornetas, tamborins e apitos embalando os bordões: “Se o prefeito não retirar o pau vai pegar” ou “O lixo tá na rua, prefeito a culpa é tua”. Mas nenhum consumidor, sentado no conforto do seu apartamento na zona nobre da cidade, tem coragem de xingar de vagabundos esses que são responsáveis pelo serviço sujo dos chamados “cidadãos de bem”, como fazem com os servidores públicos e os militantes sociais em geral: o fedor da cidade com o lixo se acumulando nas ruas é a prova de que os guerreiros trabalham pra valer.
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