Terra, educação e feminismo

Uma escola do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra) se constrói dentro de um contexto que expressa um projeto, então não há como a escola não carregar valores e objetivos dessa luta no seu trabalho de formação com os estudantes.  A  construção da escola, desde o início do Movimento, pretende levar o compromisso de formar sujeitos que possam dar continuidade a luta.

Juliana Cristina de Mello, de 21 anos, é a jovem representante de seu estado, Paraná, no coletivo nacional de Juventude do MST. Estudante da Educação do Campo na UFFS (Universidade Federal da Fronteira Sul) vê na educação a forma de expressar seu comprometimento com a luta e seu amor pelas pessoas. Confira a entrevista completa:

-Juliana, em primeiro lugar gostaria de te conhecer melhor. Saber sobre a sua luta, como entrou para o MST, a luta de seus pais.

J- Eu sou acampada há três anos, antes eu morava no assentamento com minha família. Eu entrei no movimento com 14 anos participando dos processos de auto-organização da escola, daí desde o Coletivo de Juventude fui me inserindo cada vez mais na organização do MST no assentamento, na região… A minha família vive no assentamento desde 2004, mas não foi beneficiária da R.A. (reforma agrária), isso veio depois. O assentamento existe desde 1996, e se chama Ireno Alves dos Santos (em Rio Bonito do Iguaçu, Paraná). O acampamento em que moro se chama Herdeiros da Terra de 1 de Maio, também em Rio Bonito.

-Como foi sua participação no processo de auto-organização da escola?

J-A relação com a luta que a escola nunca perdeu fez com que eu conhecesse e constituísse identidade com o Movimento. Comecei participando de um grupo de teatro (SaciArte) que, além da formação política e humana através da arte, instigava o vínculo e a responsabilidade com o movimento, já que saíamos para participar e se apresentar em diversas atividades para além da escola, onde compreendíamos melhor a grandeza da organização que fazíamos parte. Aos poucos fomos sentindo necessidade de exercitar a militância, e que ela precisava começar enquanto juventude, entendendo a escola como chão de atuação. Nesse sentido, além dos espaços já existentes de participação dos estudantes, fomos criando outros espaços e formas para trabalhar com os demais jovens, eram espaços ligados principalmente as práticas de comunicação popular e de participação na gestão escolar. Ter espaços de auto-organização, onde se tem a juventude como protagonista, exige buscar formação, diálogo com as instâncias e experiência histórica do Movimento, desenvolver a capacidade de resolver problemas, fazer parte de uma coletividade e ter responsabilidade em relação a ela. Foi um conjunto de aprendizados que contribuíam na formação da consciência e que nos envolvia dentro da nossa singela construção na luta maior.

-Como você descreveria a relação da luta pela terra com a escola?

J- A luta pela terra é uma parte constituinte da escola. Uma escola do MST se constrói dentro de um contexto que expressa um projeto, então não há como a escola não carregar valores e objetivos dessa luta no seu trabalho de formação com os estudantes.  A  construção da escola, desde o início do Movimento, pretende levar o compromisso de formar sujeitos que possam dar continuidade a luta.

-Você considera que as escolas do MST alcançaram seu objetivo?

J- Sim, mesmo dentro da condição de ser uma instituição do Estado o Movimento conseguiu fazer da escola um espaço de disputa que consegue direcionar a formação da juventude trabalhadora também em uma perspectiva emancipatória, e não apenas a serviço dos interesses do sistema capitalista. Acredito que a escola fez diferença na vida de muitos jovens que passaram por ela. Na minha vida a escola foi o primeiro contato mais incisivo que tive com uma perspectiva de mundo que fizesse a crítica à sociedade de classes e todas as injustiças que essa sociedade possuí. E foi a partir dela minha inserção na militância.

-Como é ser mulher e liderança no MST?

J-Apesar dos avanços temos muito que superar na construção das novas relações. Eu diria que ser mulher no Movimento carrega desafios a mais, e muitas vezes ser uma mulher jovem é ainda mais desafiador, já que o fato de ser jovem, em alguns momentos, demanda que nos reafirmemos no sentido de mostrar responsabilidade e condições de realizar as tarefas. Por outro lado, ser jovem também instiga a resistência de não naturalizar e não aceitar as relações de opressão de gênero, e se colocar a tarefa de construir a superação dessas contradições.

-Em todos os seus anos de luta pela terra, qual aprendizado foi mais significativo?

J-Que a luta pela terra e pela reforma agrária também é dura, pois fazer o enfrentamento ao agronegócio chega a comprometer a liberdade e vida de companheiros e companheiras. Mas estar em luta ensina que não há nada mais justo e que valha a pena. Não há nada com mais sentido e com mais capacidade de mudar a vida das pessoas.

-Juliana, como foi sua luta contra o golpe?

J-A minha luta contra o golpe foi um dos momentos que mais exigiu esforços em compreender a realidade e se organizar. Um período em que aprendi muito em pouco tempo. E em que a mística da classe se fez mais presente em minha vida, pois afinal não era só a organização em que faço parte que se encontrava em luta, e logo a coletividade que eu pertencia não era só o MST, mas a coletividade trabalhadora.

-Você poderia aprofundar um pouco sua relação com a educação? Você se formou professora?

J- Estou cursando a graduação em Educação do Campo na UFFS (Universidade Federal da Fronteira Sul), no campus Laranjeiras do Sul. Tenho um curso profissionalizante que se chama magistério, o que me habilita a trabalhar com os Anos Iniciais do Ensino Fundamental. Eu trabalhei como educadora por 2 anos na Educação de Jovens e adultos aqui no meu acampamento, era uma turma de alfabetização. Somando o magistério e a graduação são quase 8 anos estudando sobre educação. Mas de fato minha atuação em processos formais de educação foi bem breve, mas em processos informais é cotidiana na militância, desde o trabalho com a juventude até organização de cursos de formação. Outra experiência bem legal que eu tive foi contribuir ativamente no início da construção da escola itinerante aqui do meu acampamento. Não sei se você sabe como funciona a escola itinerante? É uma escola que tem uma ligação muito forte com a comunidade, pois no início ela é construída com recursos da comunidade (humanos e materiais), depois já em seu funcionamento é que ela entra como política pública, mesmo com a proposta sendo totalmente diferenciada.

-Qual é a proposta?

J-É uma escola que tem outra concepção do papel da educação, por isso tem um método pedagógico que busca se conectar com a vida. Se organiza por ciclos de formação coletiva, vincula os conteúdos com a realidade, preza pela gestão coletiva, etc. A educação no movimento é um processo de formação permanente, ela não acontece só na escola. Então, quando se faz parte de uma coletividade a própria coletividade educa. Eu vivencio isso principalmente por morar em um acampamento e pelos processos de formação da juventude que construímos. Falamos que a Escola Itinerante tem a missão de formar lutadores e construtores.

-Mas a Escola Itinerante está sempre se mudando, então? Como ela funciona?

J- Ela acompanha as famílias em luta. Como o acampamento é itinerante, tem despejo, tem mudança de espaço, a escola vai junto para assegurar o direito das crianças e jovens de estudarem. Por isso tem momentos que as estruturas acabam sendo até mesmo de lona, quando a comunidade tem perspectiva de ficar tempo menor, ou quando é preciso montar rapidamente a escola e colocá-la em funcionamento.

-Como os professores fazem com tão pouca estrutura?

J-A falta de estrutura implica certamente em dificuldade no processo ensino-aprendizagem, mas os educadores (que em parte do tempo são voluntários, principalmente no início da escola), desenvolvem um trabalho com muito empenho e motivação, eles fazem porque acreditam na causa da luta pela terra e pela educação, esse esforço individual e coletivo faz com que nossa escola ensine, e muito. Eu já dei aula com um lampião à noite para adultos, os quais vários tinham problemas de visão e usávamos como quadro a parede de um barraco de lona. Era difícil, mas muito bonito e gratificante.

-Percebi que a educação é uma paixão sua. O que faz com que se apaixone pela educação?

J- Eu tenho amor (que é mais sincero e construtor), mas é pelas pessoas, pois é indignante toda exploração humana nessa sociedade, eu me sinto explorada, e sei que a libertação só é possível se for coletiva e passar pela educação.

-Em que sentido você se sente explorada?

J- Me sinto explorada enquanto classe e gênero, pelo trabalho, pela sexualidade, pelo papel social, pelos papéis sociais aos quais sou condicionada por nascer pobre e mulher. Vendo minha força de trabalho para sobreviver, tenho dificuldades no acesso à educação, cultura, lazer… Ser julgada pela sociedade por ações tidas como inadequadas a uma mulher, como participar da vida política de uma comunidade, sair sozinha, não querer ser mãe. Também  sinto a exploração no trabalho doméstico, na interpretação da minha atuação política (inferiorização).  É por isso que eu acredito no feminismo marxista, que discute gênero através da classe.

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