Por Raquel Wandelli, de Havana, Cuba, especial para os Jornalistas Livres
Exceto a imponente beleza marítima e arquitetônica da fortaleza erguida na entrada da Baía de Havana, o cenário não é muito diferente do característico de uma grande feira pública em qualquer país capitalista. Ônibus chegando e partindo, música, barracas vendendo bebidas, picolés, comida típica, parque de diversão para as crianças permeiam o caminho de milhares de cubanos que sobem o Morro em direção ao Complexo Militar San Carlos de La Cabaña, construído pelos colonizadores espanhois no século XVIII para defender Havana das invasões inglesas. O que diferencia essa grande concentração de pessoas de todas as idades é o objeto capaz de atrair durante dez dias multidões debaixo do sol caribenho: o livro. Com uma repercussão maior a cada ano, a Feria Internacional del Libro de Habana, que foi aberta no dia 9 de fevereiro e vai até o dia 19, é resultado dos investimentos desse país socialista em uma política pública de educação e no forte incentivo à arte e à leitura, conforme assinalou o presidente da Assembleia Nacional do Poder Popular, Esteban Lazo, na cerimônia de inauguração.
Em sua 26ª edição, a feira anual reúne autores, editores e tradutores de 46 países, com destaque para os selos editoriais das Antilhas. O acontecimento aborda a exuberante paisagem histórica com hordas de jovens, famílias e crianças que brincam nos canhões ou se sentam nos gramados da colina debruçadas ao lado dos pais sobre os livros, que são vendidos por valores equivalentes a centavos de reais, com custos ainda mais baixos que os já praticados pelas livrarias cubanas. O público heterogêneo que sobe em procissões infindáveis até os estandes de livros ou salas de lançamento instaladas dentro dos quarteis do castelo de San Carlos evidencia a igualdade étnica e social em uma sociedade inclusiva, onde nenhuma criança pode ficar fora da escola e o jovem recebe apoio integral para se graduar nas universidades públicas.
Neste ano, o evento tem como país convidado de honra o Canadá, com quem Cuba mantém fortes acordos culturais. Há uma sala dedicada à literatura canadense, onde se realiza todos os dias a Jornada de Quebec. Ao lado dos franceses, alemães, do leste europeu, espanhóis, estadounidenses e latinoamericanos em geral, os canadenses são visitantes preferenciais desse país considerado o último reduto da experiência da humanidade na superação do capitalismo e das desigualdades produzidas pela sociedade de classes. Dezenas de poetas, ficcionistas e críticos canadenses, como Maya Ombasic, Patrick Léonard, Camille Robitaille, Louise Desjardins, Rose Ellicelny, Alexandre Belliard, Sophie Benvenue e Luc Chartrand participaram da feira lançando livros, proferindo palestras e conversando com os leitores no estande ou em espaços ao ar livre com proteção para o sol e a chuva.
Em três dias de feira, os frequentadores esgotaram os títulos de Leonardo Padura, considerado o maior narrador cubano vivo, autor de O homem que amava cachorros, romance histórico sobre o assassinato de Trotsky, publicado no Brasil pela Boitempo. Diários de Che na Bolívia, publicado no Brasil pela editora Record, leitura muito procurada pelos jovens, também havia acabado na ala de literatura social e política do Estande de literatura cubana, uma das áreas preferidas dos leitores, onde estão expostos também os discursos de Che, de Fidel Castro e do atual comandante chefe Raul Castro. O comandante chefe Fidel Castro foi homenageado como tema dos colóquios, mostras documentais e 24 novos títulos dedicados ao líder da revolução cubana e à análise crítica e autocrítica do período que o sucede.
Cada compartimento do castelo militar recebeu o nome de um grande escritor ou de um intelectual e foi transformado em uma sala para entrega de prêmios em diversas áreas da produção intelectual, lançamento de livros, oficinas, atelier de arte, exposições artísticas ou projetos culturais. As salas homenageiam nomes como Nicolas Guillén, José Antonio Portundo, Alejo Carpentier e José Lezama Lima. Em outros espaços distribuídos pela Fortaleza, se realizam exposições de arte e fotografia; projetos de publicação digital e jogos virtuais de leitura; conferências e painéis; Museu do Som; teatro de bonecos, contação de histórias e cozinha demonstrativa com apoio na emergente literatura culiniária.
Na Sala Alejo Carpentier, a poetisa e tradutora Susana Haug coordenou o painel internacional “Pensar-nos e nos reescrevermos como povos no romance histórico”, que mostrou a importância desse gênero como um dos grande pilares do canon latinoamericano. Participaram Luisa Valenzuela, representando a Argentina; Raúl Vallejo, pelo Equador; Paolo de Lima, pelo Perú e Rogelio Riverón, por Cuba. O autor de Volver al Oscuro Valle, Santiago Gamboa, considerado o sucessor de Gabriel García Márquez na literatura colombiana, foi um dos mais festejados romancistas latioamericanos com o lançamento de A síndrome de Ulisses, narrativa de um jovem colombiano aspirante a escritor que vai a Paris tentar se lançar no mundo da literatura.
Carregados de sacolas com livros, os cubanos aproveitam a feira para se atualizar em literatura didática, histórica e ficcional e cumprem o lema da feira, que é campanha nas rádios, nos jornais, nas ruas, nas escolas e nos cartazes: “Ler é crescer”. Do alto da colina banhada pelo mar do Atlântico, a maior fortaleza das Américas, com uma área de 10 hectares e 700 metros de muralha, torna-se, durante esse evento, alicerce maior da fortaleza simbólica de Cuba, que não é a sua economia, como acentua Osvaldo Martinez, economista e ex-assessor direto de Fidel Castro, mas a sua cultura. Construída de 1763 a 1774 por cerca de quatro mil prisioneiros mexicanos e indígenas escravizados pelo rei espanhol, a edificação tomada por Che Guevara torna-se também emblema da libertação de um povo. “Para ser livre é preciso ler”, dizem cartazes espalhados por toda a Ilha.
Uma resposta
https://clubedeautores.com.br/livro/cuba-2