Estávamos em São Paulo, no Bixiga, reduto do samba paulistano, berço da Vai-Vai. Mas, o dia era de Samba Chula, nascido nas plantações de cana-de-açúcar do Recôncavo Baiano. Foi uma festa! Uma festa de samba chula: música, dança, encontro, poesia. O samba chula, assim como outras vertentes de samba de roda, é melhor compreendido como um fazer musical que celebra a individualidade, mas principalmente, a relação de cada um com a comunidade.
Mesmo “perseguidas, infantilizadas e rejeitadas – as vozes, danças, gestualidades, mediante rituais e ritmos do tronco africano, se transformaram em patrimônio cultural”, revela Katharina Döring. O princípio social e comunitário do samba de roda é ressaltado por Small: “seu fazer musical, suas poesias e danças não dependiam nem de fontes escritas, nem da presença de especialistas e estavam assim abertas e disponíveis para a recreação infinita não somente para poucos, mas para todos”.
O samba chula é para se vivenciar, sentir e fazer parte do todo que brota da união das pessoas, entre si e com a música dançada, encenada e recitada. Dessa forma, o resultado é uma “recreação infinita” para todos. Nossa herança musical europeia não basta para compreender toda a dimensão do samba chula.
A Casa Mestre Ananias ficou repleta de saias rodadas e torsos. Não havia sambistas. Havia sambadores e sambadeiras de muitas idades. Alguns vieram do Recôncavo Baiano para fazer parte da festa e transmitir essa memória e presença cultural afro-americana. A maioria, contudo, vive e samba aqui mesmo em São Paulo.
A festa era para comemorar o lançamento de A Cartilha do Samba Chula. Um trabalho de fôlego composto por textos sobre esse ramo do samba de roda, histórias de seus mestres e mestras, fotos, letras de músicas e partituras, dois cds e vídeo. O livro permite uma viagem, uma imersão em um universo festivo de música social que muitos desconhecemos.
Vídeo e Edição: Iolanda Depizzol
A Chula nasceu na cana-de-açúcar
As duplas cantavam, durante os longos anos da escravidão, para trazer alegria para a lida árdua da cana. As vozes, sempre em “pareias”, fazem lembrar a música sertaneja. O ritmo lembra nosso samba contemporâneo. O resultado, contudo, é muito diferente de tudo que já ouvimos.
As histórias de vida dos mestres sambadores e mestras sambadeiras são sofridas, como as de grande parte do nosso povo. A roda de samba chula nos transporta para outro plano e transborda de alegria e axé, uma energia de vida e felicidade que beira um transe.
Os pandeiros, como o de Mestre Nelito, são mantidos na vertical e seus toques não lembram, nem de longe, os que estamos acostumados. Nas mãos de Dona Aurinda, uma faca e um prato esmaltado daqueles de fazenda, branco com a borda preta, tornam-se um reco-reco e, ás vezes, lembram as batidas de um tamborim. Cavaco, dois pedaços de madeira como tacos de assoalhos, a viola machete ou cavaquinho e o atabaque completam o conjunto de instrumentos. Mestre Minhoca nos ensina que a substituição da viola machete pelo cavaquinho faz mudar o clima da música e que há um movimento de retomada da viola, dificil de ser encontrada nas rodas de hoje.
No entanto, nos alerta Small que “a natureza e o significado fundamental de música não está nos objetos, nem mesmo nas obras/composições musicais, mas na ação, no que as pessoas fazem. É somente no ato de compreender o que as pessoas fazem, quando tomam parte num ato musical, que esperamos entender sua natureza e função que preenche na vida humana”.
Mestre Nelito e sua “pareia”, Seu Ivo, em duas vozes, “gritam” uma chula, um verso ou uma quadra, e repetem. A voz passa então para outra “pareia” cantar o relativo. Katharina Döring nos explica a dinâmica da roda:
Uma dupla de cantadores canta a chula e outra dupla e o coro das mulheres responde com relativo, sendo um verso menor que ‘relata’ ou ‘arremata’ a chula. Nessa hora, ninguém entra na roda para sambar, esperando os homens terminarem de cantar e começar a parte instrumental com solos de viola e percussão. A sambadeira entra no samba com passos miudinhos e um permanente rebolar sutil e controlado do quadril, chamado de ‘peneirar’ e percorre o semicírculo, até dar umbigada para outra sambadeira, que espera sua saída até finalizar a próxima chula cantada.
A Cartilha do Samba Chula
A Cartilha do Samba Chula foi concebida e coordenada por Katharina Döring que “queria aprofundar os mistérios da chula cantada, sua poesia, seus sotaques, sua melodia, as microtonalidades, entonações, metáforas. Trazer para as próximas gerações esses ensinamentos, os saberes originais dos/das mais velhos/as, dentro de um contexto orgânico, não acadêmico, na naturalidade e vivência do samba de roda, na “lógica” da tradição oral, na plasticidade e organicidade dessa pratica e vivência, sem maquiagem, sem folclorismo, na profundeza dos saberes e paixões desses sambadores”.
A Cartilha foi gerada a partir dos saberes de transmissão oral dos cantadores de chula e tocadores de viola, num processo de ensino-aprendizagem em oficinas realizados nas cidades de Salvador, Saubara, São Francisco do Conde, Terra Nova e Santo Amaro, durantes os meses de maio, junho e julho 2015. As atividades cênico-musicais foram registradas por meios áudio-visuais, divididas em três modalidades: a viola machete; a chula cantada com pandeiro; e o samba miudinho e prato-e-faca. O resultado do processo se materializa em dois CDs, um DVD e um caderno informativo, com a tiragem de dois mil exemplares, que traz ensinamentos, fotos, textos, depoimentos dos mestres e transcrições musicais.
O acervo de documentos de Frede Abreu
“O que a gente ganha [trabalhando com cultura popular] não é mensurável em dinheiro”, diz Elzinha de Abreu. Ela foi responsável por fotografias, design e editoração da Cartilha. Seu pai, Frede Abreu, considerado um dos maiores pesquisadores de capoeira, escreveu 8 livros, entre eles O Batuque – a luta braba, sobre a luta “batuque”, hoje extinta, que inspirou Mestre Bimba na criação da Capoeira Regional. Deixou um acervo de mais 50 mil documentos, ainda preservados em sua casa pela dificuldade de conseguir um espaço mais adequado.
Elzinha conta, ainda, que seu pai enveredou, por mais de 40 anos, pela pesquisa após descobrir que seu bisavô era capoeira ligado à polícia e algoz dos cabanos. “A capoeira é um universo tão difícil quanto qualquer outro”, conclui ela.
Casa Mestre Ananias
Por que o lançamento de A Cartilha do Samba Chula foi no grupo de capoeira Mestre Ananias? Mestre Rodrigo Minhoca se apressa em explicar que a Casa Mestre Ananias não é um grupo, muito menos “de capoeira”. O membros da Casa acreditam que “grupo” limita, restringe e impede a convivência com o diferente. E não é um movimento de capoeira, é um movimento de cultura popular, onde entram a capoeira, o samba chula, o caruru e outras tradições populares afro-brasileiras. Preferem referir-se à Casa como um movimento aberto aos capoeiras e a quem chegar. Assim nasceu, alí, o Movimento Garoa do Recôncavo São Paulo é Bahia Viva. “Nós não fazemos eventos, fazemos festas”, pontua Mestre Minhoca. Mestre Ananias, que formou esse movimento e é a força inspiradora de todos da Casa, será homenageado no dia 4 de dezembro. Vem mais festa por aí!
Notas
1 O texto Memórias Fractais do Samba de Roda: patrimônio cênico-musical em voz, gesto, som e movimento, de Katharina Döring (UNEB), está disponível em: http://www.redalyc.org/pdf/822/82242883015.pdf
Desde 2016, o PROCENA, festival de cultura que nasceu em Goiás com a leis de incentivo Fundo de Arte e Cultura de Goiás, tem promovido a discussão sobre acessibilidade e diversos outros assuntos que atravessam as realidades dos artistas, produtores e profissionais com vocação para assistência à pessoa com deficiência. Realizado de dois em dois anos, o evento que começou envolvendo a comunidade regional, em 2020 se expande para todo o Brasil, via redes sociais.
A pandemia, que tem feito os brasileiros tentarem uma adaptação de suas vidas, na medida do que é possibilitado, frente a um governo federal negacionista que tem priorizado pouco ou quase nada salvar a vida dos cidadãos, também tem feito com que os produtores dos festivais culturais adaptem a realidade dos festivais, que costumavam ser espaços físicos não só de cultura, mas também acolhimento, troca e discussões transformadoras da nossa realidade.
Mas como bem colocado pelo coordenador do evento sobre o novo formato do PROCENA, Thiago Santana, “a realização virtual impediu o contato físico, porém ampliou o alcance do evento, gerando discussões que vão além das fronteiras”. O desafio agora é democratizar o espaço das redes sociais, para que o acesso chegue a todos e todas
De 7 a 10 de outubro, o Youtube, Facebook e Instagram serão os palcos de apresentações de danças de Goiás, grupos de outras regiões do Brasil e um de Portugal, já que este ano a dança como uma linguagem que inclui é o tema do PROCENA. Para aprofundar nas discussões, a cada dia será apresentado um webnário com um temas que envolvem política, arte e acessibilidade. Então, já assina o canal do YouTube, segue no Facebook e Instagram para garantir que não vai se esquecer desta programão super necessário.
As discussões apontaram a dança como uma linguagem que inclui e oferece mais possibilidades de acessibilidade para artistas e também para espectadores com deficiência. “Esses debates nos fizeram decidir por começar esta nova proposta com a dança, suas contribuições para a produção cênica, seus processos formativos e composições estéticas da cena inclusiva e acessível”, justifica Thiago Santana, coordenador do evento.
O coordenador também destaca a importância das leis de incentivo e mecanismos de fomento incluírem exigências e orientações para uma produção inclusiva e acessível às produções artísticas, como por exemplo, do Fundo de Arte e Cultura de Goiás. Ele lembra, contudo, que isso é fruto das metas do Plano Nacional de Cultura, aprovado em 2010 pela então presidenta do Brasil, Dilma Rousseff, em diálogo com outros marcos legais como a Convenção da Pessoa com Deficiência e a Lei Brasileira da Inclusão. Instrumentos que, por sua vez, são resultados de debates e discussões da área, como esses que serão realizados nesta edição do Procena.
PROCENA 2020 – dança, acessibilidade e profissionalização para artistas com deficiência
Datas: 7 a 10 de outubro
Transmissão: Instagram, Facebook e YouTube do Evento.
O Homem-Caixa, fora de sua casa-caixa, continua internalizado, privado, caminhando pelas ruas vazias de uma cidade-caixa em quarentena gerada pela pandemia do Coronavírus. É mais fácil percebê-lo em tempos de isolamento social, mas não é de agora que somos caixas dentro de caixas: empilhados, segregados, rotulados.
A princípio, o Homem-Caixa, não desperdiça espaços vazios, pois a sua capacidade de empilhamento é alta e facilita a gentrificação; mas, a propriedade descartável de seu material é, a longo prazo, entrópica.
Para realizar pela primeira vez o truque em que o mágico serra uma mulher ao meio em 1921, Percy Thomas Tibbles, teve que descobrir antes, até que ponto uma pessoa era capaz de se contorcer dentro de uma caixa apertada.
Em 2020 estamos tendo que redescobrir essa capacidade, mas as caixas desta vez, são as classes sociais; as etnias; as escolhas políticas. Uma vez encaixados, vivemos a ilusão de que podemos nos separar um do outro simplesmente serrando a caixa ao meio; mas tudo só faz parte desse antigo jogo de esconder.
O Homem-Caixa é frágil, descartável e fácil de ser armazenado.
Minibio
Tiago Judas (São Paulo, SP, Brasil, 1978) é bacharel em Artes Plásticas pela Fundação Armando Álvares Penteado – FAAP (São Paulo, SP, Brasil, 2001) e possui licenciatura plena em Arte pelo Centro Universitário Belas Artes de São Paulo (São Paulo, SP, Brasil, 2009). Sua produção artística inclui desenhos, objetos e vídeos, além de histórias em quadrinhos. Desde 2000, Judas tem exposto em importantes instituições culturais brasileiras e também expôs trabalhos em países como Alemanha, Áustria, Espanha, EUA e Peru. Em 2007, Judas foi contemplado com o Prêmio Aquisição do 14º Salão da Bahia (Salvador, BA, Brasil).
Em seus trabalhos, Tiago Judas busca conciliar as artes plásticas e as histórias em quadrinhos, fazendo com que uma influencie a outra. Vale ressaltar ainda que, ao longo dos últimos anos, Judas também tem trabalhado como ilustrador autônomo para jornais, revistas e editoras de livros e atua também como educador, desde 2001 orientou oficinas de arte em centros culturais como no Sesc, Museu da Imagem e do Som, Paço das artes, Museu de Arte Moderna de São Paulo, Fábricas de Cultura, além de outros projetos.
O projeto Futuro do Presente, Presente do Futuro é um projeto dos Jornalistas Livres, a partir de uma ideia do artista e jornalista livre Sato do Brasil. Um espaço de ensaios fotográficos e imagéticos sobre esses tempos de pandemia, vividos sob o signo abissal de um governo inumanista onde começamos a vislumbrar um porvir desconhecido, isolado, estranho mas também louco e visionário. Nessa fresta de tempo, convidamos os criadores das imagens de nosso tempo, trazer seus ensaios, seus pensamentos de mundo, suas críticas, seus sonhos, sua visão da vida. Quem quiser participar, conversamos. Vamos nessa! Trazer um respiro nesse isolamento precário de abraços e encontros. Podem ser imagens revistas de um tempo de memória, documentação desses dias de novas relações, uma ideia do que teremos daqui pra frente. Uma fresta entre passado, futuro e presente.
Procissão. Refotografias do Círio de Nazaré – Bélem do Pará – Brasil – 2013.
Círio é quando agradecemos pelo passado e pedimos pelo futuro. É onde estamos todos presentes e ligados numa mesma vibração de luz e fé. Um rio de gente de todas as crenças e lugares, aglomerados e misturados. Esse ano não teremos o Círio nas ruas. Não estaremos juntos fisicamente, mas estaremos presentes em energia. Unidos pela fé no futuro, no presente e no passado.
Sequência de fotografias registradas na noite da trasladação e refotografadas em TV de tubo.
A trasladação é uma procissão noturna que acontece na semana do Círio de Nazaré em Belém do Pará, e antecede o evento principal que é realizado no domingo. Reúne mais de 1 milhão de pessoas em uma onda de agradecimentos e esperança.
O processo: ensaio original registrado na noite da trasladação. Essas fotografias então são projetadas em TV de tubo e refotografadas em longa exposição e movimento.
O projeto Futuro do Presente, Presente do Futuro é um projeto dos Jornalistas Livres, a partir de uma ideia do artista e jornalista livre Sato do Brasil. Um espaço de ensaios fotográficos e imagéticos sobre esses tempos de pandemia, vividos sob o signo abissal de um governo inumanista onde começamos a vislumbrar um porvir desconhecido, isolado, estranho mas também louco e visionário. Nessa fresta de tempo, convidamos os criadores das imagens de nosso tempo, trazer seus ensaios, seus pensamentos de mundo, suas críticas, seus sonhos, sua visão da vida. Quem quiser participar, conversamos. Vamos nessa! Trazer um respiro nesse isolamento precário de abraços e encontros. Podem ser imagens revistas de um tempo de memória, documentação desses dias de novas relações, uma ideia do que teremos daqui pra frente. Uma fresta entre passado, futuro e presente.