Jornalistas Livres

Tag: Tribunal de Justiça de São Paulo

  • O avesso do avesso do avesso (Sampa, Caetano Veloso)

    O avesso do avesso do avesso (Sampa, Caetano Veloso)

    1 O Direito Alternativo

    Nos anos setenta do século passado, alguns juristas revivem uma velha questão que não era desconhecida dos romanos: os pretores tinham autoridade para suavizar as fórmulas rigorosas das primeiras leis romanas, norteando-se por princípios úteis para administração da justiça como a equidade e humanidade. A questão passa a ser revivida por juízes italianos na busca por um direito vivo — com alguma inspiração no jusnaturalismo — e que pudesse por cobro a um positivismo exacerbado e aparentemente neutro que ignorava situações sociais de injustiça.

    No Brasil, esse pensamento repercute em meio a uma ditadura que se findava (anos 80), mas que continuava a ter um arcabouço jurídico repressivo e obscurantista que poderia ser compensado por uma reinterpretação legal. Embora a discussão acadêmica e doutrinária date de período anterior à Constituição de 1988, foi seu texto que deu um grande instrumental para reinterpretação de normas infraconstitucionais segundo valores mais humanistas.

    O assunto estava no plano doutrinário e entranhava algumas poucas decisões de magistrados progressistas, muitos dos quais do sul do país, quando em 25 de outubro de 1990, o já extinto Jornal da Tarde (órgão de imprensa pertencente ao grupo Estado de São Paulo, com conhecido viés conservador) publica uma longa matéria intitulada Juízes Gaúchos colocam direito acima da lei. A matéria assinada pelo jornalista Luiz Maklouf, dentre outras coisas, tinha por escopo desmoralizar o magistrado Amílton Bueno de Carvalho, um dos próceres dessa forma de pensar, sugerindo que ele decidia segundo sua cabeça e contra legem. Se o objetivo da reportagem era escarnecer alguns magistrados gaúchos — e o objetivo era esse mesmo — o resultado acaba servindo para divulgar a existência de juristas preocupados com a estagnação do Direito e com a já conhecida ineficácia da prestação jurisdicional. O debate acadêmico, açulado pela polêmica jornalista, acaba propiciando um Encontro Internacional de Direito Alternativo realizado em Florianópolis no ano de 1991 e também a edição de farta literatura, em grande medida publicada pela Editora Acadêmica. (1)

    O movimento de direito alternativo nunca consistiu numa doutrina contra lei. Embora se reconhecesse o Direito Positivo como uma conquista democrática, a crítica ao mito da neutralidade ou da valoratividade era um de seus motes. Também se podia contemplar uma crítica ao sistema vigente, sempre condescendente com valores liberais exacerbados; combate irrestrito à miséria da população que não via (especialmente antes da Constituição de 1988) o reconhecimento de direitos coletivos e que contemplava problemas sociais com um viés individualista; uma simpatia pela teoria do direito de mote crítico que reinterpretava a lei a partir da Constituição Cidadã; uma crítica à fonte única do direito e da interpretação mecanicista das normas efetuadas por meio de um método hermenêutico ortodoxo de matriz formal/técnico/ dedutivo. (2)

    A riqueza da discussão não deixou de ter críticos à direita e à esquerda. Reconhecer que o direito não é um todo orgânico, coerente e completo, com suas antinomias e lacunas, e que a lei como fonte privilegiada do Direito necessita de uma busca de seu sentido por meio da interpretação (e é o intérprete que sempre executa esse papel trazendo consigo sua ideologia e seus valores pessoais) é dar ensejo a uma longa discussão quanto ao próprio papel do operador do direito e em particular do juiz. Para outros, a defesa estrita da legalidade no sentido de proteção dos despossuídos constituiria unicamente um emprego instrumental da jurisdição. (3) Para outros, ainda, permitir uma maior elasticidade ao mecanismo de interpretação da lei, poderia dar ensejo a uma prática alternativa perigosa por parte de um jurista reacionário que adaptaria sua interpretação a uma desautorização ou solapamento dos valores fundantes do Estado de Direito.

    Embora não tenham sido poucas as discussões sobre o tema, a dogmática penal teve certa carência no debate. (4) O protagonismo coube ao direito civil e trabalhista, cabendo ao Direito Penal mais uma condição de observador privilegiado e polemista — partícipe — do que propriamente a de executor de uma proposta — autoria. A meu juízo isso se deveu em grande medida aos paradigmas mais estreitos do direito penal, em muitas questões adstrito ao princípio da legalidade. Não que não se possa conceber um direito penal “penetrado” ou “influenciado” por considerações político criminais, dentro de uma concepção de “sistema aberto”. Segundo tal perspectiva a política criminal passaria a ter uma importância central na própria dogmática, auxiliando o jurista na operação de hermenêutica no âmbito das categorias penais. (5) Mas a verdade é que os limites da legalidade, em nossa esfera do saber, tem restrições não conhecidas na área extrapenal.

    Embora o direito alternativo nunca tenha sido um movimento de juristas contra a lei, de pessoas pregadoras do voluntarismo jurídico, não se pode deixar de ter em conta que os detratores do direito alternativo conseguiram, em alguma medida, criar uma falsa imagem segundo a qual o direito alternativo é o direito sem lei, apesar da lei ou mesmo contra a lei.

    Embora tal visão não seja correta, somente para os efeitos deste artigo, vou usar tal sentido em tópico que se segue.

    2 Avesso da Lei

    Em 2014, sob coordenação de Thiago Bottino, Professor da FGV-Rio, gestou-se uma das mais bem elaboradas pesquisas empíricas na área penal que tive conhecimento. A pesquisa intitulou-se “Panaceia Universal ou Remédio Constitucional?  Habeas Corpus nos Tribunais Superiores”. A pesquisa foi patrocinada pelo Projeto “Pensando o Direito e as Reformas Penais no Brasil” do Ministério da Justiça.

    A razão precípua da pesquisa foi um movimento importante de restrição ao uso do Habeas Corpus em Tribunais Superiores (STJ e STF), em grande medida por haver um acúmulo significativo de impetrações desse Remédio Constitucional naqueles Tribunais. No entanto, mais importante do que simplesmente impedir o ajuizamento das ações é entender os fatores que geram essa pressão sobre os tribunais superiores e atacar as causas do excesso de habeas corpus que visem à, apenas, impugnar decisões de instâncias inferiores. O projeto proposto “dispôs-se a identificar as principais teses jurídicas que são levadas aos tribunais superiores para que se possa pensar em políticas públicas (legislativas e jurisprudenciais) que permitam conciliar a proteção da liberdade de locomoção com o sistema de competências das diversas instâncias judiciárias”. (6)

    Um exemplo do problema enfrentado foi a constatação de que determinadas teses jurídicas, se não acolhidas pelas instâncias inferiores, pressionam os tribunais superiores. É dizer: muitas matérias sumuladas, seja pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça, são sistematicamente descumpridas ou inobservadas por instâncias inferiores do Judiciário. Em formato de Habeas Corpus, os Tribunais Superiores passaram a ser instâncias recursais de ações que descumprem suas súmulas ou suas correntes jurisprudenciais pacificadas por órgãos de segundo grau dos Estados.
    O Supremo Tribunal Federal, por exemplo, julgou 1.624 Habeas Corpus no ano de 2007. No ano seguinte, foram 5.440. Em 2009 a escala ascendente continuou, batendo em 6.183, permanecendo em níveis elevados, desde essa época. (7)

    No Superior Tribunal de Justiça a situação foi ainda mais dramática, pois o crescimento estendeu-se até o ano de 2011, sendo certo que o volume total de casos é quase seis vezes maior o do STF (considerando os picos de impetrações), alcançando a marca de 36.000(trinta e seis mil) habeas corpus em apenas um ano. Em 2007 eram 24.294 Habeas Corpus. Em 2011 esse número é alçado a 36.570. (8)

    A surpresa —será ?— fica por conta da altíssima concentração de casos com origem no Tribunal de Justiça de São Paulo. 43,8% das ações de Habeas Corpus são oriundas de São Paulo (guerreando decisões do TJ/SP). É importante entender a dimensão disso, uma vez que não é compatível com dados de população (São Paulo concentra apenas 21,63% da população brasileira), nem com dados de população prisional  (embora seja o Estado com a maior população carcerária, com 35,71%). O elevado percentual de casos oriundos do Tribunal de Justiça de São Paulo sugeriu o aprofundamento das pesquisas nesses casos.

    No estudo dos casos mais frequentes, correspondentes aos tipos punitivos, verificou-se que Cinco crimes eram recorrentes: estupro; furto (simples e qualificado); homicídio qualificado; tráfico de drogas; roubo (simples e majorado). Do total de Habeas Corpus impetrados, 72,59% correspondiam a esses crimes. (9)

     

    No que concerne ao conteúdo das ações, apenas cinco temas (dentre os 41registrados) correspondem a mais da metade de todas as discussões (54,30%),destacando-se os temas ligados à progressão de regime, prisão cautelar, regime inicial de cumprimento de pena, erro na dosimetria e excesso de prazo. (10) O problema pode ser visualizado pelo quadro a seguir reproduzido:

    Na maioria dos casos levados aos tribunais superiores acerca dessa combinação “crime” + “tema” as decisões contestadas em sede de HC condenavam o réu ao cumprimento inicial de pena em regime fechado com base na periculosidade do agente ou na gravidade abstrata do delito, a despeito da regra do art. 33, § 2º autorizar, pelo critério da pena definitiva, a adoção de outros regimes. O caso do roubo é paradigmático, pois embora uma pena de 5 a 8 anos possa ser cumprida em regime semiaberto desde o início, muitos Desembargadores do Tribunal de Justiça paulista condenam a penas inferiores a oito anos, porém do regime inicial fechado. Muitas vezes o fundamento é apenas a apreensão social que esse delito causa!

    Essa questão jurídica aparecia associada, por vezes, aos casos em que não existiam outras circunstâncias desfavoráveis que acentuassem a culpabilidade do réu, senão a violência inerente ao próprio tipo penal. Essa matéria, contudo, já fora sumulada pelo STF em 2003 (Súmulas 718 e 719 do STF) e ainda pelo STJ em 2010, no Enunciado nº 440.

    Senão vejamos: Súmula nº 440, STJ: “Fixada a pena-base no mínimo legal, é vedado o estabelecimento de regime prisional mais gravoso do que o cabível em razão da sanção imposta, com base apenas na gravidade abstrata do delito.” Súmulas nº 718, STF: “A opinião do julgador sobre a gravidade em abstrato do crime não constitui motivação idônea para imposição de regime mais severo do que o permitido segundo a pena aplicada”. No mesmo diapasão a Súmula 719 do Pretório Excelso: “A imposição de regime de cumprimento mais severo do que a pena aplicada permitir exige motivação idônea”.

    Dessa forma, o altíssimo percentual de concessão desses HC’s e RHC’s  foi facilmente identificado: a resistência dos tribunais inferiores de aplicarem os enunciados 718 e 719, da Súmula do STF, posteriormente reafirmado pelo verbete nº 440, do STJ, além de outras matérias sumuladas sobre temas diversos cuja discordância é expressa pelo julgador “a quo”.

    Portanto, não obstante já fosse entendimento sumulado que a gravidade abstrata do delito não é fundamentação idôneo para imposição de regime
    inicial de cumprimento de pena mais gravoso, por diversas vezes os tribunais superiores se viram obrigados a julgar HC’s e RHC’s apenas para reafirmar sua jurisprudência.

    A tese repudiada pelos tribunais superiores (e recorrente nas fundamentações dos tribunais de segunda instância) é a de que o regime fechado é o único compatível com a gravidade do delito de roubo —quando não de furto, estelionato ou apropriação indébita — e da periculosidade presumida dos autores desse tipo de crime. Infere-se que o juízo acerca da periculosidade do agente – previsto na Lei nº. 6.416/77, expurgada do ordenamento na Reforma Penal realizada pela Lei nº. 7.209/1984 – ainda é largamente empregado por magistrados de primeiro e segundo graus de jurisdição. (11)
    Poderia discorrer longamente sobre a pesquisa acima mencionada, tal sua riqueza. No entanto, não é este o objetivo deste trabalho, mas sim destacar que a postura refratária de parte do Poder Judiciário Paulista, em grande medida colabora para entulhar os Tribunais Superiores com questões cujos temas estão pacificados em sede daquelas Cortes.

    Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça possuem jurisprudência firme (tanto que sumuladas, muitas delas) sobre temas que são ignorados por alguns Magistrados paulistas. E isso produz um assoberbamento de trabalho das Cortes Superiores, bem como causa grandes problemas humanitários para pessoas que permanecem no cárcere sem qualquer fundamento legal.

    Essa tendência, embora já existisse anteriormente, passa a ser tornar uma preocupação explícita no ano de 2010. O primeiro sinal da Escolha de Sofia já vinha encartado no título do artigo de Mohamad Ale Hasan Mahmoud: O cabimento do Habeas Corpus: uma escolha dramática. No corpo do trabalho o argumento era assim vazado: “Por mais que a ideia apresentada vá restringir o exercício da ampla defesa, é importante ter claro que a manutenção do status quo apenas representa a perpetuação de justiça tardia que, na lição de Ruy, cristaliza injustiça qualificada. Trata-se de escolha dramática, à luz da reserva do possível. Sendo inviável erradicar todos os tumores, pensa-se, deve-se cauterizar os que se encontram nas áreas vitais. É tempo de racionalizar o uso do habeas corpus, a bem do próprio direito de liberdade.” (12)

    Coincidência ou não, o autor do artigo, então Assessor da Ministra do STJ, Maria Thereza de Assis Moura, dá o pontapé inicial em um jogo que teria na própria Julgadora uma das mais enfáticas defensoras da restrição da admissibilidade do remédio heroico. As cartas foram colocadas na mesa, e o jogo passa a ser jogado com mais rigor. Na Escolha de Sofia, o abandonado foi o jurisdicionado pobre.

    As iniciativas de tentar corrigir o assoberbamento do trabalho pela restrição da admissibilidade de algumas hipóteses de Habeas Corpus, em minha visão, é o avesso da lei. Nada há que autorize — e muito menos o excesso de trabalho de Ministros — a limitação de um direito representado pelo remédio constitucional heroico. Qualquer restrição dessa natureza é o avesso da lei.

    3 O avesso do avesso do avesso

    Voltemos ao direito alternativo. Embora não se imagine como correta a assertiva segundo a qual o direito alternativo esteja à margem da lei ou julgue contra a lei, parece que a pecha jornalística aderiu aos defensores dessa linha de pensamento. Um jurista conservador e bem informado — ou mesmo alguém que nada leu sobre o assunto — acha que praticar o direito alternativo é julgar contra a lei. (13) Pois utilizemos esse conceito.
    Escolhi alguns julgados representativos do direito alternativo pelo avesso, destacando temas diferentes, embora haja verdadeira corrente de seguidores que professam essa ideia.

    A. O primeiro julgado diz respeito ao Habeas Corpus nº 0232315-83.2012.8.26.0000, decidido pela 9ª Câmara do TJ/SP. A decisão foi unânime e teve como Relator o eminente Desembargador Souza Nery. O tema principal do v. Acórdão, dentre outras questões de menor relevo para este artigo, é a discussão da possibilidade de concessão de liberdade provisória para o crime de roubo.
    Senão vejamos:

    “Tal como alvitrado, com a costumeira propriedade, pelo ilustre e ilustrado parecerista, o pleito não está no caso de ser acolhido.

    Senão, vejamos:

    A concessão da pretendida liberdade provisória é absolutamente incompatível com o crime imputado ao paciente. É que, em matéria de roubo a mais intranquilizadora expressão da criminalidade nos dias presentes devem ser observadas as seguintes regras:

    A. não se relaxa prisão em flagrante formalmente perfeita;

    B. não havendo prisão em flagrante, decreta-se a prisão preventiva;

    C. se, por desatenção, o réu livrou-se solto, decreta-se sua prisão preventiva quando da prolação da sentença.

    Instrumento de garantia do direito de ir e vir, reservado aos cidadãos ordeiros, que fazem bom uso de sua liberdade, o habeas corpus não pode ser degradado à função de “chave de cadeia” para quem assalta quando está indo, e torna a assaltar quando está vindo…”

    E, mais adiante, arremata:

    “A ousadia crescente das pessoas como o paciente envolvidas na criminalidade, sua absoluta desconsideração pela boa-fé alheia e a tranquilidade com que exercem sua funesta atividade de infringir as leis para obter vantagem ilícita, estão a exigir uma atuação serena embora rigorosa e enérgica do Poder Judiciário, que não se pode despir de suas responsabilidades no tocante a tal estado de coisas”.

    Comentário: O Supremo Tribunal Federal, em inúmeros arestos (HC 99.832), já decidiu não caber, nem mesmo para os crimes chamados hediondos, em se tratando de prisão cautelar, uma limitação ao exercício da liberdade per se. Devem ser analisados os eventuais requisitos da prisão preventiva (artigos 312 e 313 do CPP). Não existentes, a regra de livrar-se solto deve ser observada. Em outras palavras: a gravidade abstrata do delito não é suficiente para justificar a constrição cautelar da liberdade. Vê-se, na hipótese, o exercício de um direito alternativo para vulnerar garantias individuais.

    B. O segundo Acórdão a analisar discute o reconhecimento da existência de maus antecedentes e em que hipóteses isso se aplica. É da lavra do eminente Desembargador Grasi Neto, da 7ª Câmara do Tribunal de Justiça. Trata-se da Apelação nº0047533-27.2010.8.26.0576, decidido por unanimidade dos julgadores.

    “Em uma abordagem meramente superficial, a denominação ‘maus antecedentes’ não seria, aparentemente adequada para designar envolvimentos do réu com investigações ou processos judiciais de natureza criminal que fossem posteriores aos fatos que estão sendo julgados; igual ponderação caberia quanto às passagens anteriores que não tivessem redundado em condenação do acusado.
    Ao empregar referida expressão “maus antecedentes” o legislador não estava se referindo, todavia, às condenações criminais que antecederiam no tempo a prática dos fatos cuja reprimenda se esteja dosando; cuidar-se-iam, antes, de “circunstâncias sociais de cunho negativo”, cuja existência deve
    preceder logicamente não o momento da prática delituosa, mas a ocasião da prolação da sentença penal pelo Juiz de Direito”

    E, mais adiante, arremata:

    “Não se desconhece a edição do Enunciado n. 444 da Súmula de Jurisprudência do Colendo STJ, editado em abril de 2010, segundo o qual ‘é vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena-base’.
    Ao elaborá-lo, acreditamos, todavia, tenham os integrantes daquela Corte se afastado da melhor interpretação do texto Magno, mesmo porque a análise acima tecida de modo algum vulnera princípios constitucionalmente assegurados. Caso fosse essa a hipótese, e isso apenas a título de argumentação, a questão deveria ter sido inclusive objeto de enunciado vinculante, que teria que emanar não do STJ, mas do Pretório Excelso, Corte superior à qual incumbe precipuamente, pondere-se, a guarda da CF/88”.

    Comentário: Os antecedentes — sempre criminais — foram transformados em “circunstâncias sociais de cunho negativo”, sendo ignorado que o artigo 59 tem a rubrica de “conduta social” que alcançaria hipoteticamente tal ideia. Ademais, como o próprio nome já o expressa, antecedentes devem ser sempre precedentes ao ato delituoso e não ao ato decisório, posto que o autor de um delito deve se responsabilizar por seus atos, não podendo prever se um dia será ou não julgado por ele e quando isso ocorrerá. A inobservância da súmula 444 dá-se por razões puramente ideológicas. Evidentemente que esse fato dará ensejo a reforma pela Corte Superior, caso haja a interposição de recurso. Vê-se, na hipótese, o exercício de um direito alternativo para vulnerar garantias individuais.

    C. A terceira decisão analisada foi proferida em primeira instância pelo Ilustre Magistrado Italo Morelle. Foi proferida nos autos 020502.53.2013.8.26.0050. A discussão que nos interessa destacar diz respeito à dosimetria penal em um crime de roubo.

    “De se decantar e exalçar o caráter preventivo gera e especial da pena, o que apenas se consegue, impondo sanções mais robustas (apesar de nossa lastimável LEP, que dará chão a efetiva sanção bem menor), mormente, em crime frequente, ordinário e regular, como o que em vista. A população, apavorada com a criminalidade jamais dantes vista, fazendo de suas moradas veros quartéis, valendo-se de segurança privada em calçadas (isto para os que podem, pois os pobres estão “ao Deus dará”, em todos os seus estamentos, clama por penas mais rigorosas (principalmente em se tratando de veículos). Crê este humilde operário do Direito que o Poder Judiciário deve estar atento e sensível a tanto, pois chegamos ao paroxismo, ao zênite, em que o sonho de consumo da classe média é um carro blindado; para motos, o máximo que se pode, ou seja, o rastreador e seguro (que pesa no bolso dos motociclistas).

    E, em embasamento ao encimado, fosse a pena do corréu César mais elevada, provavelmente não praticaria o mesmo crime pelo qual pouco tempo permaneceu recluso ( serviria como exemplo prevenção geral – aos demais encarcerados). Ressocialização, vênia concessa, para criminosos habituais, em maioria supra summo , posto tenham-se gasto tintas e tintas quanto a tanto (e ainda que o sistema fosse adequado e ideal), é vã utopia de pretensos filósofos. Esbarra no livre arbítrio! Sem a candidez ou ingenuidade de Pangloss do expoente do Iluminismo Voltaire, o sujeito é criminoso, apetece-lhe o crime e até jacta-se se tem reputação de mais perigoso. Jamais laboraria de sol a sol, em jornada mensal, para perceber paga de um salário mínimo ou até metade mais, se, com um roubo de carro, uma “saidinha de banco”, etc., angaria 10, 20 mil reais. E, se mal sucedido, receberá (e riem-se ao deixar estabelecimentos prisionais para audiência onde será julgado, o cognominado “ 05 e 04”; é acicate para persistir na senda delituosa, pois vale a pena (nos dois sentidos) . A áspide, ante ameaço, não titubeará em destilar sua peçonha na vítima indefesa. Mas se a ameaça for realmente de monta (caráter preventivo geral  — penas mais duras) empreenderá fuga.”

    E ao fim e ao cabo, sentencia um dos corréus por roubo:

    “Fixo a pena-base para o corréu Cesar em 07 anos de reclusão e 17 dias-multa (intermediaria, 03 anos além do piso e 03 anos aquém do máximo abstrato, para que não se diga rigor excessivo).

    Ante a reincidência específica do corréu Cesar, alço a pena em 1/5, remetendo a 08 anos, 04 meses e 24 dias de reclusão e 20 dias-multa.
    O concurso de agentes, assim o foi, com apenas dois rapaces, pelo que acresço as reprimendas em 1/3, englobando, para o corréu Cesar, 11 anos, 02 meses e 12 dias de reclusão e 26 dias-multa.

    Á míngua de outras circunstâncias ou causas de oscilação, definitivas em tais patamares.”

    Comentário: Na primeira fase do cálculo penal a pena é aumentada em 75% (três anos além do piso e três anos aquém do máximo abstrato) para que não se diga rigor excessivo. Superadas as duas fases outras do artigo 68 do CP, o magistrado aplicou pena de 11 anos, 2 meses e 12 dias, lembrando-se que para tal dispositivo penal, art. 157 do CP, o preceito secundário prevê pena de 4 a 10 anos. Não só súmulas são inobservadas, mas neste caso, a própria lei. Vê-se, na hipótese, o exercício de um direito alternativo para vulnerar garantias individuais.

    D.     A quarta decisão é da lavra do eminente Desembargador Renato Nalini, ora Presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo. Foi proferida em 1996, no então Tribunal de Alçada Criminal. O aresto foi julgado em 4 de novembro, Ap. 1.030.173/2, 11ª Câmara. Talvez seja a mais importante das decisões citadas, porquanto muito seguida no Tribunal de Justiça por inúmeros Desembargadores. No caso em tela trata-se de um crime de roubo em que o acusado silencia na fase policial. Vejamos a abordagem do silêncio do acusado:

    “Na polícia, todos restaram silentes. E dessa opção pelo silêncio, nem Eduardo — f — nem Rogério —f— poderão extrair proveito. Pois se manter silente na fase policial, embora assegurado pelo texto fundante, chega a comprometer os acusados. A reação normal do inocente é bradar contra a acusação injusta, e não se reservar para oferecer explicações apenas perante o juízo. Essa posição é própria de quem necessita de uma estratégia para oferecer resistência ao pleito ministerial.
    De qualquer forma, não é apenas o silêncio na polícia que existe a incriminá-los….”

    É bom que se esclareça que este não é o único caso assim julgado pelo insigne Magistrado, o que nos permite supor que tal interpretação não foi acidental. Veja-se o Acórdão da 11ª Câmara, julgado em 3/3/1997, em que se afirma:

    “….embora a opção pelo silêncio derive de previsão constitucional, ela não inviabiliza o convencimento judicial no sentido desfavorável aos réus, pois a reação normal de um inocente é proclamar, com insistência e ênfase, a sua inocência, não se reservar para prestar esclarecimento apenas em juízo.”

    Comentário: A autoridade intelectual e moral do Relator autoriza supor que seu exemplo tornou a ideia aqui defendida verdadeira referência de um direito alternativo às avessas. O caso, aqui, não é de descumprimento de uma simples súmula não vinculante ou mesmo de uma norma infraconstitucional, como o Código Penal. Estamos diante de uma inobservância de um princípio constitucional por Aquele que se transformou em referência nessa forma de pensar.

    4 Conclusão

    Lá se vão alguns anos quando ouvi pela primeira vez que São Paulo é diferente de todos os demais Estados da Federação. Também ouvi, alhures, que São Paulo pode ser dissemelhante, distinto ou divergente — e ignorar o ordenamento — pois é a locomotiva da Nação e aqui tudo se autoriza ser díspar. Aqui e acolá recolhi assertivas e observações que em última instância diziam ser melhor descumprir as súmulas, leis ou quiçá a Constituição a libertar alguém que mereça estar preso. Os grupos acadêmicos paulistas foram em sua maioria refratários aos juristas defensores do Direito Alternativo. Mas os últimos anos autorizam a afirmação segundo a qual quem mais pratica o Direito Alternativo são os Juízes Paulistas

    São Paulo é realmente diferente. É curioso que em uma cidade com grandes representantes da Música Popular Brasileira, como Os Mutantes, Titãs, Demônios da Garoa, Adoniran Barbosa, Germano Mathias, Rita Lee, dentre tantos outros, ninguém conseguiu decifrar São Paulo melhor do que o baiano Caetano Veloso. A obra-prima com loas à vida paulistana, Sampa, é composta falando das principais características da capital paulista. A poluição, a recepção para os migrantes, as múltiplas culturas e o sonho de quem vem de fora, integram a composição. É difícil compreender a beleza na dura poesia completa das suas esquinas ou da deselegância discreta das tuas meninas. Afirmar que alguma coisa possa acontecer no seio de alguém quando se cruza a Ipiranga com a Avenida São João só há de se admitir quando o poeta é genial e faz do feio o belo; da esquina mais poluída a mais límpida manifestação do coração humano.

    Mas uma coisa o mais paulista dos baianos não poderia imaginar. Que à mente apavora o que ainda não é mesmo velho. E que também no Direito Penal, inovaríamos criando um Direito Penal Alternativo que é refratário às leis e que pensam pairar acima delas. Ele também não poderia imaginar que no centro jurídico da capital paulista o sonho feliz de cidade fosse dar ensejo apressadamente a chamar nosso Estado de realidade, já que somos o avesso do avesso do avesso.

    Referências

    1 Alguns trabalhos merecem destaque: Lições de Direito Alternativo (dois volumes e autores diversos, publicados em 1991 e 1992, obra organizada por Edmundo Lima de Arruda Jr.); Magistratura e Direito Alternativo (obra escrita por Amílton Bueno de Carvalho, 1992, Ed. Acadêmica,); Direito alternativo na jurisprudência (Ed. Acadêmica, 1993, por Amílton Bueno de Carvalho); também merece menção a Revista de Direito Alternativo, sob direção de Amílton Bueno de Carvalho, com artigos de renomados juristas nacionais e estrangeiros. (anos de 1992 e 1993) além de inúmeras outras obras de grande circulação nacional.

    2 ANDRADE, Lédio Rosa de. O que é direito alternativo. Caputado em 12/1/2015, http://lediorosa.jusbrasil.com.br/artigos/121941896/o-que-e-direito-alternativo.

    3 BERGALLI, Roberto. Usos y riesgos de categorias conceptuales: conviene seguir empleando la expresíon “uso alternativo del derecho”?, in Revista de Direito alternativo, vol. 1, 1992, Ed. Acadêmica, p. 34.

    4 Exceção para o excelente artigo de Salo de Carvalho, intitulado Direito alternativo e dogmática penal: elementos para um diálogo. Discursos sediciosos. Crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro, ano 2, n. 4, p. 69-84, 2º. Semestre de 1997. Peço vênia para citar breve trecho do trabalho: “Assim, o MDA (movimento de direito alternativo) não representa, em tese, um local diametralmente oposto à Dogmática, mas utiliza a Dogmática no sentido de remodelamento (tática de curto e médio prazo) e na visualização de possibilidade de superação paradigmática (utopia em sentido positivo ou utopia concreta), tendo como principal referencial os Direitos Humanos. É que a construção crítica da Dogmática não pode representar um fim em si mesmo ou um processo de relegitimação do paradigma em crise. A crítica precisa atuar dentro do próprio paradigma, mas localizando-se teleologicamente na construção de um novo modelo.” Op. Cit., p. 79.

    5 ROXIN,  Claus. Política Criminal e sistema jurídico penal. Rio de Janeiro, Renovar, 2000, p. 22.

    6  Pesquisa citada, p. 9.

    7 Op. Cit., p. 31.

    8 Op. Cit., p. 32.

    9 Op. Cit., p. 38.

    10 Op. Cit., p. 38.

    11 Op. Cit. p. 86 e seguintes.

    12 Boletim do IBCCRIM, nº 213, Agosto de 2010.

    13 Reafirmo que uma das apreensões que se tinha com o movimento do direito alternativo era o eventual receio que juristas conservadores se apropriassem da ideia de que poderiam julgar à margem da lei e da Constituição e que passassem a decidir em desfavor do indivíduo submetido à jurisdição penal em desrespeito aos direitos e garantias individuais.

     

    Notas

    1 Esse artigo do porfessor e criminalista Sérgio Salomão Shecaira foi originalmente publicado no livro Direito penal econômico: estudos em homenagem ao professor Klaus Tiedemann, editora LiberArs.

    2 Essa matéria recebeu o selo 017-2018 do Observatório do Judiciário.

    3 Para ler outras matérias do Observatório do Judiciário:

    https://jornalistaslivres.org/categoria/observatorio-do-judiciario

  • Medidas de exceção como novo paradigma autoritário

    Medidas de exceção como novo paradigma autoritário

    Estado Democrático de Direito

    Após as revoluções liberais ou burguesas – inglesa, francesa e americana –, podemos observar que o Estado moderno passou a existir sob duas configurações básicas: Estado Democrático de Direito – no qual as decisões políticas são adotadas por maioria, garantindo-se os direitos contramajoritários, e em que os direitos são estabelecidos não apenas no plano político, mas também no plano jurídico, principalmente no período pós-guerra, quando se adotaram constituições rígidas e a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 – e Estado de exceção.

    Muito se fala nas crises econômicas cíclicas dos Estados capitalistas, mas pouco se analisam as crises políticas que periodicamente neles ocorrem, as quais são desencadeadoras de paradigmas autoritários de Estado. O Estado de exceção é o segundo modelo geral que o Estado moderno adquiriu até o fim do século XX.

    Estado de exceção

    A expressão Estado de exceção surge na Constituição de Weimar, de 1919, que declara a Alemanha uma república democrática parlamentar. Em seu artigo 48, a Carta apresenta um instituto jurídico que serviria ao atendimento de uma situação fática de emergência. Essa emergência poderia ter como causa um cataclismo natural, gerador de calamidade pública, ou uma situação de guerra em que houvesse grave ameaça à segurança e à paz da sociedade. Nessas situações, poderia haver a declaração do Estado de exceção, que suspenderia provisoriamente os direitos dos cidadãos para atender a emergência em questão. Portanto, a expressão “Estado de exceção” tem origem no direito constitucional alemão, diretamente vinculada ao ato de suspender direitos e conceder ao Estado maior soberania.

    As ditaduras, os bonapartismos e o nazifascismo

    Esse conceito, no entanto, acabou sendo apropriado pela Teoria Geral do Estado e passou a ser utilizado como sinônimo das várias conformações de Estado autoritário surgidas a partir das revoluções ditas burguesas ou liberais. O jurista e então Professor da Sorbonne, Nico Poulantzas, por exemplo, chamava de Estado de exceção um gênero de Estado que inclui as ditaduras, os bonapartismos e o nazifascismo. O conceito passa a caracterizar um modelo de Estado autoritário e totalitário que se constitui a partir da ideia do ataque do inimigo.

    Regime jurídico de guerra transplantado para dentro das nações

    Carl Schmitt, um dos principais pensadores do tema, é quem teoriza como esse regime jurídico da guerra, relacionado ao ataque do inimigo e à necessidade de combatê-lo, é transplantado para o campo interno das nações, para a relação entre Estado e indivíduo ou grupo de pessoas, e não mais somente entre Estados. Schmitt constrói uma teoria do Direito e do Estado que fala da possibilidade de se tratar como inimigos indivíduos ou grupos que estejam associados à ideia de ameaça à unidade e à homogeneidade de um determinado povo. Todos que ofereçam risco a essa unidade social ou à pureza que dela emana podem ser tratados como inimigos e, assim, ter seus direitos suspensos. É como se Schmitt imaginasse que o Estado de Direito e os direitos são uma boa forma de reger a vida política em tempos de paz. Porém, havendo risco à segurança e à unidade do povo, a preservação do Estado deveria se sobrepor aos direitos individuais.

    Suspensão de direitos, sob pretexto de combater o inimigo

    O modelo que veio a ser nomeado como Estado de exceção é o que prevalece desde o bonapartismo e vai até o fim do século XX, que podemos arbitrariamente fixar em 1989, com a queda do muro de Berlim. Durante todo esse período, o que se observou foi o autoritarismo manifestando-se por meio de governos e Estados de exceção que, sob o pretexto de combater o inimigo, suspenderam os direitos individuais e o Direito pelo prazo necessário ao enfrentamento desse inimigo. Trata-se, portanto, de soberanias excepcionais e provisórias, que subtraem os direitos da sociedade como um todo ou, em alguns casos, apenas de determinados grupos sociais. Importante dizer que esses governos de exceção, totalitários, assenhoraram-se do poder não só pela via do golpe militar, como ocorreu na América Latina, mas também pela via democrática, como é o caso do nazismo e do fascismo na Europa

    A transformação dos modelos de autoritarismo pelo neoliberalismo

    O surgimento do neoliberalismo, que começa a ser gestado a partir das décadas de 60 e 70, com o capital financeiro passando cada vez mais a assumir um papel central no capitalismo, vai transformando os modelos de autoritarismo. Não que o autoritarismo acabe, mas vai se modificando. A experiência do nazismo, do fascismo e das ditaduras militares, representativos da barbárie, do genocídio, de formas extremamente desumanas de se tratar o ser humano, contrapôs a ideia de Estado de exceção à ideia de civilização.

    Pós-guerra: direitos humanos deixam de ser meramente formais

    No pós-guerra se constitui um pacto humanístico e democrático que refunda o entendimento de democracia, que deixa de ser interpretada como um conceito meramente formal de procedimento de disputa e debate pacífico entre grupos sociais que levam a uma decisão majoritária, passando a ser concebida também como regime que dá garantia a direitos, ou seja, no qual essa decisão majoritária não agride os chamados direitos negativos, os direitos de liberdade. Os direitos de liberdade, integrados numa noção de direitos humanos, deixam de ser mera declaração política e passam a ser imposição jurídica superior na estrutura de Estado, por meio das constituições rígidas, no plano interno e, no plano internacional, pela Declaração Universal dos Direitos Humanos.

    Após o trauma que a segunda guerra mundial produziu, sobretudo, no mundo ocidental, não havia condições políticas para se defender ditaduras e formas autoritárias de governo, o que fez com que regimes de exceção perdessem significativamente sua capacidade de validação discursiva.

    O autoritarismo sob nova fórmula

    O autoritarismo passa então a se manifestar sob uma nova fórmula, que são as medidas de exceção presentes no interior das democracias. Governos declarados democráticos, nos quais estruturas próprias da democracia, como eleição e voto são mantidas, passam a produzir medidas características de regimes autoritários, totalitários, elegendo e combatendo inimigos, suspendendo direitos e estabelecendo um regime jurídico próprio da guerra na relação entre Estado e indivíduo.

    Europa e Estados Unidos

    Na Europa e nos Estados Unidos essas medidas de exceção, em geral, são ou produzidas pelo poder legislativo ou pelo próprio poder executivo, sempre no sentido de fortalecer este último como agente soberano. Outro aspecto do regime jurídico da exceção no primeiro mundo é o fato de as medidas de exceção estarem inseridas geralmente no ambiente de um regime jurídico especial de proteção à segurança nacional, que elege como inimigo o estrangeiro, o “terrorista” identificado com o muçulmano, por exemplo.

    América Latina

    Na América Latina há diferenças essenciais. Aqui as medidas de exceção são capitaneadas ou produzidas pelo sistema de justiça e contam com forte respaldo da mídia para obtenção de apoio social. Há também medidas autoritárias produzidas pelo legislativo e pelo executivo, mas elas não são preponderantes na estrutura do sistema. Além disso, não há a criação de um regime especial de segurança nacional que defina o alcance dessas medidas de exceção e o inimigo a ser combatido. O inimigo aqui não é o estrangeiro, mas sim o pobre, associado à figura do bandido. As medidas se produzem rotineiramente no interior do ordenamento do direito penal, o que traz um impacto muito mais autoritário no âmbito do funcionamento estatal.

    O processo penal de exceção

    Essas características específicas se manifestam inicialmente através da política de guerra às drogas, implantada nos EUA na década de 1970, e importada pelo Brasil no início dos anos 1990, redundando no encarceramento em massa da população pobre e periférica, dentro do que podemos definir como a primeira modalidade de medidas de exceção produzidas pelo nosso sistema de justiça: o processo penal de exceção – expressão cunhada pelo professor Fernando Hideo Lacerda para designar a utilização da forma democrática do processo penal para produzir conteúdo tirânico próprio de um agenciamento autoritário das funções estatais.

    O direito de defesa existe apenas no plano formal

    O processo penal se dá como fraude ou farsa, já que o direito de defesa, princípio jurídico fundamental constitucionalmente garantido, existe apenas no plano formal. Vale lembrar que 40% dos aprisionados no Brasil estão encarcerados de forma provisória, ou seja, sem que tenham recebido sequer uma sentença de primeiro grau. Proporção essa relativa a uma população carcerária que quadruplicou de 1990 para cá, chegando ao terceiro lugar no ranking mundial, em termos absolutos, com mais de 726 mil pessoas presas. Ao mesmo tempo, o aprisionamento em massa fortalece o crime organizado, fundamentando uma ação estatal mais agressiva para combatê-lo, gerando assim um ciclo não virtuoso de sustentação dos mecanismos de violência. Como resultado, vemos o número de mortes violentas decuplicar no país desde o fim da década de 1980 e a taxa de homicídios mais do que quadruplicar, em valores proporcionais. Segundo o Atlas da Violência 2018, publicação do Ipea (Instituto de Pesquisas Econômica Aplicada) em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 553 mil pessoas foram assassinadas no país nos últimos 11 anos. O total de mortos é maior que o da Síria, que enfrenta sete anos de guerra, contabilizando cerca de 500 mil mortos, de acordo com estimativa da ONU.

    O Mensalão: a inclusão da política nos processos penais de exceção

    Outro fenômeno ocorrido no Brasil, desde o chamado “Mensalão”, foi a migração dos processos penais de exceção para o ambiente da política. Lideranças políticas, preponderantemente de esquerda, e também algumas lideranças empresariais, passam a ser vítimas de processos penais de exceção, nos quais se cumpre apenas aparentemente o rito formal. O exemplo mais emblemático certamente é a prisão do ex-presidente Lula, cujo processo penal se desencadeou para a produção de um resultado político autoritário, objetivando a persecução política de um inimigo, e não a punição de um cidadão que errou.

    As interrupções do processo democrático

    Os processos penais de exceção não são a única modalidade de medidas autoritárias praticadas na América Latina. Na última década, medidas de exceção facilitadas, confirmadas ou mesmo produzidas pelo sistema de justiça com vistas a interromper o ciclo democrático se fizeram presentes por aqui. Em Honduras, o mandato do presidente Manuel Zelaya foi suprimido pelo parlamento com a confirmação da Corte Suprema do país que, inclusive, ordenou sua prisão sem oitiva prévia. No Paraguai, o presidente Fernando Lugo foi retirado do cargo por meio de um processo de impeachment em que não se observaram minimamente os seus direitos de defesa. E aqui no Brasil, assistimos recentemente à destituição da presidente Dilma, em um processo comandado pelo legislativo e referendado pelo judiciário, que foi responsável também por criar o ambiente político gerador do clima de apoio social próprio a essa medida de exceção. A produção da medida, no plano formal, se deu pela via legislativa, mas o agente da exceção foi o sistema de justiça.

    Não se pode deixar de mencionar que, na América Latina, até mesmo em governos de esquerda, medidas de exceção são praticadas em processos penais contra lideranças de oposição, como é o caso da Venezuela.

    Erosão de significado do pacto democrático

    De forma mais abrangente, o que se percebe no mundo contemporâneo é o esvaziamento de sentido dos direitos humanos e fundamentais e das constituições do pós-guerra, fenômeno apontado por diversos estudiosos. Ronald Dworkin, jurista norte-americano, partindo do conflito entre republicanos e democratas nos EUA, fala da perda de common grounds, de consensos civilizatórios mínimos, para mostrar a erosão de significado desse pacto democrático humanista estabelecido no pós-guerra.

    Bobbio, Ferrajoli e Boaventura Sousa Santos

    Norberto Bobbio, a partir do caso Berlusconi, desvenda o que ele chama de “novos despotismos”. Luigi Ferrajoli se refere a esse movimento como “processo desconstituinte” fruto de “poderes selvagens”. O professor Boaventura Sousa Santos chama de “democracia de baixa intensidade”.

    Rafael Valim e Rubens Casara

    Aqui no Brasil, Rafael Valim chama a atenção para o “estado de exceção como forma jurídica do neoliberalismo”. Rubens Casara usa o termo “estado pós-democrático”, e eu classifico o fenômeno como medidas de exceção produzidas no interior do regime democrático.

    A aparência de respeito às instituições e ao Estado de Direito

    É necessário ressaltar que essa produção de medidas de exceção geradoras de um poder desconstituinte é uma forma mais aperfeiçoada de autoritarismo. São medidas de alcance cirúrgico, atingindo grupos ou pessoas segundo os interesses de quem as pratica, e mais flexíveis no plano político, convivendo com institutos e medidas democráticas e mantendo, portanto, uma aparência de respeito às instituições e ao Estado de Direito. Não é raro que um mesmo tribunal produza uma decisão que observe o princípio democrático e também medidas de exceção.

    A convivência entre estruturas autoritárias e democráticas em um mesmo sistema, ambas tendo caráter estrutural, gera uma complexidade que torna o fenômeno de difícil percepção. Isso porque não se trata de mera disfunção de um Estado democrático em pleno funcionamento, o que seria natural. É, na verdade, como alude Ferrajoli, uma patologia instalada, um novo paradigma capaz de obter uma eficácia autoritária sem o ônus de um governo declaradamente autoritário.

    A dificuldade em localizar o agente

    Os mecanismos autoritários das medidas de exceção foram de certa forma aperfeiçoados em relação aos dos governos de exceção. Assim, eles impõem maior dificuldade em localizar o agente, já que não há o lugar do ditador, e conseguem ter maior justificação discursiva no âmbito da narrativa histórica, já que não existe a figura da ditadura, que é mais facilmente identificável e passível de ser contestada e combatida.

    A grande tarefa democrática e humanista

    Portanto, hoje, a grande tarefa democrática e humanista da contemporaneidade é defender com veemência os direitos de liberdade face às medidas de exceção, incluindo esforços no campo discursivo para jogar luz e explicitar onde e quais são esses mecanismos autoritários que esfacelam os direitos fundamentais de todos nós diuturna e sorrateiramente, para que possam ser denunciados e combatidos.

    Notas

    1 Essa matéria recebeu o selo 016-2018 do Observatório do Judiciário.

    2 Para ler outras matérias do Observatório do Judiciário:

    https://jornalistaslivres.org/categoria/observatorio-do-judiciario

  • “A opção (do governo brasileiro) não respeitar está fora de questão.”

    “A opção (do governo brasileiro) não respeitar está fora de questão.”

    “A opção não respeitar está fora de questão.”
    Afirmou Paulo Sérgio Pinheiro em entrevista há pouco à Radio Brasil Atual (ouça aqui). O diplomata comentou a decisão, do Comitê de Direitos Humanos da ONU, de acolher pedido liminar que formulado pelos advogados do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
    A medida determinou que o Estado Brasileiro que “tome todas as medidas necessárias para permitir que o autor [Lula] desfrute e exercite seus direitos políticos da prisão como candidato nas eleições presidenciais de 2018, incluindo acesso apropriado à imprensa e a membros de seu partido politico” e, também, para “não impedir que o autor [Lula] concorra nas eleições presidenciais de 2018 até que todos os recursos pendentes de revisão contra sua condenação sejam completados em um procedimento justo e que a condenação seja final”
    Segue a reprodução da matéria da Rede Brasil Atual.
    Brasil ‘se obriga’ a cumprir decisão da ONU sobre Lula, diz Paulo Sérgio Pinheiro
    Ex-ministro do governo FHC, diplomata destaca que ordenamento jurídico brasileiro reconhece a jurisprudência das decisões do Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas

    Paulo Sérgio Pinheiro

    Decisão da ONU demonstra que a prisão e perseguição a Lula vem ganhando destaque internacional, segundo Pinheiro

    São Paulo – O diplomata Paulo Sérgio Pinheiro, ex-ministro de Direitos Humanos no governo Fernando Henrique Cardoso, afirmou que o Estado brasileiro deve acatar a decisão do Comitê de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas anunciada nesta sexta-feira (17) que reafirma os direitos políticos de Lula como candidato. Pela decisão, Lula deve ter livre acesso à imprensa e não pode ter sua candidatura barrada, antes que sejam apreciados os recursos contra a sua condenação em um “julgamento justo”. Em entrevista à Rádio Brasil Atual, Pinheiro destacou o peso da decisão e a relevância do órgão, que tem jurisprudência reconhecida pelo ordenamento jurídico brasileiro.

    “É claro que a grande imprensa vai dizer que não vale, que é só mais um órgão da ONU. Não é esse o caso. O Brasil se obrigou a cumprir as decisões exaradas pelo Comitê de Direitos Humanos. É uma decisão de um órgão que o Brasil reconheceu a sua competência”, disse o diplomata. “Não se trata de uma opinião de uma consultoria internacional qualquer”, reforçou Pinheiro, também professor aposentado de Ciência Política da Universidade de São Paulo  (USP).

    Ele diz que o governo brasileiro já deve ter sido informado da decisão, e deve encaminhá-la ao Poder Judiciário. Por meio do Decreto Legislativo 311, o Brasil incorporou ao ordenamento jurídico pátrio o Protocolo Facultativo que reconhece a jurisdição do Comitê da ONU e obriga o cumprimento das suas decisões.

    “A opção não respeitar está fora de questão. Pode ser que o governo venha a contestar a liminar, o que seria normal. O que se deve levar em conta é que há um fato novo, e o governo não pode simplesmente dizer que essa decisão não é obrigatória”, explicou Pinheiro.

    Ele destacou ainda que a decisão demonstra a repercussão que a perseguição a Lula vem ganhando no exterior. “Enquanto a imprensa brasileira atua politicamente contra a sua candidatura, tenho acompanhado a imprensa internacional, em jornais como o The Economist, Le Monde, The Guardian, e The Independent, que têm feito editorais mostrando o absurdo da prisão do ex-presidente Lula.”

    Notas

    1 Matéria publicada originalmente em: https://www.redebrasilatual.com.br/politica/2018/08/brasil-se-obriga-a-cumprir-decisao-da-onu-sobre-lula-diz-diplomata-1

    2 Essa matéria recebeu o selo 015-2018 do Observatório do Judiciário.

    3 Para ler outras matérias do Observatório do Judiciário:

    https://jornalistaslivres.org/categoria/observatorio-do-judiciario

  • Teria Fachin mudado ou apenas se revelado?

    Teria Fachin mudado ou apenas se revelado?

    “O que está em jogo é o que foi conquistado.”

    Essas palavras, acompanhadas de diversos elogios aos avanços sociais sob governos petistas, compuseram o discurso do ministro do STF Luiz Edson Fachin em apoio à reeleição de Dilma Rousseff em 2014. O vídeo do discurso foi amplamente divulgado na internet.

    Fachin chega a citar Goffredo Telles Júnior, em sua Carta aos Brasileiros: “Ao Povo é que compete tomar a decisão política fundamental , que irá determinar os lineamentos da paisagem jurídica em que deseja viver”.

    Talvez conviesse relembrar outro trecho da Carta: “Das leis, a fonte legítima primária é a comunidade a que as leis dizem respeito; é o Povo ao qual elas interessam – comunidade e Povo em cujo seio as ideias das leis germinam, como produtos naturais das exigências da vida.”

    Wilson Ramos Filho, professor como Fachin na Universidade Federal do Paraná, louvou o amigo em sua página no Facebook, em 20 de maio de 2015:

    “Somos colegas de turma e amigos há 38 anos. Nunca nos afastamos. Mais que tudo somos companheiros, na mais ortodoxa acepção deste significante.

    Conheço profundamente seu caráter, sua coerência e sua visão de mundo.

    Os que tentaram evitar sua nomeação representam o que há de pior no Brasil de hoje e de sempre. Com Fachin combatemos estes retrógrados por décadas.

    Esses atrasados tinham razões ideológicas para serem contra a nomeação de Fachin para o STF. A Presidenta tinha razão ao indicá-lo.

    Os que o apoiaram seguramente avaliarão de que lado se posicionarão doravante: ficarão com seus algozes (VEJA, FSP, PSDB/DEM/PPS) ou apoiarão o conjunto de forças sociais representado pela Presidenta por novos avanços? Fachin no STF não é a mesma coisa que qualquer outro.

    O PT não é como os outros partidos que jamais o indicariam ao Supremo, tanto que combateram sua indicação com a ferocidade típica da Direita.

    Estou feliz.”

     

    Na madrugada de 05 de abril de 2018, Fachin foi contrário à concessão e Habeas Corpus a Lula, foi contrário à presunção de inocência claramente expressa na Constituição brasileira, foi contrário à sua história, como se deduz pelo desabafo de Wilson Ramos, que se viu obrigado a rever sua posição, também em sua página no Facebook:

     

    “Meu amigo morreu.

    Entramos juntos na faculdade, em 1976. Fizemos política estudantil, perdendo todas as eleições. Rimos e choramos variadas vezes. Na vida é assim. Celebramos o nascimento de sua filha bem antes da nossa formatura.

    Meu amigo, inteligência vivaz, sempre tinha uma tirada, um sujeito de espírito. Nunca nos afastamos. Ele foi ser advogado público, lecionava Civil. Eu, advogado trabalhista.

    Tivemos muitas causas em comum, defendendo coletivos vulneráveis.

    Por culpa dele, grande incentivador, voltei para a vida acadêmica sem abandonar as lutas sociais. Devo-lhe isso. Um grande sujeito.

    Sempre houve reciprocidade, entretanto. Quando sua companheira precisou, eu era dirigente estadual da OAB. Na segunda vez deu certo. Fui de conselheiro em conselheiro por ela, não como favor. Ela tinha todas as credenciais e era a melhor opção.

    Meu amigo queria ser magnífico, com maiúscula. Novamente me envolvi por inteiro na pré-campanha. Na última hora, achou melhor não disputar. Meu amigo não gostava de perder.

    Fizemos viagens juntos, pelo Brasil, ao México, à Europa. Algumas vezes em casais, outras só os meninos, oportunidades em que esticávamos a prosa no bar dos hotéis. Eu adorava a sagacidade dele. Era um sujeito adorável sob vários aspectos.

    Apoiei-o quando quis ser nomeado, não sem antes enfaticamente desaconselhar. Dizia-lhe que aquilo lá iria acabar com a vida dele, perderia a privacidade, a liberdade e teria que conviver com um monte de gente que nada tem a ver conosco. Sentia-se convocado. Quase como se fosse predestinado. Ele tanto fez que conseguiu. Cumprimentei-o, explicitando que desta última vez, a em que ele foi escolhido, meu candidato era outro. Elegante, compreendeu. Era muito gentil esse meu falecido amigo.

    E deste jeito morreu. Não posso dizer que foi surpreendente seu passamento. Já vinha dando sinais. Não foi uma morte súbita. Mas muito me entristeceu. A morte tem dessas coisas, ainda que esperada ao cabo de longa enfermidade ou ultrapassado o limite razoável de anos, deixa um vazio, um aperto no peito, uma angústia, sei lá. No fundo, até o último momento, ficamos com a irracional esperança de que a morte não ocorra. Morrendo, só restam as virtudes. Na morte é assim.

    Morreu. Foi um grande amigo. Nunca mais riremos, choraremos, tomaremos vinho ou chimarrão. E já sinto saudades do meu finado amigo.”

    Wilson Ramos disse, hoje (17/08), à Rádio Brasil Atual:

     

    “Aquele meu amigo não existe mais. Existe uma outra pessoa, que hoje ocupa um cargo público e que, por razões dele, está tomando posições que são antagônicas àquelas que dele se esperavam (…) Trata-se do ministro Luiz Edson Fachin.

    E não é só uma decepção individual desse que foi colega dele. É uma surpresa para todo mundo da área jurídica a mudança radical de compreensão do ministr Fachin.

    Nunca se esperava que o ministro Fachin, comparado com o que havia sido o professor Fachin, ao longo de sua trajetória, nunca se esperava dele as posições que vem tomando. (…)

    Ainda há uma expectativa de que ele resolva exercer um papel histórico de tentar fazer com que o Supremo Tribunal Federal garanta a Constituição.”

     

    Teria Fachin mudado ou apenas se revelado? Quais teriam sido suas motivações? Seria razoável a esperança de Wilson Ramos?

     

    Notas:

    1 Vídeo em que Luiz Edson Fachin faz discurso de apoio a Dilma:

    2 Texto integral da Carta aos Brasileiros, lida no pátio das Arcadas em 8 de agosto de 1977:

    http://goffredotellesjr.adv.br/site/pagina.php?id_pg=30#um

    3 Para ouvir a íntegra da entrevista de Wilson Ramos Filho à Rádio Brasil Atual:

    https://soundcloud.com/redebrasilatual/perseguicao-juridico-politica-contra-lula-diminui-o-espaco-democratico-no-pais-diz-jurista

    4 Carta de Wilson Ramos Filho com o título “Meu amigo morreu”:

    https://www.facebook.com/xixo1234/posts/1684264994944046

    5 Essa matéria recebeu o selo 014-2018 do Observatório do Judiciário.

    6 Para ler outras matérias do Observatório do Judiciário:

    https://jornalistaslivres.org/categoria/observatorio-do-judiciario

  • PT representará contra Raquel Dodge, Thompson Flores e Gebran Neto

    PT representará contra Raquel Dodge, Thompson Flores e Gebran Neto

    por Rafael Tatemoto, para o Brasil de Fato

    O deputado Paulo Pimenta (RS), líder do PT na Câmara, afirmou nesta segunda-feira (13) que a entrevista de Rogério Galloro, diretor-geral da Polícia Federal, representou uma “confissão pública de um conjunto de crimes”.

    Em coletiva à imprensa, Pimenta afirmou que a legenda formulará uma série de representações contra Thompson Flores, presidente do Tribunal Regional Federal (TRF) da 4ª Região; João Pedro Gebran Neto, desembargador da mesma Corte; e Raquel Dodge, procuradora-geral da República.

    “O diretor geral da PF acaba revelando um conjunto de ações que são absolutamente ilegais.

    O que nós vimos nesta entrevista é uma espécie de confissão pública de um conjunto de crimes cometidos por altas alteridades.

    Diante da gravidade das informações nós vamos entrar com uma série de representações”, disse.

    Galloro, em entrevista ao Estado de S. Paulo, afirmou que a PF soltaria o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) após o habeas corpus concedido pelo plantonista Rogério Favreto, mas recebeu telefonemas de Flores e Dodge dando ordens contrárias à soltura.

    Nesta segunda-feira, o PT divulgou nota pública, assinada por Gleisi Hoffmann (PT-PR), presidenta da legenda, Lindbergh Farias (PT-RJ), líder da bancada no Senado e pelo próprio Pimenta.

    “A ilegalidade da prisão de Lula e da revogação do habeas corpus concedido a ele naquele domingo já haviam sido denunciadas pela comunidade jurídica. Mas é ainda mais escandalosa a desfaçatez de agentes do Judiciário e da Polícia Federal, ao expor em público sua conduta ilegal e as razões políticas que os moveram”, diz trecho do documento.

    Yuri Felix, advogado criminalista e professor de Direito, afirma que o caso revela

    “mais um capítulo de uma série de arbitrariedades em que se transformou o processo penal brasileiro”.

    “No momento em que um diretor da PF fala ‘nós fizemos a nossa interpretação’, nós temos uma crise de legalidade. Ele não está lá para interpretar, mas para cumprir o que foi interpretado. No processo penal, forma é garantia, não capricho. Exige um ritual. Isso revela que, por algum motivo, o presidente do Tribunal elegeu o ex-presidente como alguém que não deveria ser solto por razões pessoais”, critica.

    Felix explica que, tecnicamente, a ordem de soltura deveria ter sido cumprida imediatamente na ocasião, mesmo que viesse a ser revertida judicialmente dias depois. Nota da revista Veja, sem fontes citadas, afirma que Gebran Neto disse a amigos que reconhecia ter burlado o texto da lei para evitar a soltura de Lula.

    Notas

    1 Essa matéria foi originalmente publicada por Brasil de Fato em: https://www.brasildefato.com.br/2018/08/13/o-que-vimos-foi-uma-confissao-publica-diz-paulo-pimenta/

    2 veja aqui as declarações de Rogério Galloroao Estadão: https://jornalistaslivres.org/diretor-da-pf-conta-como-autoridades-se-uniram-para-descumprir-a-ordem-judicial-para-libertar-lula/

    3 Essa matéria recebeu o selo 013-2018 do Observatório do Judiciário.

    4 Para ler outras matérias do Observatório do Judiciário: https://jornalistaslivres.org/categoria/observatorio-do-judiciario/

  • MP pede arquivamento de investigação de morte por PMs da Rota no Moinho (SP)

    MP pede arquivamento de investigação de morte por PMs da Rota no Moinho (SP)

    Reproduzimos matéria de Gustavo Basso, de 15/08/2018, especial para a Ponte Jornalismo.

    Leandro foi morto em operação da PM na favela do Moinho, localizada no centro de SP, e testemunhas afirmam que, além de tiros, o jovem levou marteladas

    Leandro foi morto em operação policial da Rota na favela do Moinho, em SP | Foto: Sérgio Silva/Ponte Jornalismo

    O Ministério Público Estadual pediu, em junho deste ano, o arquivamento do inquérito da morte de Leandro de Souza Santos, 19 anos, por policiais da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), durante uma operação na Favela do Moinho em 27 de junho do ano passado.

    Para a promotoria, os dois policiais investigados que dispararam seis tiros dentro de uma casa na comunidade agiram em legítima defesa. Para o promotor Rubens Andrade Marconi, que pediu o arquivamento, as testemunhas reforçam o relato dos PMs Pierre Alexandre de Andrade e José Carlos Paulino da Costa.

    Segundo o boletim de ocorrência, os dois perseguiam Leandro pelas vielas da favela quando o jovem se refugiou na casa de uma vizinha. Lá, ele teria disparado dois tiros com um revólver calibre .38 contra os policiais que o perseguiam, que revidaram com seis tiros. Quatro deles atingiram Leandro e causaram sua morte, segundo o laudo criminalístico a que a Ponte teve acesso.

    No dia do ocorrido, no entanto, as testemunhas relataram outra história. “Tentei entrar na minha casa e eles [policiais] não deixaram, meu marido também não conseguiu entrar. Não houve troca de tiros, a gente estava ali fora, se tivesse, todos teriam escutado. Ficou um entra e sai de polícia aqui; eles ficaram quase uma hora e meia dentro da minha casa”, contou, à época, Lucimar Oliveira Santana, dona do imóvel onde Leandro foi morto, para o portal R7.

    Além disso, familiares afirmam que ele foi torturado com um martelo, também encontrado na cena do crime, mas periciado 8 meses depois do ocorrido, conforme documento abaixo. O laudo do Instituto de Criminalística revelou que o sangue de fato era humano, mas não conclui de quem era o sangue. O exame do IML em Leandro afirma que ele não possuía marcas de agressões além das balas que atingiram o peito e causaram sua morte.

    A mãe de Leandro e a irmã dele, Letícia Souza, chegaram logo depois dos disparos. Odete contou, à época, que, ao perguntar sobre Leandro para os policiais que estavam do lado de fora do barraco, em apoio aos PMs da Rota, ouviu apenas mentiras. “Seu filho está bem, mãe, não fizemos nada de errado com ele”.

     

     

    Perícia comprova presença de sangue humano, mas não identifica de quem seria | Foto: reprodução

    Letícia relatou ter ouvido sons abafados de tiros: “Eu o vi quando a PM entrou; ele estava com amigos sob efeito de cocaína, e assim que apontaram a espingarda, se assustou e correu para dentro da casa do vizinho. Entraram muitos policiais no barraco, e eles ficaram com meu irmão lá por uns 30, 40 minutos, quando escutei os barulhos abafados”, contou.

    Coordenador da Comissão da infância e da juventude do Condepe (Conselho Estadual de Direitos Humanos de São Paulo), Ariel de Castro Alves critica a ação do MP.

    “As versões das testemunhas na época não foram levadas em consideração

    nas investigações da polícia civil, nem no parecer do MP.

    Os PMs dizem que no dia, na hora dos fatos, não encontraram os familiares,

    mas os irmãos dele foram expulsos do local e

    faltaram testemunhas que reforçassem os depoimentos dos familiares”.

     

    Para ele, o relatório apresentado pela polícia civil ao MP não é claro:

    “Eles só deixam à disposição o passo-a-passo da investigação;

    em caso de dúvidas, como o levantado pelo laudo residuográfico,

    ou as divergências das testemunhas,

    o MP deveria ter pedido mais diligências, mas preferiu aceitar o relato oferecido”.

     

    O inquérito policial militar assinado em 18 de setembro de 2017 considera que o caso é inconclusivo, aponta fragilidade nas provas de que houve alteração da cena do crime e encaminha o caso para análise do Ministério Público Militar recomendando que a Corregedoria peça novas diligências a fim de conseguir novas provas. A Promotoria Militar, no dia 3 de outubro do ano passado, remeteu o caso à Justiça comum.

    Sem evidência de disparo

    O laudo residuográfico feito pelo Instituto de Criminalística não encontrou nas mãos de Leandro traços de chumbo metálico nas mãos, provenientes de disparos de arma de fogo. O exame também não detectou resíduos nas mãos dos policiais, porém observa que estas ausências podem ser explicadas por falta de “preservação adequada da região de interesse do momento do disparo até a coleta da amostra”. A coleta só foi realizada três dias depois da operação, quando foi solicitado pelo DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa).

    “Os policiais teriam condições de lavar as mãos, já o Leandro, não,

    já que estava morto e o corpo à disposição da perícia e do IML.

    Além disso, os policiais admitem que realizaram os disparos contra ele”,

    afirma Castro Alves.

    Essa situação de laudos falhos ou inconclusivos da perícia de armas e munições apareceu em pesquisa feita pela Ouvidoria das polícias na segunda-feira (13/8). O estudo “Pesquisa sobre o uso da força letal por policiais de São Paulo e a vitimização policial” traz laudo de um caso em que a perícia informa que “em face do lapso de tempo decorrido entre a data da ocorrência e a entrega das peças neste núcleo para exame, bem como a pouca estabilidade dos produtos oriundos da combustão da pólvora, o resultado deste exame ficou prejudicado para as armas em questão”. A situação foi corroborada pelo ouvidor Benedito Mariano: “Há casos em que havia disparo de arma do policial, inclusive registrado no b.o., mas não aparece no exame. O laudo residuográfico é imprestável”, declarou.

    Além disso, não foram encontrados pelos peritos legistas duas balas de calibre .38, como do revólver supostamente usado por Leandro, dentro do barraco. Um fragmento em procedência clara foi identificado como sendo desse calibre, enquanto outro pedaço de chumbo não pode ser reconhecido pelos peritos. Ao todo foram apresentados seis cartuchos disparados, dois de pistola .40, pertencente aos policias, e dois de revolver que supostamente pertencia a Leandro.

    “Durante todo o inquérito o MP não solicitou nenhum esclarecimento, produção de prova ou diligência.

    É um caso que mostra que o Ministério Público muitas vezes dá aval para a violência policial,

    não questionando ou fiscalizando os inquéritos policiais.

    Simplesmente acatando as conclusões e as versões policiais civis e militares.

    Pela falta de outras provas, acabou prevalecendo a versão dos policiais,

    como de costume nos casos de mortes envolvendo militares”,

    critica Castro Alves.

    A ação da PM começou às 10h10, de acordo com os documentos oficiais, e segundo os moradores, Leandro foi retirado pelos fundos da favela por volta das 11h30. Segundo o relatório da Santa Casa, para onde foi levado, ele já estava morto às 11h14, portanto antes de ser removido. Uma resolução de 2013 da SSP (Secretaria de Segurança Pública) proíbe policiais de socorrerem vítimas em confrontos com a própria polícia.

    Vizinhos que presenciaram a ação policial apontam outras irregularidades. Um jovem de 16 anos afirmou na época da morte que “estavam todos [policiais] sem patente, sem numeração, sem nada. Havia mais ou menos cinco carros e nenhum policial tinha identificação. Eu fiquei parado um tempo na frente e nenhum tinha nada que os identificasse”.

    Um mês depois do ocorrido, reportagem da Ponte – vencedora do Prêmio Vladimir Herzog do ano passado – mostrou que, segundo relatos dos moradores do Moinho, a repressão policial aumentou na região. Além disso, a reportagem mostra que o local do crime não foi preservado, sofrendo, portanto, alterações.

    Os dois policiais que, de acordo com o boletim de ocorrência, assumiram o disparo de quatro tiros cada contra Leandro, já estiveram envolvidos em outros episódios de “morte decorrente de oposição a intervenção policial”, como são registrados os casos em que o suposto criminoso é morto ao disparar contra policiais. O policial da Rota José Carlos Paulino da Costa estava em um caso em 2009, e Pierre Alexandre de Andrade tem dois casos de morte de suspeito.

    A reportagem da Ponte tentou desde segunda-feira conversar com o promotor Rubens Andrade Marconi, mas até a publicação não obteve retorno. Houve também tentativa de contato com os familiares de Leandro Souza Santos, mas até o momento, sem sucesso.

    Notas

    1 Essa matéria foi publicada originalmente em https://ponte.org/mp-pede-arquivamento-de-investigacao-de-morte-por-pms-da-rota-no-moinho-sp/

    2  Essa matéria recebeu o selo 012-2018 do Observatório do Judiciário.

    3 Para ler outras matérias do Observatório do Judiciário: https://jornalistaslivres.org/categoria/observatorio-do-judiciario/