31 de Dezembro de 2016. Não era meia noite ainda quando o técnico de laboratório, Sidnei Ramos de Araújo, pulou o muro, atirou contra 12 pessoas – sendo 9 mulheres e uma criança de 10 anos – e em seguida se suicidou. O crime havia sido premeditado para acontecer no Natal, mas acabou ficando para o ano novo. Numa atitude covarde e desumana, Sidnei protagonizou um crime brutal, mas que não é novidade na vida das mulheres.
Em A Mulher Eunuco, Germaine Greer diz que “As mulheres fazem muito pouca ideia de quanto os homens as odeiam.“ e discorre sobre a origem de todo esse ódio destinado às mulheres pelo simples fato de existirem.
A forma como o patriarcado opera no nosso dia a dia promove a motivação para que crimes como este aconteçam. Dentro dessa sociedade patriarcal, machista e misógina há papeis que são designados desde que nascemos a homens e mulheres. Enquanto que ao homem é disposto todo o espectro da realização humana, às mulheres cabe serem, hostilizadas, humilhadas, invalidadas, machucadas, estupradas, empaladas, queimadas, enforcadas, esfaqueadas, asfixiadas e mortas diariamente. Quando as mulheres passam a exercer a autonomia de seus corpos e suas vidas, ignorando essas “regras sociais”, a sociedade lhes reserva ainda mais com ódio.
Casos de violência masculina são tão abundantes e corriqueiros que tratados como normalidade e apenas casos de barbárie extrema, como a chacina de Campinas ganham destaque como algo “atípico”, desconsiderando-se o número de feminicídios diários. Poucos dias depois, 3 de Janeiro de 2017, em Brasília, outros dois casos somaram-se à pilha de certidões de óbito que rotineiramente é relegada ao silêncio. Juliana Jakubowski Kolassa, de 33 anos, assassinada com 5 tiros pelo marido na madrugada desta terça-feira, quando voltava do trabalho; e Maria de Fátima da Silva Araújo, de 41 anos, assassinada a facadas. Hoje o Brasil tem uma das maiores taxas de homicídios contra a mulher do mundo. Logo, não é exagero falar em uma guerra declarada contra as mulheres, pelos homens – e são homens normais os que assediam, agridem, violentam, matam. Não são anomalias, mas a norma, o homem de bem.
“Crime passional” e Feminicídio
O feminicídio foi tipificado no Código Penal Brasileiro em 2015, pela lei 13.104, sancionada pela presidenta Dilma Rousseff. Segundo a definição da agora extinta Secretaria de Políticas para Mulheres, o feminicídio é “o assassinato de mulheres por razões da condição de sexo feminino, quando o crime envolve violência doméstica e familiar, ou menosprezo e discriminação contra a condição de mulher.” O crime foi, assim, adicionado ao rol dos crimes hediondos, tal qual o estupro, genocídio, latrocínio, entre outros. A pena prevista para o homicídio qualificado é de reclusão de 12 a 30 anos. Os parâmetros que definem a violência doméstica, por sua vez, estão estabelecidos pela Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340) desde 2006: configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, no âmbito da unidade doméstica, da família ou em qualquer relação íntima de afeto, independentemente de orientação sexual.
Mesmo com todos esses indícios e com a definição tipificada na lei, os casos continuam sendo tratados como crime passional pela imprensa – como se houvesse desculpa para matar “por amor” – e como homicídio simples ou não tipificado pela polícia. O caso de Campinas foi enquadrado como homicídio qualificado (por envolver diversas vítimas) seguido de suicídio; o do Rio Grande do Sul também foi enquadrado como homicídio seguido de suicídio. O crime de feminicídio, mesmo previsto da lei, continua a ser invisível, assim como suas vítimas.
Qual é o gênero que mata e por que não o nomeamos?
Quando nomeamos as coisas de forma errônea, imprecisa e inespecífica, corremos o risco de não compreende-las verdadeiramente. Chamar a chacina que aconteceu em Campinas de Violência de Gênero mascara quem a cometeu, mascara qual o gênero que vem nos matando há milênios e que, em Campinas, invade uma festa e atira em 12 pessoas, que, em Varginha, ateia fogo à ex-esposa. A violência masculina é responsável pela morte de 13 mulheres por dia somente no Brasil, segundo o Dossiê da Violência contra as Mulheres, divulgado pela Agência Patrícia Galvão.
No Brasil ocorre ao menos um espancamento a cada 24 segundos (Fonte: Fundação Perseu Abramo, 2010) e um estupro a cada 11 minutos (Fonte: 9º Anuário de Segurança Pública, 2015). Segundo um balanço do “Ligue 180”, Central de Atendimento à Mulher, de janeiro a junho de 2015, foram 179 relatos de agressão por dia. Já o Mapa da Violência de 2012 revelou que em 10 anos, 43 mil mulheres foram assassinadas, sendo 41% dentro de suas próprias casas. Já o Mapa da Violência de 2015 revela que o número de feminicídios dentro de casas cresceu para 55,3% e que 33,2% deles foram cometidos por parceiros ou ex-parceiros das vítimas.
Marilyn French pontua no livro A Guerra contra as Mulheres que “Todos os patriarquistas exaltam o lar e a família como sagrados, demandando que permaneçam invioláveis aos olhos indagadores. Homens querem privacidade para suas violações de mulheres. Forçadas a dependerem deles, educadas para acreditar que eles se preocupam com elas, descobrem que os próprios homens em quem implicitamente confiam e de quem dependem as traem, brutalizam e violentam. Na infância, todas aprendem que as mulheres, como sexo, são presas dos homens.”
Shulamith Firestone também contribui para o debate quando diz em A Dialética do Sexo que “A família patriarcal é apenas a mais recente de uma rede de organizações sociais “primárias”, todas as quais definiram a mulher como uma espécie diferente, devido a sua capacidade única de parir. O termo família foi pela primeira vez empregado pelos romanos, para designar uma unidade social onde o cabeça governava as mulheres, as crianças e os escravos. Pela lei romana, ele era investido de direitos de vida e morte sobre todos os outros. Famulus significa escravo doméstico, e família é o número total de escravos pertencentes a um homem.”
O conceito de família é uma das bases da sociedade patriarcal, onde ele engessa posições que devem ser ocupadas de acordo com o gênero. Mulheres são socializadas na maternidade compulsória, o que as empurra para a heterossexualidade compulsória e as coloca diante de um único futuro: constituir uma família, ter filhos e ser feliz como mãe e esposa. Nessas estruturas, a grande maioria das mulheres é condicionada a abrir mão dos estudos e dos empregos formais para que se dedique àquela maravilhosa felicidade que a vida lhe reservou. Esta realidade, mais tarde, se mostra na violência patrimonial, uma das cinco violências que constam na Lei Maria da Penha – Lei nº 11.340, de 07 de agosto de 2006.
Dito isso, é importante mencionar um levantamento do Departamento de Justiça dos EUA que revelou que as mulheres são responsáveis por apenas 10% dos homicídios, sendo apenas 2,2% contra outras mulheres. Os dados mostram que dentre as mulheres que cometem esse crime, a grande maioria age em legítima defesa e por isso os índices de mortes de mulheres contra mulheres são tão baixos, uma vez que é dos ataques dos homens que elas precisam se defender, não de outras mulheres. Já os homens são responsáveis por 90% dos assassinatos, sendo 21% contra mulheres.
Feminicídio e Racismo
Enquanto o índice de feminicídio diminuiu 9,8% entre as mulheres brancas em 10 anos, o de mulheres negras teve o incremento expressivo de 54,2%. Em 2003 foram 1.864 feminicídios de mulheres negras, 2.875, em 2013. Os dados são do Mapa da Violência 2015, elaborado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso). Jurema Werneck, integrante da ONG Criola, médica e Doutora em Comunicação e Cultura pontua “Na morte a gente se iguala, mulher negra morta e mulher branca são iguaizinhas. Mas os processos são diferentes, o tamanho do desvalor que uma mulher negra experimenta, nenhuma mulher branca experimenta. As políticas não foram feitas de acordo com as nossas necessidades, os processos de prevenção e reparação não são iguais. Então, tirando o fato de estarmos iguais quando somos um corpo morto, em todo o resto é diferente.”
Segundo o balanço do Ligue 180 – Central de Atendimento à Mulher de 2015, 58,86% das mulheres vítimas de violência doméstica são negras. O Caderno de Saúde Pública da Fiocruz de 2014 revela que mulheres negras são 65,9 % das vítimas de violência obstétrica e chegam a 53,6 das vítimas de mortalidade materna, segundo o Ministério da Saúde (2015). Mulheres negras têm duas vezes mais chances de serem assassinadas do que mulheres brancas e chegam a representar 68,8% das mulheres mortas por agressão, segundo o Ministério da Justiça (2015). Dados do Dossiê da Mulher RJ (isp/2015) também mostram que 56,8% das vítimas de estupros registrados no estado do Rio de Janeiro são mulheres negras.
A carta
Sidnei Ramos de Araújo escreveu 16 vezes a palavra “vadia” na carta feminicida que deixou endereçada ao filho. É nítido o ódio não só à ex-esposa, mas um ódio político a um movimento que luta pela libertação e autonomia das mulheres sobre suas vidas e corpos. Ele mostra como premeditou o crime, qual sua intenção e motivação. Sidnei se coloca na posição de vítima até mesmo quando explica que irá matar todas as mulheres presentes na confraternização de ano novo. Como se fosse justificativa, ele se serve do argumento de que o feminismo destrói famílias, mas o feminismo nunca entrou numa casa e matou 12 pessoas, sendo 9 delas mulheres, por serem mulheres.
O ocorrido é a dura prova de que o ódio às mulheres extrapola a esfera das piadas machistas, da instituição familiar, das relações de trabalho, da dinâmica social. Com a ajuda da internet e seus nada neutros algoritmos, a disseminação gratuita de ódio e o ocultamento e desinformação a respeito da luta das mulheres transcendem o discurso e assassinam aquelas que lutam pelo direito de controlarem suas vidas e corpos. Casos como o de Débora Soriano, militante feminista que foi estuprada e morta com um taco de basebol, e de Rayzza Ribeiro, também militante feminista queimada viva no Rio de Janeiro, demonstram como o ódio à luta das mulheres vem se tornando “comum” no nosso dia a dia, com consequências concretas. Que o digam as 9 mulheres assassinadas em Campinas, Isamara Filier, Liliane Ferreira Donato, Alessandra Ferreira de Freitas, Antônia Dalva Ferreira de Freitas, Abadia das Graças Ferreira, Ana Luiza Ferreira, Larissa Ferreira de Almeida, Luiza Maia Ferreira e Carolina de Freitas Batista, mortas cruelmente, uma a uma, para que pudessem, antes da morte, sofrer com a morte das entes queridas.
O fato de a carta ter sido deixada para o filho expressa o desejo de Sidnei de que as suas ideias misóginas, junto com o seu comportamento, fossem herdadas e continuadas – matar o filho não estava nos planos e, segundo uma testemunha, ele só o fez porque este “viu papai matar mamãe”. A carta termina ainda com um desejo de que mais homens se inspirem em suas palavras e matem suas esposas ou ex-esposas. Não coincidentemente, muitos casos de feminicídios cruéis aconteceram nos primeiros dias do ano, como os casos de Renata Rodrigues Aureliano, Juliana Jakubowski Kolassa, Maria de Fátima da Silva Araújo, Francisca Muniz, Brenda Pereira, Ienata Pedreira Rios, Ana Caroline, Gabrielly Dias de Macedo, Ana Cristina de Jesus e Verônica Doroteia de Oliveira. Um caso que comprova que o crime de Sidnei deixou rastros, foi a prisão de Rodrigo Nomura Guerreiro, que foi detido antes que concretizasse o que postou nas redes sociais – que iria matar a ex-esposa assim como Sidnei foi.
Os Jornalistas Livres reafirmam seu compromisso com a defesa da vida das mulheres, pela autonomia de seus corpos e vida, e por uma sociedade sem machismo e misoginia. Daremos visibilidade à luta das mulheres e não deixaremos que os casos de feminicídio sejam esquecidos. Pelas 9 mulheres mortas na chacina de Campinas, pelas 11 vítimas de feminicídio listadas acima e por todas nós. Nas ruas ou nas redes, os Jornalistas Livres endossam o grito numa só voz pelo “Nenhuma a Menos”.
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