Texto de Gabriel Rocha Gaspar*, especial para os Jornalistas Livres
Vinte de outubro de 2011. As forças da Otan, lideradas por uma esquadra de Rafales franceses, atacam a cidade líbia de Sirte, onde se esconde Muammar Khadaffi, panafricanista convertido em ditador sanguinário. Khadaffi tenta fugir em um comboio de carros mas, mal cruza a fronteira da cidade, é interceptado por rebeldes que, auxiliados pela Otan, formariam a base de um tal de governo de transição que hoje continua lá, mas não é transição nem governo.
Durante os próximos quatro dias, o corpo destroçado de Khadaffi apodreceria em praça pública. Autoridades internacionais, do presidente francês à então secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton, festejariam o fim do “reinado de terror”. A notícia parecia boa para a comunidade internacional: Khadaffi havia sido morto em fogo cruzado. Não soava estranho que seu corpo fosse vilipendiado, considerado o sofrimento que o autocrata de 125 bilhões de dólares (era essa sua fortuna estimada) causara a sua própria população.
Se três anos antes, Nicolas Sarkozy fechava as margens do Sena pra que Khadaffi pudesse passear tranquilo pelas águas de Paris, desde que ficou decidida a desastrada intervenção internacional na Líbia, a grande mídia se empenhou na construção de um monstro. Surgiram relatos de câmaras de tortura para opositores políticos em porões de Benghazi; todo mundo tinha a certeza de que o ditador havia estabelecido o estupro de crianças como arma política.
Matérias de outrora, como as que discorriam longamente sobre a habilidade de Khadaffi em usar programas sociais para converter o lucro de suas enormes reservas petrolíferas no maior Índice de Desenvolvimento Humano do continente africano, simplesmente desapareceram. Sumiram também os elogios ao fato raro de que, sob a ditadura, negros migrantes da África subsaariana encontravam vida digna em solo líbio. As contradições, que são o tecido de qualquer relação social humana, deixaram de interessar ao consórcio político-corporativo-midiático internacional. Emergiu uma narrativa uníssona, cujo objetivo – também uníssono – era destronar o caudilho, custasse o que custasse.
E uma guerra civil de poucos meses, agora concluída com o cadáver de Khadaffi, parecia um baixo preço a se pagar. O problema é que, na era digital, as narrativas simplistas têm cada vez menos fôlego. Celulares do que a imprensa já chamava de “freedom fighters” – o conglomerado de jihadistas que paradoxalmente instauraria a democracia na Líbia – gravaram os últimos momentos do ex-líder “populista”. Primeiro, morreu a história do fogo cruzado. Khadaffi foi retirado de seu comboio com vida e executado com uma bala na cabeça.
Detalhes de novos vídeos deixavam a história mais macabra. Antes de morrer, ele foi linchado. Coberto de sangue, arrastado pela paisagem desértica da periferia de Sirte, ele recebe uma chuva de socos, pontapés e empurrões. E o mais perturbador ainda estava por vir: Khadaffi foi estuprado seguidas vezes com uma faca de combate BKT, de fabricação americana. Tudo filmado por regozijantes “defensores da democracia”. A ONU pediu uma investigação sobre as circunstâncias da morte de Khadaffi, conforme a comunidade internacional começava a se questionar sobre a real possibilidade de uma transição democrática na Líbia.
O questionamento, como sempre, se mostrou mais frutífero do que a certeza de que a ditadura tinha de cair, fosse como fosse. Cinco anos depois e cada vez mais afundado na guerra civil, o não-Estado líbio é porto de partida da mortal migração mediterrânea, além de terreno fértil para a Al-Qaeda do Magreb Islâmico e seu filhote fascista, o autoproclamado Estado Islâmico. A economia não existe, a política morreu.
Qualquer comparação da tragédia líbia com a situação do Brasil é absurda, certo? Menos para a revista Veja que, na capa de sua edição mais recente, acaba de relacionar Muammar Khadaffi e Luís Inácio Lula da Silva. O cientista político Reginaldo Nasser foi o primeiro a atentar para a gritante semelhança entre a imagem frontal de Veja, que mostra em preto e vermelho o derretimento da cabeça decapitada de Lula, à de uma edição de Outubro de 2011 do hebdomadário estadunidense Newsweek, dedicada à morte de Khadaffi.
Aos fatos: Khadaffi detinha um patrimônio de US$ 125 bilhões; Lula é acusado, sem provas, de ser o dono de um apartamento de R$ 3 milhões no Guarujá que, ironicamente, poderia ser pago com meia dúzia de suas palestras. Khadaffi chegou ao poder via golpe de Estado e manteve o governo a mão de ferro por mais de quatro décadas; Lula disputou cinco eleições presidenciais, foi eleito duas vezes e, quando tinha a maior popularidade da história do cargo, se recusou a mudar a Constituição para poder permanecer à frente do país. Khadaffi foi transformado em réu pelo Tribunal Penal Internacional, acusado de crimes contra a humanidade; Lula foi eleito pela revista Time dos líderes mais influentes do ano de 2010 e deixou a presidência sob especulações de que posto assumiria na ONU.
Dito isso, de onde a Veja tirou a ideia esdrúxula dessa comparação? Seria esquisito especular sobre o perfil psicológico de um panfleto fascistoide, mas eu arriscaria dizer que a capa desta semana, além de uma dose cavalar de irresponsabilidade, tem um componente narcísico. Talvez a Veja esteja tão autocentrada em sua cruzada paranoico-persecutória, que começou a acreditar em seu próprio discurso uníssono: que Lula é um monstro sanguinário passível de, à imagem de Muammar Khadaffi, ocupar o banco dos réus no Tribunal Penal Internacional. Ou pior (eis a razão deste texto dedicar-se a assunto tão abjeto quanto a capa da Veja): de ser linchado, estuprado e executado em praça pública.
Essa pior hipótese parece mais passível de cruzar o espírito do Civitismo do que a de enviar Lula para Haia. O TPI, com todos os seus defeitos e impotências – a começar pelo fato de que os países que mais geram criminosos de guerra não ratificaram o tratado de Roma – ainda é um espaço de soberania do direito. Por ali, não se chega ao banco dos réus sem provas contundentes. Pois não foi a toa que a Veja publicou sua capa mais abertamente fascista na semana em que o Estado de Direito brasileiro deu seu segundo grande passo rumo ao abismo da arbitrariedade.
De maneira oportunista, a revista aproveitou que a força missionária da Lava-Jato decidiu se comportar como tribunal da Inquisição e substituir prova por convicção para defender linchamento no lugar de julgamento, vingança no lugar de justiça. Em outras palavras, Veja defende que o Brasil retroceda no processo civilizatório e se coloque, como sua musa inspiradora Líbia, na indigência da comunidade internacional. Se ainda houver no Judiciário brasileiro algum resquício de respeito pelo país e pela nossa posição aos olhos do mundo, esta apologia à tortura, ao estupro, ao linchamento e ao assassinato tem de ser sancionada com as mais altas penas previstas na lei. Impressa como está, a prova dispensa convicção.
*Gabriel é jornalista e mestre em literatura pela Sorbonne Nouvelle
ADVERTÊNCIA: JORNALISTAS LIVRES ADVERTEM QUE AS CENAS A SEGUIR SÃO REPUGNANTES. SÓ AS PUBLICA AQUI PARA QUE SE CONHEÇA A REAL DIMENSÃO DO CRIME DE VEJA
2 respostas
Correção : na época da morte de Kadhafi o presidente francês era Nicolas Sarkozy.
obrigada pela correção, Duarte!!!