Um áudio da Chefa da Divisão de Educação Escolar Indígena, Gleide de Almeida Ribeiro, enviado em abril em um grupo pelo Whatsapp, colocou em pânico professores indígenas da rede estadual de ensino de Roraima.
“Eu quero a confirmação dos centros regionais! Escolas que não estiverem funcionando, que não começou e nem vai começar [a dar aulas presenciais], nós vamos suspender o pagamento dos professores! Eu preciso urgentemente dessa informação. Já foi autorizada a suspensão do pagamento dos professores da Serra da Lua – exceto aquelas escolas que estão funcionando. Por isso eu preciso urgentemente saber quais são as escolas que estão funcionando na Serra da Lua, ou então todas as escolas da Serra da Lua vão ser suspensos o pagamento”, disse a Chefa da Divisão do governo de Antônio Denaruim (sem partido).
Por Martha Raquel, do Brasil de Fato
Após o envio do áudio, Silvana*, professora seletivada, teve alguns dias descontados de seu salário por se recusar a ir até a casa dos alunos para entregar atividades. Por medo de retaliação, ela preferiu não se identificar, e detalhes como etnia, região e escola de atuação serão mantidos em sigilo.
Diferente do restante do país que cumpre, em algum nível, o estudo à distância, os alunos indígenas de Roraima não conseguem ter uma estrutura de internet e de aparelhos eletrônicos para assistir às aulas. Além dos alunos, alguns professores também não sabem como usar o aparelho para dar aulas. Os professores reclamam que não houve qualquer tipo de instrução para que as aulas fossem dadas à distância.
A reportagem do Brasil de Fato tentou entrar em contato com Gleide de Almeida Ribeiro, Chefa da Divisão de Educação Escolar Indígena, e Leila Perussolo, Secretária de Educação e Desporto do Estado de Roraima, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.
Silvana conta que assim como ela, a maioria dos professores indígenas são seletivados, ou seja, podem ter seu salário cortado a qualquer momento. “Primeiro pediram que fôssemos até a casa dos alunos entregar as atividades e lá teríamos que aguardar que eles as fizessem e nos devolvessem. Quando nos recusamos disseram que teríamos que atendê-los na escola. Hoje atendemos salas inteiras de uma vez”. Ela explica que o governo de Antônio Denaruim não enviou máscaras, álcool em gel, luvas ou qualquer outro equipamento de segurança para as escolas. “Atendemos 6 ou 7 alunos de uma vez sem nenhuma proteção”, explicou.
Desesperada com a situação, outra professora que também não quis se identificar desabafou: “Nós não temos como ficar sem salário, ainda mais durante uma pandemia. O que estão fazendo com a gente é desumano. Como eu vou chegar pros meus filhos e falar ‘ou a mamãe sai pra trabalhar e corre o risco de morrer pra poder trazer comida pra casa ou a gente vai passar fome’? Não tem como eu fazer isso”.
A primeira morte de professora
Professora indígena da etnia Macuxi, Bernita Miguel, de 52 anos, foi a primeira vítima do coronavírus dentro das escolas indígenas de Roraima. Bernita ensinava a língua Macuxi na Escola Estadual Indígena Artur Pinto na comunidade Nova Esperança, na região de São Marcos, no município de Pacaraima.

Professora Macuxi Bernita Miguel, primeira professora vítima de coronavírus em Roraima / (Reprodução / Facebook)
Enock Taurepang, coordenador-geral do Conselho Indígena de Roraima (CIR), explica que o governo estadual não tem se importado com a saúde indígena. “Os professores indígenas estão entre a cruz e a espada. O governo joga essa proposta de 15 ou 20 dias de repasse de atividade pros alunos, mas aulas estão acontecendo e isso nos preocupa mesmo que seja de 15 em 15 dias”, explica. “Ainda tem profissionais indígenas que se reúnem dentro do ambiente escolar para fazer o planejamento e isso é uma preocupação muito grande”, completou.
O coordenador do CIR explica que não é possível prever quem está contaminado ou não. “Já temos 8 perdas de professores para essa doença e não queremos ter mais vidas levadas por essa doença. Esse método proposto para os professores expõe o professor, o aluno, o pai do aluno e consequentemente toda a comunidade. Nós temos a cultura de visitar nossos parentes, ir nas casas dos parentes de manhã ou no finalzinho da tarde pra conversar, pra repassar informação, pra combinar o trabalho do dia seguinte. E tudo isso propicia que o vírus se espalhe em toda a comunidade”.
O coronavírus passa de cada pessoa contaminada para três a cinco pessoas. O que significa que, sem nenhuma medida de contenção, o número de casos tem potencial de dobrar, em média, a cada quatro dias. Em ambientes fechados o contágio é muito maior, sobretudo se se faz uso de ar condicionado, onde a troca de ar é aquém da ideal. O contágio é rápido uma vez que há uma faixa grande de pessoas que são pré-sintomáticas e durante essa fase seguem transmitindo mesmo antes de apresentar os sintomas.
“Nesse modelo de continuar com os atendimentos presenciais, todos ficam expostos. Não importa se é um, dois ou três minutos, não importa o tempo. Essa doença se espalha de uma maneira tão rápida… basta você ter um pequeno contato e aí lá se vai o vírus causar mais mortes. Esse modelo não é apropriado para nós, não é!”, explicou Enock.
Segundo o Comitê Nacional pela Vida e Memória Indígena da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), há hoje 821 casos de indígenas confirmados com covid-19 e 47 óbitos em Roraima. No Brasil, o número passa para 14.793 infectados e 501 mortes, sendo 131 povos atingidos. Os estados com maior número de indígenas infectados pelo vírus são Amazonas, Para e Maranhão. Os principais povos atingidos pela doença foram Kokama (60 óbitos), Xavante (33 óbitos) e Guajajara (30 óbitos).
Rotina em sala de aula
Silvana explica que as aulas acontecem por horário determinado, exemplo: alunos do quinto ano das 09h às 10h; do sexto ano das 10h às 11h; e assim por diante. As salas de aula continuam iguais, sem afastamento de carteiras ou distanciamento social. Os estudantes formam uma fila e vão, um a um, tirar as dúvidas. Geralmente o professor fica sentado e o aluno em pé ao lado. Ela conta que nem todos os alunos têm máscara, e que poucas escolas disponibilizam álcool em gel. Ela, que tem apenas licenciatura para dar aulas para alunos do ensino fundamental, há alguns anos assumiu, a pedido do governo estadual de Roraima, matérias como sociologia, biologia e espanhol. Silvana tem, em média, 120 alunos.
Enock explica que, ainda que o governo tenha enviado alguns vidros de álcool, eles não são suficientes. “Não é uma realidade para o professor indígena pensar ‘ah, agora eu posso trabalhar e fazer as minhas atividades com o mínimo de segurança’, não é! Mandar dois ou três vidros de álcool em gel para uma escola que tem 40 ou 50 professores é inviável, é inadmissível”.
Outras formas de lidar com a situação
Para o CIR, há outras formas de manter o emprego dos professores durante a pandemia. “O professor poderia estar produzindo materiais pedagógicos específicos e diferenciados para as escolas indígenas nesse período de um ou dois meses. O professor ficaria liberado para fazer seu próprio material pedagógico e depois que tudo isso passasse, ficaria mais fácil de ele chegar com esse material, apresentar e aplicar para os seus alunos. Ele só iria aplicar o que ele já tinha criado nesse período que ele passou sem dar aula. Então, de uma forma ou outra, o professor não pararia suas atividades como profissional”, explicou Enock.
Para ele, o governo não está escutando as demandas e as sugestões dos professores. “Quando essa ordem vem de cima, o profissional indígena se sente na obrigação de executar aquilo que tá se pedindo mesmo que a sua vida esteja em risco. Se eu paro de executar minha atividade como professor por causa de uma pandemia, o governo aponta o dedo e diz que vai tirar o meu salário e eu tenho muita conta pra pagar. Tenho uma família pra alimentar, e se eu parar, consequentemente, eu vou perder tudo isso; e daí fico na obrigação de executar o que o governo tá pedindo mesmo colocando minha vida em risco”, explicou.
Professores vítimas do Covid-19
Assim como Bernita, outros sete professores faleceram por conta da doença. Elizabeth Ribeiro, da etnia Wapichana, tinha 37 anos e dava aulas na comunidade Canauanim, no município do Cantá. Já Fausto Silva Mandulão, de 58 anos, era professor há 41 anos. Liderança indígena, ele lecionava na Escola Estadual Indígena Professor Ednilson Lima Cavalcante, na comunidade Tabalascada, também em Cantá. Ambos faleceram no mesmo dia, 03 de junho, vítimas da doença.
Poucos dias depois o professor indígena da etnia Macuxi, Luciano Peres, de 68 anos, também faleceu vítima da doença. Formado em pedagogia e matemática, lecionou no Centro Indígena de Formação e Cultura Raposa Serra do Sol. Ele também atuou como gestor pedagógico na escola estadual Tuxaua Silvestre Messias e foi secretário na prefeitura de Pacaraima.
Alvino Andrade da Silva, da etnia Macuxi, também foi vítima da doença uma semana mais tarde. Nascido na Comunidade Indígena Boqueirão/Região do Tabaio, município de Alto Alegre, atuou como assessor técnico da Associação dos Povos Indígenas do Estado de Roraima (APIRR), entre 2005-2011. Dulcirene Freitas de Lima, 47 anos, da etnia Taurepang, da Comunidade Canauanin; Irinel Melquior, da etnia macuxi, da Comunidade Ticoça; e Maika Ferreira Melo, da etnia Macuxi, da Comunidade Sucuba, também morreram vítimas do vírus.
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Professora Taurepang Dulcirene Freitas de Lima (reprodução Facebook)
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Professora Macuxi Bernita Miguel (reprodução Facebook)2
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Professora Macuxi Maika Ferreira Melo (reprodução Facebook)
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Professor Macuxi Irinel Melquior (reprodução Facebook)
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Professor Macuxi Fausto Mandulão(reprodução Facebook)
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luciano peres ReproduçãoInstagramConselho Indígena de Roraima
Como o vírus têm chegado às comunidades?
Segundo a APIB, em muitos casos o vírus tem chegado pelo próprio governo federal, como no caso da região do Alto Solimões e no Vale do Javari onde a covid-19 foi levada por pessoas da equipe da SESAI que estavam contaminadas. No Parque Tumucumaque (Pará e Amapá), o vírus chegou com o Exército. Em regiões do Sul e Centro-Oeste, o agronegócio tem sido um dos principais vetores da disseminação da doença entre povos indígenas. O garimpo ilegal e outras ações criminosas que invadem as terras indígenas têm levado a doença para territórios em Roraima e Pará. A exposição ao vírus na tentativa de acessar o auxílio emergencial do governo também tem sido uma das formas de chegada nas aldeias.
Todas as vidas indígenas importam
Segundo o CIR, há mais de mil professores seletivados no estado de Roraima. “Independente da quantidade, se existissem dois professores seletivados, a gente ia lutar pela vidas desses dois. Se existisse um professor concursado indígena, a gente ia lutar pela vida desse professor concursado indígena. Todas as vidas importam! São as pessoas que estão dando a vida e o sangue todos os dias dentro das escolas indígenas pra fazer a educação acontecer, pra fazer com que o aluno jovem ou a criança possa ter o entendimento maior do mundo em que a gente tá vivendo. Então essas pessoas importam e são muito preciosas pra comunidade”. Ele explica que tanto os professores mais jovens, quanto os professores mais velhos têm um grau de conhecimento imenso e que ambos são vidas essenciais nas comunidades.
Tratamentos tradicionais contra o vírus
Para o CIR o número de professores contaminados pode ser muito grande, levando em conta os que estão recebendo tratamento dentro das comunidades. Há contaminados que estão em isolamento e seguindo tratamento com medicamentos farmacêuticos e tradicionais.
Silvana voltou da comunidade em que dá aulas com sintomas de covid-19. Depois de 17 dias conseguiu realizar o exame, que deu negativo, e acredita que o vírus não foi encontrado em seu corpo porque tomou algumas garrafadas – um medicamento tradicional – por muitos dias seguidos.
As garrafadas podem ser produzidas de diversas formas. Silvana se tratou com a Garrafada de Quina Quina (a casca da árvore com água) e com a Garrafada de Limão e Laranja (são batidos no liquidificador dois limões com casca e sem sementes e uma laranja com casca, se adiciona água e bebe-se 3 vezes ao dia).
A nossa bandeira é a vida!
“O CIR tem a obrigação, e a gente faz com gosto, de defender o direito do parente, defender o direito do profissional indígena, defender o direito do pai, da mãe, do filho, do neto, do indígena em geral. Quantas vezes forem necessárias, o CIR vai se manifestar e vai dizer não à morte, não ao genocídio do povo indígena! Não! Basta! A gente quer viver! A gente quer ver o parente feliz! A gente quer ver o parente com saúde! A gente quer ver o parente autônomo, de todas as formas! Essa é a nossa bandeira, a vida, o bem-viver das comunidades”, finalizou Enock.
*Nome fictício
Edição: Mauro Ramos
Veja também: O racismo de Bolsonaro contra populações indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais
Joana tischer de Andrade
25/03/20 at 9:07
E agora em quem acreditar, se ele tem acesso ao abin então porque ele fez o pronunciamento ontem 😢😷
Wesley
25/03/20 at 11:49
Me chamo Wesley Douglas, trabalho e resido com idosos e hipertensos, acho muito válido a ABIN ter feito( se não for fake) está projeção, contudo, pra um melhor entendimento da realidade, em todas as projeções, deveria haver mais uns dados que acho relevante para entendimento do público em massa, a taxa de mortalidade que existia antes do corvid-19, e a taxa de população existente ( acrescida da natalidade normalmente existente/projetada), aí sim iríamos fazer uma verificação do cenário com uma maior realidade. Não basta criticar, temos que apontar possibilidades de saída. Não podemos simplesmente jogar a toalha e esperar que a população em massa não reaja de acordo com a necessidade básica que ela teve, tem e terá.
Margarita
25/03/20 at 12:58
Tomara o saldo positivo desta tragédia seja o impeachment dese sujeito
Ominagy
25/03/20 at 13:20
Este presidente tem mostrado um grande desvio de lucidez e sensatez
Só um louco pode fazer tal comparação e tal fala ele e muito infeliz nas falas
Ele não nasceu pra ser liderança nem do carrinho de hot dog, muito menos para chefe da República
Fora nele.
Noêmia Costa Vianna
25/03/20 at 13:53
Eu julgo esse documento com um grau elevado de credibilidade.
irresponsavel
25/03/20 at 17:26
meus deus……eu simplesmente nao tenho palavras…..
desgoverno
25/03/20 at 17:27
irresponsavel….
Anderson
25/03/20 at 19:00
Olá , boa noite a todos, venho com uma Única visão, de ser interessante sim, ter um controle do índice de mortes no Brasil, antes e depois, como o nosso colega Wesley lá em cima recitou , assim podemos encarar com mais rigidez esse Vírus, e assim estar podendo fazer nossa parte, sem culpa !!! Tenho só um objetivo de salvar Vidas o quanto poder.
FERNANDO DOS SANTOS RAULINO
25/03/20 at 21:52
Nesta página procure e abra o arquivo PDF (Abin-Documento-23-Março) no link da reportagem para acessar a íntegra. No topo e no rodapé das folhas da íntegra contém uma marcação retangular na cor vermelha, com caracteres da mesma cor com a classificação SIGILOSO. Busque na internet a Lei nº12527 de 2011, em seu Art. 24, e verifique quais são os graus de classificação de informações. Vc constatará que não existe informação classificada como S I G I L O S O em órgãos do serviço público.
Laura Capriglione
26/03/20 at 0:51
Prezado Raulino,
Reproduzimos trecho de reportagem de “O Estado de S.Paulo”, de 10 de abril de 2013, que explica o por que do uso da palavra “sigiloso” em muitos documentos da Abin (e há muito tempo), em vez das classificações previstas na Lei 12.527/2011, quais sejam: “ultra-secreto”, “secreto” e “reservado”. Esperamos que isso o esclareça:
Documento recebe selo para driblar lei
O documento (…) leva o carimbo “sigiloso”, o que exclui o texto da Lei de Acesso à Informação. A lei estabeleceu que documentos só podem ser classificados como “ultrassecretos”, “secretos” ou “reservados”, e estabelece os prazos de 15, 10 e cinco anos, respectivamente, para sua liberação. Classificado como “sigiloso”, o ofício deixa de se enquadrar aos prazos e fica imune à lei. Assim, se um cidadão pedir acesso a documentos da Abin por meio das classificações oficiais, esse ofício nunca vai aparecer.
Ananda
10/04/20 at 18:18
Bom….. Acho que o presidente não é esse monstro que todos estão falando pq se nós ficarmos só em casa não vamos conseguir alimentar nossas famílias
Olhe só, por exemplo seus pais tem uma ótima condição e ganham dinheiro todo mês mas os pais do teu amigo por exemplo não ganham nem um salário mínimo e vive do trabalho pesado .
Vc acha que a pessoa que ganha dinheiro apenas se for para a rua trabalhar vai ficar com fome durante a epidemia toda ? Reflita meu amigo
Antonio Garcia Leal
01/08/20 at 21:49
100 mil vidas que se foram e O GENOCIDA está solto ….