O Espírito Santo tem vivido em desordem generalizada. Quem acompanha os noticiários ou está nas ruas praticamente desertas, é testemunha do medo e do caos causado pela queda de braço entre Estado e Polícia Militar. Enquanto os bastidores estão efervescentes, as ruas estão praticamente vazias e as pessoas, por segurança, não querem arriscar temendo o pior. A partir de agora, vamos detalhar para você, leitor, o cenário caótico o qual se tornou a segurança pública no Espírito Santo.
O movimento e suas razões
Na noite do dia 3 de fevereiro, os noticiários capixabas informaram sobre a presença de familiares de PM’s em frente aos quartéis da Grande Vitória e dos municípios de Guarapari, Linhares, Aracruz, Colatina e Piúma. Desde então, essas pessoas estão “barrando” a saída de viaturas das bases da PM.
Portando cartazes, os manifestantes reivindicavam:
- Melhores condições de trabalho aos PM’s;
- Reajuste salarial, pois há três anos não há reposição da perda pela inflação em suas remunerações;
- Aumento do efetivo da PMES, que está abaixo de 10 mil homens.
As manobras do governo, a queda de braço, a imprensa e as mídias digitais
O Governo do Estado do Espírito Santo, desde o início, afirma que não vai ceder a pressão das famílias e dos policiais aquartelados e se dispôs a entrar em uma queda de braço com os manifestantes. O primeiro passo dado pelo governo foi conseguir na Justiça o decreto que torna o movimento grevista ilegal.
Em seguida, o Poder Executivo do ES anunciou a troca de comando na Polícia Militar. Saiu o coronel Laércio Oliveira, que ficou no cargo por menos de um mês, e entrou o coronel Nylton Rodrigues Filho. O novo líder da PM, em seu primeiro ato, determinou por escrito que todos os policiais respondam às suas escalas de trabalho nas ruas e não comparecer aos batalhões e quartéis. Além disso, o Estado teve de recorrer ao Governo Federal, que enviou 1.200 homens da Força Nacional para atuar nas ruas da Grande Vitória.
Vale destacar o papel da imprensa nessa guerra. A grande mídia capixaba tem sido um espaço bastante amplo para os ataques do governador interino César Colnago (PSDB) e do secretário de Segurança Pública, André Garcia, que classifica a greve como “palhaçada” e afirmou nesta terça-feira (07) o seguinte: “O movimento tem a clara intenção de desestabilizar. Estão apostando no pior. Mas vão perder. E depois vamos atrás das consequências dessa irresponsabilidade”.
A imprensa tem se aproveitado da falta de articulação dos manifestantes e da intensa circulação de materiais nas mídias digitais para deslegitimar o movimento. Exemplo disso, é a divulgação no Facebook do vídeo no qual a PM pede “autorização” aos familiares para poderem atuar nas ruas. Horas depois, a publicação já estava no Gazeta Online, principal portal de notícias do Espírito Santo, vinculado à Rede Gazeta, filial capixaba da Globo.
O duro posicionamento do Governo do Estado e da imprensa capixaba gerou efeitos que fortaleceu o clima da queda de braço. A população, revoltada com o suposto impedimento das famílias ao trabalho da PM, foi às ruas protestar.
O governador afastado por conta de uma cirurgia, Paulo Hartung, retornou aos holofotes para acusar o movimento de realizar chantagem, de “sequestrar” a liberdade da população e que o Poder Executivo não pagará o “resgate”. Já André Garcia afirma também que o movimento grevista tem influência política.
Por que os PM’s não podem realizar greves?
No dia 6 de fevereiro, O Tribunal de Justiça do Espírito Santo declarou a ilegalidade do movimento grevista dos policiais militares, ordenando o fim do movimento e estabelecendo, caso haja descumprimento, uma multa de R$ 100 mil por dia. De acordo com o desembargador Robson Luiz Albanez, o movimento dos familiares impediu e paralisou atividades essenciais à preservação da ordem pública.
Além disso, a Constituição de 1988 veta qualquer possibilidade dos policiais militares, bem como membros do Exército e do Corpo Militar de Bombeiros, de realizarem greves. O inciso IV, do terceiro parágrafo do Artigo 142 da Carta Magna, diz: “ao militar são proibidas a sindicalização e a greve”.
Vale ressaltar que o movimento que começou no dia 3 de fevereiro não tem nenhuma ligação com a Associação de Cabos e Soldados da Polícia Militar e Bombeiro Militar do Estado do Espírito Santo (ACS/PMBM/ES). No entanto, as manifestações são encaradas como uma “greve branca”.
Impactos da Manifestação no Espírito Santo
Desde o dia da manifestação dos familiares, os números da calamidade que atinge o Espírito Santo são assustadores. O número de mortes aproxima-se de cem e, de acordo com o Sindicato dos Policiais Civis do Espírito Santo (Sindipol-ES), a Delegacia de Furtos e Roubos de Veículos (DFRV-ES) registrou 260 ocorrências de veículos furtados ou roubados somente na Região Metropolitana de Vitória. A média natural é de 17 a 20 ocorrências por dia.
O transporte público na Grande Vitória sofreu com os impactos do caos. Diante das ameaças sofridas por rodoviários e da total insegurança nas ruas, avenidas e bairros da região metropolitana, a categoria decidiu não circular durante os dias 8 e 9 de fevereiro.
Neste dia 8 de fevereiro, em Vitória, escolas, postos de saúde, parques e outras repartições públicas estiveram com suas atividades suspensas, exceto a Guarda Municipal e a Limpeza
Pública. Em Vila Velha, apenas três unidades de saúde funcionaram normalmente. No município de Serra, a coleta de lixo estiveram em atividade, bem como os Pronto-Atendimentos e a Maternidade de Carapina. Em Cariacica, todas as atividades foram suspensas por falta de segurança.
De acordo com o diretor do Sindicato dos Trabalhadores da Saúde do Estado do Espírito Santo (Sindsaúde-ES), Valdecir Gomes, os hospitais estaduais têm poucos servidores à disposição. Porém, a direção do Hospital Estadual Antônio Bezerra de Farias, em Vila Velha, tem ameaçado cortar ponto do trabalhador não consegue chegar na unidade, apesar do prédio administrativo da unidade não ter ninguém e da Secretaria de Saúde do Estado estar fechada.
“O diretor deu ordens para buscar os funcionários em ambulâncias, mas não está garantindo nada, nem a integridade dos servidores, e o pessoal está passando o maior aperto. Mas as coisas vão mudar. Se não der para os trabalhadores irem, eles não irão”, afirmou Valdecir.
Além disso, o Departamento Médico Legal de Vitória (DML) atingiu, nesta segunda-feira (06/02) a sua capacidade máxima, por conta da quantidade de óbitos registrados na Grande Vitória. Cerca de 50 corpos chegaram à unidade e muitos estão espalhados pelos corredores.
A falta da Polícia Militar nas ruas também sobrecarregou o trabalho das Guardas Municipais e da Polícia Civil, além da atuação da Força Nacional. Na noite desta terça-feira, o investigador da Polícia Civil, Mario Marcelo de Albuquerque, foi morto a tiros na BR-259, no município de Colatina, noroeste do estado, após agir em um assalto a um motociclista. Por conta disso, o Sindipol-ES paralisou as atividades nesta quarta-feira e, no dia 09/02, realizarão uma Assembleia Geral.
O comércio e agências bancárias também foram atingidas com o caos no ES. Além de assaltos, arrombamentos e furtos, a Federação do Comércio e Bens, Serviços e Turismo do Estado do Espírito Santo (Fecomércio-ES) estima que o prejuízo aos comerciantes gira em torno de R$ 45 milhões por dia, levando em consideração o PIB diário e o fechamento de várias lojas. Com isso, a população passa dificuldade para abastecer seus lares com alimentos e para retirar dinheiro, por conta do medo que assola as ruas.
O que aprendemos com o caos no ES?
O movimento dos policiais militares e de seus familiares, diante da onda de violência que atinge o Espírito Santo e da maneira como foi conduzido o protesto, se mostraram bastante desarticulados. Muito por conta de uma legislação que os proíbe de se organizarem e lutarem por condições dignas no exercício de suas profissões. Permitiram que a mídia os atacasse, gerando inúmeras reações da opinião pública, como revolta, indignação e até deboche.
De fato, como disse o jornalista Ricardo Boechat no Jornal da Band do dia 6 de fevereiro, faltou espírito público aos militares e aos familiares ao não entenderem o transtorno que seus atos geram. Em uma situação alarmante na qual a população capixaba está inserida, voltar às ruas sem deixar de buscar alternativas para negociar com o Governo do Estado seria o mais justo.
Uma situação parecida com essa aconteceu há alguns anos atrás com os rodoviários. Em 2013, a Grande Vitória foi atingida por uma forte chuva, que alagou vários pontos. A categoria, por conta disso, concordou em levar 70% da frota para as ruas nos horários de pico. Mesmo assim, o povo teve que enfrentar ônibus lotados, engarrafamentos, alagamentos…Inclusive, muitos se arriscaram a voltar à pé para suas casas (este que vos escreve foi um deles).
No entanto, quem compreende a conjuntura política do Espírito Santo sabe que o vilão desse filme de terror é único: o Estado. As posturas do governador em exercício, César Colnago e do secretário de Segurança, André Garcia, chegam a ser vergonhosas e assustadoras. Sem falar da atuação de gala do governador Paulo Hartung, que, com um semblante pálido por conta da cirurgia que realizou no fim de semana, acusou a categoria de “sequestrar” a liberdade dos cidadãos e “pedir resgate”.
A verdade é que todo esse problema é resultado de uma política de corte de gastos que o governador Paulo Hartung pratica no Espírito Santo desde o início de seu terceiro mandato, em 2015. O capixaba só sentiu de verdade os resultados agora, mas não é nenhuma novidade: já vimos os servidores do Incaper decretar greve, pela falta de diálogo do governo em negociar o reajuste salarial e também pelo sucateamento da instituição.
A Cesan também sofre essa política absurda e é alvo constante da iniciativa privada por isso. A saúde pública e seus servidores estaduais também sofrem com estruturas precárias. Mas esse transtorno é só o começo do que estar por vir. Lembre-se que o Governo de Michel Temer quer limitar gastos por 20 anos…
Por conta de tudo isso, está mais do que na hora de discutir a questão da desmilitarização da PM, transformando-a em uma instituição 100% civil. É inadmissível perpetuar uma estrutura tão abusiva e que não proporciona condições dignas de trabalho a seus servidores.
Além da desmilitarização da PM, esse caos também traz outra discussão: não se faz segurança apenas com policiais. Segurança não pode ser remediada, deve ser estimulada com mais educação, emprego, lazer, esporte, infraestrutura de qualidade nas comunidades e também com polícia nas ruas realizando um trabalho digno, atuando dentro dos limites da legislação brasileira.
A atuação da imprensa nesse conflito também é bem questionável. Mais uma vez, os grandes veículos de mídia se posicionam a favor de quem está no poder. A todo momento, a imprensa culpa os PM’s pela calamidade, tratam os servidores com deboche e não se dão o trabalho de questionar a atuação, muito menos o resultado da política de corte de gastos feita por Paulo Hartung.
O caos no ES nos deixa uma valiosa lição, apesar de tudo: “não somos uma sociedade civilizada. Somos uma sociedade controlada”.