por Helio Carlos Mello, especial para os Jornalistas Livres
Numa tarde de sexta-feira piso no negro chão da rua na cidade grande. Uma estranha sensação me remete à uma aldeia xinguana em dia de Yamuricumã*. Aqui na avenida as mulheres também entoam cantos de cunhã**, vozes de mulher, como em aldeia. Aqui e agora são elas, é música de regra.
Penso logo nos desatinos que aqui me conduzem e trazem as mulheres pra rua em inúmero número. A palavra de ordem é Fora Cunha, um imbecil do gênero masculino, que não me representa, mas é homem, e como no mito de aldeia, onde o índio matou o jacaré que namorava as mulheres em beira de rio, aqui me resigno e devo me portar sóbrio e pronto a apanhar delas.
Somos um país de presidenta, cineasta e geneticista abrido caminhos. O vermelho proibido na avenida em outros dias, aqui ressurge hoje em pontos de útero, trompas e tambores. É música, é dança é protesto.
Importante aqui citar Lia Zanotta Machado (1):
“-Antes do feminismo dos anos setenta, a diferença de gênero era a diferença de sexo posta no biológico; era a diferença percebida como inferioridade do sexo feminino ou como complementaridade dos sexos na divisão sexual do trabalho.
-Nos últimos anos, o direito à diversidade cultural se constituiu em discurso globalizado e politizado. Na arena dos acordos internacionais, o direito à diversidade cultural tem se constituído em moeda de troca para arrefecer a intensificação das reivindicações de direitos individuais à igualdade de gênero e acesso a direitos sexuais, sem que, no entanto, tenham se intensificado os direitos coletivos ou comunitários dos povos indígenas. A diversidade cultural tem sido reivindicada especialmente por estados nações onde os interditos da divisão sexual e dos lugares das mulheres são postos não somente como regulados pelos costumes tradicionais e orais, mas sim por leis seculares e códigos religiosos.
-O conceito de gênero é entendido como tornando-se ou podendo tornar-se em outra forma, não mais identidades, mas identificações, propondo uma ruptura das dicotomias como a heterossexualidade e a homossexualidade, masculinidade e feminilidade”.
Não quero ser o poeta de um mundo caduco ou negociarei desigualdades. Nem Drummond o foi ou fez, e como Simone de Beauvoir (2) renascida em solo secundarista me pergunto feminino
“quem somos nós? Sem marido, sem filho, sem lar, sem nenhuma superfície social e vinte e seis anos: nessa idade, tem-se vontade de pensar um pouco no mundo”.
Na avenida encontro um país que pulsa na ressignificação cultural e avança em antigas questões de direitos e dominação patriarcal e corta o machismo de cena. Em canto e cantos há todas as cores do mundo, e vermelho é regra e marco. Num mundo possível, livre de opressão, reinventado , onde homem no resguardo e mulher dona de si avançam de mãos dadas.
Na Avenida, como diante de rio, me sinto em fluxo.
Fora Cunha. Somos Cunhã.
*Yamurucumã : rito de Yamurikumã (na terminologia kamaiurá, mais difundida na região), realizado na estação seca, no qual as mulheres atuam com armas, movimentos tipicamente masculinos e ornamentos de penas e chocalhos nos tornozelos, que normalmente são usados por homens; lutam, inclusive, ohuka-huka.
http://pib.socioambiental.org/pt/povo/xingu/1550
** Cunhã: mulher, mulher jovem, mulher bonita
(1) Professora Titular de Antropologia da Universidade de Brasília.
(2) http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332014000100013&lng=pt&nrm=iso&tlng=en
(2) A Força Da Idade — Simone de Beauvoir — 1960