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  • Dilma: As 12 falsificações do discurso de Bolsonaro na ONU

    Dilma: As 12 falsificações do discurso de Bolsonaro na ONU

    Por Dilma Rousseff

    Praticamente não há uma sentença no discurso de Bolsonaro na ONU que não cometa pelo menos uma falsificação, uma manipulação, uma adulteração dos fatos. O Brasil que Bolsonaro descreve não existe, e não existe por causa dele.

    As maiores florestas brasileiras ardem em chamas, com recordes de incêndios, e ele culpa os índígenas, que são as primeiras vítimas desses crimes ambientais.

    Os maiores biomas do país são consumidos pelo desmatamento ilegal, e ele diz que exerce controle rigoroso sobre a ação dos destruidores das florestas, o que é falso.

    O Brasil voltou a registrar a mazela da fome, que maltrata mais de 10 milhões de pessoas, e ele se jacta de estar alimentando o mundo.

    Quase 140 mil brasileiros já morreram de Covid-19, e ele diz que agiu com rigor para combater a doença. ao mesmo tempo em que culpa os governadores pelas mortes.

    Bolsonaro dissimula de maneira contumaz e o faz por cálculo, não por ignorância. Mesmo quando fala na ONU, não é ao mundo que está se dirigindo, mas ao seus seguidores mais radicalizados, que ele mantém mobilizados à base de fake news e deturpações da verdade. Seu objetivo é manter a iniciativa política e a polarização. Foi assim que, na Itália dos anos 1910 e 1920 e na Alemanha dos anos 1930, o fascismo e o nazismo cresceram até chegar ao poder: mobilizando permanentemente uma minoria de seguidores agressivos, capazes de intimidar o campo democrático da sociedade.

    O mundo já não acredita em Bolsonaro. Parte dos brasileiros já não acredita nele. Mas não há sinal de que ele pretenda parar. Terá de ser parado.

    No texto a seguir, é possível verificar pelo menos 12 falsificações que Bolsonaro apresentou ao mundo, ontem, no seu discurso.

    Por Nei Lima

    1

    A fala – “Desde o princípio, alertei, em meu país, que tínhamos dois problemas para resolver: o vírus e o desemprego, e que ambos deveriam ser tratados simultaneamente e com a mesma responsabilidade.”

    A verdade – Bolsonaro negou a gravidade da doença. Tratou-a com desdém, afirmando que era uma gripezinha. Não tomou medidas efetivas para garantir o emprego, propôs R$ 200 de auxílio emergencial e foi apenas diante da pressão da sociedade e da iniciativa da oposição no Congresso que acabou sendo aprovado o valor de R$ 600. Por culpa do governo, o Brasil foi o país que menos aplicou testes. Bolsonaro foi contrário ao isolamento e distanciamento social, ele próprio promovendo e participando de aglomerações e desprezando o uso de máscaras. Defendeu e expandiu a produção de cloroquina, enquanto deixava de adquirir analgésicos para a implantação de tubos respiratórios nos doentes graves.

    2

    A fala “Por decisão judicial, todas as medidas de isolamento e restrições de liberdade foram delegadas a cada um dos 27 governadores das unidades da Federação. Ao Presidente, coube o envio de recursos e meios a todo o País.”

    A verdade – Bolsonaro vem se escondendo por trás de uma decisão do STF que, supostamente, transferia o poder de enfrentar a Covid-19 para estados e municípios. Trata-se de uma versão inverídica e absurda, pois há uma clara obrigação constitucional da Presidência da República de coordenar ações diante da gravidade da crise sanitária, que já matou 138 mil pessoas; também somos uma Federação e, assim, há o dever intransferível de a União articular a ação dos 26 estados, o Distrito Federal e os 5.570 municípios. O Supremo nunca eximiu o governo federal do dever de agir, nem transferiu seu poder. Apenas deu a estados e municípios o direito de também tomar decisões sobre medidas sanitárias, de isolamento e de distanciamento social, segundo suas circunstâncias específicas.

    3

    A fala – “Nosso governo, de forma arrojada, implementou várias medidas econômicas que evitaram o mal maior: concedeu auxílio emergencial em parcelas que somam aproximadamente 1000 dólares…”

    A verdade – Não houve arrojo, mas mesquinharia. Bolsonaro tentou impor um auxílio emergencial de apenas R$ 200 por mês. O auxílio só foi de R$ 600 por decisão do Congresso, proposta pelo PT e demais partidos de oposição, impondo uma derrota ao governo. Bolsonaro insinua, na fala, que pagou mil dólares por mês. Mas mesmo somadas, as parcelas do auxílio emergencial estarão longe de totalizar mil dólares. Se cumprir o que anunciou, o governo terá pago, até o fim de dezembro, 5 parcelas de R$ 600 e no máximo 4 parcelas de R$ 300. Isto totalizará, na melhor hipótese, R$ 4.200, muito abaixo de mil dólares, que são R$ 5.470. A iniquidade do governo também se fez sentir no tratamento dado aos que têm direito ao auxilio emergencial, na forma de milhões de exclusões injustificadas, atrasos, filas e aglomerações nas agências da Caixa, aplicativos que não funcionam — um labirinto burocrático que transformou a busca por ajuda num grande sofrimento.

    4

    A fala – “[Nosso governo] assistiu a mais de 200 mil famílias indígenas com produtos alimentícios e prevenção à Covid.”

    A verdade – Do projeto aprovado no Senado de apoio às comunidades indigenas, Bolsonaro vetou artigos que obrigavam o governo federal a fornecer água potável, material de higiene e limpeza e cestas básicas às aldeias. Em outro momento, proibiu a entrada de equipes da organização Médicos sem Fronteiras nas comunidades indigenas.

    5

    A fala – “Não faltaram, nos hospitais, os meios para atender aos pacientes de covid.”

    A verdade – O governo federal falhou fragorosamente no planejamento e na distribuição de máscaras, EPIs e respiradores aos hospitais de todo o país. A testagem é uma das mais baixas do mundo. A falta de testes suficientes é uma das causas de o Brasil ter se tornado um dos epicentros da doença no mundo. A maior parte dos recursos federais destinados ao combate à pandemia nos estados não foi liberada de fato, segundo várias reportagens. A maioria das máscaras e equipamentos prometidos não chegou aos hospitais e os estados e prefeituras foram obrigados a agir por conta própria. Faltaram equipamentos e medicamentos nos hospitais, sobrou cloroquina nas prateleiras do ministério da Saúde, comandando por um militar especializado em logística.

    6

    A fala – “O caboclo e o índio queimam seus roçados em busca de sua sobrevivência, em áreas já desmatadas. Os focos criminosos são combatidos com rigor e determinação.”

    A verdade – Praticamente todos os casos de incêndios na Amazônia e no Pantanal identificados ou suspeitos de ação criminosa foram cometidos por fazendeiros, grileiros e invasores de terras públicas e reservas florestais e terras indigenas. Sentiram-se autorizados para tal diante do desmonte das políticas de contenção do desmatamento e da fiscalização. Os caboclos e os indígenas são, sabidamente, vitimas dos incêndios e do desmatamento criminosos, não seus autores. Dados obtidos pelo sistema de monitoramento da NASA mostram que 54% dos focos de incêndios na Amazônia estão relacionados ao desmatamento. No Pantanal, organizações de proteção ambiental informam que incêndios iniciado em 9 fazendas particulares destruiram 141 mil hectares, quase a área da capital de São Paulo. Cinco destas fazendas estariam sendo investigadas pela PF.

    7

    A fala “Lembro que a Região Amazônica é maior que toda a Europa Ocidental. Daí a dificuldade em combater, não só os focos de incêndio, mas também a extração ilegal de madeira e a biopirataria. Por isso, estamos ampliando e aperfeiçoando o emprego de tecnologias e aprimorando as operações interagências, contando, inclusive, com a participação das Forças Armadas.”

    A verdade – A extração ilegal de madeira e os incêndios criminosos não são combatidos devidamente por causa da leniência deliberada do governo Bolsonaro, que desde ao assumir desautorizou, fragilizou e desmontou a fiscalização, assim como cometeu ataques contra o INPE, tendo, inclusive, demitido seu diretor, um dos cientistas mais respeitados do Brasil. O ministério do Meio Ambiente não apenas suspendeu o trabalho de fiscalização, e cancelou operações, como tem protegido os verdadeiros criminosos ambientais. Chegou a trazer a Brasília, em aviões da FAB, para reunião com o ministro, um grupo de garimpeiros ilegais que atuava em reserva indígena. Em famosa reunião ministerial, filmada e divulgada, o ministro defendeu que o governo aproveitasse a distração criada pela pandemia para, como disse, “passar a boiada” de decretos e portarias que facilitem os crimes ambientais.  

    8

    A fala “Somente o insumo da produção de hidroxicloroquina sofreu um reajuste de 500% no início da pandemia.”

    A verdade – No Brasil e no mundo, a comunidade científica séria e conceituada alertou o tempo todo, desde o início da pandemia, para o fato de que a cloroquina e a hidroxocloroquina não têm eficácia contra a Covid-19, em nenhum estágio da doença, e podem, ao contrário, acarretar efeitos colaterais que levam à morte. Até mesmo Trump, a quem Bolsonaro imitou agindo como garoto-propaganda de um remédio perigoso, abandonou a defesa da cloroquina e, para livrar-se do medicamento que parou de indicar, despachou o estoque para o Brasil.

    9

    A fala “No campo humanitário e dos direitos humanos, o Brasil vem sendo referência internacional.”

    A verdade – Só se for referência negativa. Desde a posse de Bolsonaro, a situação dos Direitos Humanos no Brasil vem se deteriorando, a ponto de provocar advertências da Alta comissária de Direitos Humanos da ONU, Michelle Bachelet, que denunciou a miliarização de instituições civis, a violência policial, e ataques a ativistas, líderes comunitários e jornalistas.

    10

    A fala “Em 2019, o Brasil foi vítima de um criminoso derramamento de óleo venezuelano, vendido sem controle.”

    A verdade – Não há nenhuma conclusão ou prova de que a Venezuela tenha contribuído para o derramamento de óleo no Atlântico, trazido pelas correntes marítimas à costa brasileira. O que ficou demonstrado, sobejamente, foi a demora e a inação do governo brasileiro, que levou quase três meses para tomar as primeiras providências em relação ao desastre que atingiu o litoral de 10 estados.

    11

    A fala “No primeiro semestre de 2020, apesar da pandemia, verificamos um aumento do ingresso de investimentos, em comparação com o mesmo período do ano passado. Isso comprova a confiança do mundo em nosso governo.”

    A verdade – A imprensa informa hoje que do ano passado para cá houve, na verdade, uma queda de 30% nos Investimentos Estrangeiros Diretos no Brasil. E nos primeiros oito meses deste ano o Brasil sofreu uma fuga recorde de capitais, que chegou a US$ 15,2 bilhões. Outra notícia dá conta de que, por causa do estado de paralisia do MEC desde a posse de Bolsonaro, o país deixou de receber os repasses de um empréstimo de US$ 250 milhões do Banco Mundial para dar suporte à reforma do ensino médio.

    12

    A fala “O homem do campo trabalhou como nunca, produziu, como sempre, alimentos para mais de 1 bilhão de pessoas. O Brasil contribuiu para que o mundo continuasse alimentado.”

    A verdade – O Brasil de fato continua sendo um grande produtor e exportador agropecuário, mas dilapidou a agricultura familiar, que até 2014 era responsável pela produção de 70% dos alimentos consumidos pelo povo brasileiro. Por esta e outras escolhas de índole neoliberal, o Brasil voltou a registrar a calamidade da fome, que aumentou em 43,7% em cinco anos, atingindo mais de 10 milhões de brasileiros.

  • O Brasil, a imprensa e as ilustrações

    O Brasil, a imprensa e as ilustrações

    Uma pessoa escreveu algo mais ou menos assim: “por que a imprensa não estampa simplesmente que Bolsonaro MENTIU na ONU?”. Seria um grande avanço, pensei, nivelar de uma vez por todas as informações entre as centenas de progressistas em ação nesse país (ah, são milhares e milhares de militantes? perdão, não sabia!) sobre o fato de a imprensa brasileira ser parte do problema.

    Fabianna Freire Pepeu

    A Folha, Grupo Globo, Estadão, as revistas de grande circulação (ainda existe isso?), além dos grandes portais, alimentam uma cadeia de comunicação por todo o país, construindo e destruindo realidades, mantendo pessoas em alta conta ou jogando no ostracismo temas e outros nomes e, assim, a vida das notícias medíocres (ou distorcidas, ou pouco investigadas, ou pouco checadas, ou superficiais, ou mesmo sem cabimento) segue como se as coisas fossem isso mesmo.

    A Folha, o Grupo Globo, o Estadão, as revistas de grande circulação (ainda existe isso?) e também os grandes portais de notícias alimentam uma cadeia de comunicação por todo o país, construindo e destruindo realidades, ora mantendo pessoas em destaque ora jogando no ostracismo. Assim, a vida das notícias medíocres — ou distorcidas ou pouco investigadas ou sem nenhuma checagem ou superficiais ou mesmo sem cabimento — segue como se as coisas fossem desse jeito mesmo.

    A imprensa comercial, grande imprensa, imprensa dominada, PIG, mídia golpista — ou como você preferir apelidar —, pertence, e é administrada, ao mesmo grupo de pessoas responsável por estarmos onde estamos.

    Estou me controlando para não usar uma partícula que, dependendo da sua função gramatical, não nos salva de nada, mas não tem outro jeito.

    Como estariam as coisas hoje, apenas como um mero exemplo das distorções regulares, SE a imprensa não tivesse dado espaço para a falsa dúvida de Aécio Neves sobre a legitimidade da vitória de Dilma Rousseff? Não é demais sublinhar que não havia um único indício de falta de lisura naquele processo eleitoral.

    Uma fake news foi amplamente divulgada pela mídia — mas, deve ter sido porque, naquela época, o consórcio de veículos não checava a veracidade do que publicava. Uma notícia falsa foi criada por um grandíssimo maloqueiro sem nenhum caráter — e, talvez, ele seja algo muito pior, mas isso são não será nunca devidamente investigado. 

    E, de mais a mais, a própria estrutura midiática que deu espaço à “dúvida eleitoral” de um pulha é a mesma estrutura que o largou de mão para sempre, amém.

    Essa volta ao mundo das coisas, agora até já antigas, para dizer que a tal grande imprensa, SE quisesse, derrubaria Bolsonaro com a mesma brevidade que dura uma partida de futebol americano.

    A grande imprensa não tem um apreço especial por Bolsonaro. Muito pelo contrário. Não perde a oportunidade para mostrar o lado violento, tosco, dissimulado, oportunista, populista, desrespeitoso, indisciplinado e intelectualmente limitado desse sujeito. Porque, acreditem-me, a situação poderia ser ainda pior, caso essa mesma imprensa enaltecesse o nome desse miliciano perverso e medonho.

    A grande imprensa não gosta de Bolsonaro, mas há Mourão, Guedes, Salles, Tereza Cristina, que, individualmente e juntos, vão dando vida a um projeto com o qual essa mesma grande imprensa está envolvida até o pescoço, desde sempre, porque essa tem sido a história do Brasil.

    E que projeto é esse? A essa altura do campeonato, toda pessoa de orientação mais à Esquerda (ou pelo menos atenta e honesta) sabe que o projeto, dito de modo bem simples, é o de manter os poucos ricos, ricos; e os muito pobres no mesmo lugar para onde foram, desde o fim da escravidão mais explícita.

    A mídia é parte dessa engrenagem que mantém a estrutura sem fendas. A gente não pode esperar que uma borboleta relinche porque sua natureza é outra. A gente não pode perder tanta energia, como hoje faz a ultradireita, xingando a Folha de ‘Falha’ e gritando ‘Fora Globo’.

    Esse é um ativismo que não dá mais conta da complexidade do cenário político nacional.

    Também, me perdoem, mas vou precisar dizer isso: não é verdade que Bolsonaro não caiu ainda porque as pessoas não puderam, em função da pandemia, ocupar as ruas em protesto com faixas e cartazes nos quais é possível ler que o “Povo Unido Jamais Será Vencido”.

    Levei muito tempo para entender isso, mas, eu lhes asseguro, a gente só consegue caminhar verdadeiramente quando perde certas ilusões. O certo é que a estrada é longa e é melhor apressar o passo.

  • As eleições nos EUA e Bolsonaro na ONU

    As eleições nos EUA e Bolsonaro na ONU

    Acompanhamos as convenções dos partidos democrata e republicano nos Estados Unidos que decidiram pelas candidaturas de Joe Biden/Kamala Harris e Donald Trump/Mike Pence respectivamente. Como era de se esperar, os protestos de rua, associados ao movimento Black Lives Matter e à derrubada de estátuas, foram mencionados mais de uma vez em diversos discursos em ambas as convenções.

    Mayra Marques – Mateus Pereira – Valdei Araujo (UFOP)*

    Em novembro saberemos se os eleitores estadunidenses escolherão viver em seu presente em constante atualização, como promete o discurso quase mágico de Donald Trump ou continuar a história imperfeita e inconclusa que Barack Obama descreveu em seu próprio discurso na convenção democrata:

    “Estou em Filadélfia, onde a Constituição foi escrita e assinada. Não foi um documento perfeito. Ela permitiu a desumanidade da escravidão, e falhou em garantir às mulheres  – e mesmo àqueles homens sem propriedade –  o direito de participar do processo político. Mas inserido neste documento estava a estrela polar que guiaria as gerações futuras; um sistema de governo representativo – uma democracia – através do qual podemos compreender melhor nossos mais elevados ideais. Através da Guerra Civil, e amargas disputas, aperfeiçoamos esta Constituição para incluir as vozes daqueles que foram deixados de fora. Gradualmente fizemos esse país mais justo, mais igualitário e mais livre”.[1]

    Em um contexto em que os personagens históricos estão no centro de polêmicas, Obama escolheu cuidadosamente o lugar (o Museu da Revolução Americana), ao canto dedicado à escrita da Constituição.[2] A intenção imediata era reforçar o diagnóstico de que Trump representa um risco aos fundamentos da democracia estadunidense. O retrato que aparece no painel de fundo talvez não tenha sido tão planejado, embora pudesse ter sido excluído da imagem com uma simples mudança de ângulo. Trata-se de James Madison, considerado o pai da Constituição e presidente dos Estados Unidos entre 1809 e 1817. As posições de Madison a respeito da escravidão estavam longe de serem avançadas para o período. Como outros pais fundadores, esteve de vários modos envolvido com a infame instituição. A presença de Madison ao fundo do cenário de Obama ilustra bem a imperfeição da Constituição a que ele se refere no discurso, e uma disposição de comemorar a história sem esconder seus defeitos. 

     Mesmo que possamos criticar Obama confrontando seu discurso de progresso da igualdade com os resultados pífios e contraditórios de seus dois mandatos, podemos reconhecer o êxito de seu esforço em recuperar aspectos do passado que parecem ainda servir à sua história, neste caso o legado democrático, revolucionário e a consciência das injustiças raciais, aspectos que podem estar associados à Revolução Americana e a nomes mais avançados na crítica da escravidão como Alexander Hamilton a partir de qualquer análise historicamente fundamentada. Este caso é um exemplo de como podemos elevar nossas exigências éticas e políticas com relação ao passado e ainda assim encontrar nele elementos de orientação para o futuro.

    Dos dois lados do espectro político nos EUA se explora hoje uma retórica de tempos de crise, fora da normalidade, e, por isso, decisivos para o futuro. Alguns analistas chamam essa linguagem de retórica existencial, no sentido de produzir um clima de que é a própria sobrevivência de um estilo de vida que estaria em jogo nas eleições. Estes analistas lamentam que essa atmosfera esteja esvaziando a campanha do debate de temas mais diretamente ligados aos problemas cotidianos da maioria dos cidadãos. A disputa aberta nos últimos dias pelo preenchimento de mais uma vaga na Suprema Corte, a versão estadunidense de nosso STF, tende a agravar a polarização. Mas é indubitável que Trump é ainda quem melhor tem explorado a linguagem da ameaça existencial: “Apesar de toda nossa grandeza como nação, tudo o que alcançamos está agora ameaçado. Esta é a mais importante eleição da história de nosso país”.[3] 

    O discurso de Obama, e em menor medida, também o de Biden, promovem uma visão liberal de progresso transformativo a partir de um legado histórico ambivalente, o mal e o bem estão inscritos na história estadunidense, luzes e trevas, cabe a cada geração escolher o caminho correto. Em um dos momentos mais graves de seu discurso, marcado por imagens de luz e trevas e por um combate pela alma da nação, Biden afirma: “A História nos confiou mais uma tarefa urgente. Seremos nós a geração que finalmente irá limpar a mancha do racismo de nosso caráter nacional?”[4] 

    Discursando alguns dias após Biden, Trump responderia a diversos pontos do discurso do seu oponente, pintando uma imagem muito mais simplificada e homogênea da história. Em sua visão mítica, os Estados Unidos e seu povo são a maior e talvez única fonte de grandeza, justiça e liberdade no mundo, tudo isso garantido por eleição divina. Não há em seu discurso qualquer vestígio de crítica ao passado, a história surge como algo uniforme e a luta não é interna, entre anjos e demônios em uma mesma alma, mas entre a verdadeira América e seus detratores. O bem e o mal aqui representam polos opostos e uniformes: “Entendemos que a América não é uma terra  mergulhada em trevas, a América é a tocha que ilumina o mundo inteiro”.

    Enquanto as narrativas da história apresentadas pelos Democratas são facilmente enquadradas no repertório do pensamento histórico moderno, no discurso de Trump o recurso à história é algo mágico, o tempo é apresentado como a atualização de uma essência miraculosa do ser americano. A única alternativa a essa atualização é a sua destruição por forças externas à sua essência. Assim, em seu discurso, ouvimos incessantemente a promessa de mais do mesmo, não há um princípio transformativo ou um campo de possibilidades, apenas mais América para os verdadeiros americanos, conduzidos a um “futuro maior e mais brilhante”.

    “O que uniu gerações passadas foi a inabalável confiança no destino Americano, e uma fé inquebrantável no Povo Americano. Eles sabiam que nosso país é abençoado por Deus, e que tem um propósito especial no mundo. Foi essa convicção que inspirou a formação de nossa união, nossa expansão para o oeste, a abolição da escravidão, a aprovação dos direitos civis, o programa espacial e a derrocada do fascismo, da tirania e do comunismo”.

    Como se vê, não é um princípio histórico (como o governo representativo e a democracia em Obama) o que guia a história dos Estados Unidos para Trump, mas a eleição divina. No lugar de um progresso transformativo, a história é apenas a atualização desse destino em expansão – sempre mais. Por isso ele recusa em diversos planos o tema do resgate da alma americana levantada por Biden; Deus é a única garantia da pureza nacional e a cruzada moral democrata é transformada em uma guerra cultural que pretende obrigar a população a uma forma de pensamento único, submetê-los a novos códigos de linguagem e comportamento que seriam essencialmente alheios à verdadeira alma nacional:

    “Precisamos recuperar nossa independência dos mandatos repressivos da esquerda. Os americanos estão exaustos de tentar acompanhar a última lista de palavras e frases aprovadas, e dos decretos políticos cada vez mais restritivos. Muitas coisas têm nomes diferentes agora, e as regras estão em constante mudança. O objetivo da cultura do cancelamento é fazer com que os americanos decentes vivam com medo de serem demitidos, expulsos, envergonhados, humilhados e excluídos da sociedade como a conhecemos”.

    Em outras seções do discurso, Trump repete sua crença de que os Estados Unidos são únicos e superiores a qualquer outra nação, reforça o mito da terra das oportunidades para todos, independente de suas origens. Diríamos, terra das oportunidades, mas não das possibilidades, nesse pacto mítico, seu sucesso ou fracasso depende apenas do quanto você decidiu ser como todo e qualquer americano eleito por Deus. O seu fracasso só pode ser sinal de que não conseguiu ser americano o bastante, pois não há falhas no projeto nacional. A forma como em seu discurso ele descreve a conquista do Oeste é emblemático, alguns aventureiros juntaram seus pertences, a Bíblia e ocupando as terras ilimitadas, abrindo cidades, indústrias e comércio como em um passe de mágica – nenhuma palavra sobre o massacre aos nativos americanos, apenas a sentença mágica: “Os americanos constroem o futuro, não destruímos o passado!”. O passado e o futuro de quem, cara pálida?

    Embora em seu discurso hoje na ONU Bolsonaro tenha se afastado da retórica antiglobalização e feito pequenos acenos aos órgãos de governança global, sua matriz discursiva e seu recurso à história tem semelhanças estruturais inequívocas com o imaginário de Trump. Em nenhum outro lugar isso fica tão evidente quanto em suas palavras de encerramento: “O Brasil é um país cristão e conservador e tem na família a sua base”.[5] Todos os brasileiros que sejam diferentes dessa descrição não são brasileiros o suficiente, são provavelmente candidatos a inimigos da nação, sob constante ameaça de extermínio. Qualquer história do Brasil que possa ser contada a partir dessa definição será uma peça de ficção violenta e excludente. As raízes do sucesso dessas ilusões autoritárias precisam ser buscadas no fracasso das políticas neoliberais e na imensa crise de coesão social que nos legou.

    Como essa escolha pode afetar o futuro das esquerdas?

    Acreditamos que nossa crise de coesão social tem causas reais, presentes no nosso cotidiano: um exemplo é o aumento da população carcerária, especialmente de jovens negros; isso mostra que o passado-presente da escravidão e do racismo não é apenas uma memória/passado sensível, mas uma presença estrutural na vida social brasileira e estadunidense. Também a pandemia de Covid-19 mostrou que, durante uma crise sanitária, as pessoas pobres e negras se tornam mais vulneráveis. Sem resolver este problema estrutural, a disputa cultural tem seus limites.

    O debate sobre as estátuas e sobre a história é importante para revelar esse passado-presente, e não apenas disputar representações sobre um suposto passado morto. A crise de solidariedade que vivemos resulta do fracasso de certos projetos nacionais em realizar suas promessas para a maior parte da população. Falta emprego e oportunidades; a concentração de renda atinge patamares inéditos; ainda não há tratamento igual para homens e mulheres, brancos e negros, ricos e pobres. Estes ideais e valores, além de incompletos e imperfeitos, parecem até mesmo retroceder em nosso tempo.

    Em um momento em que a crítica ou o elogio dogmático e naturalizante a um genérico “projeto ocidental” entrou na ordem do dia na disputa política, é preciso reforçar avaliações mais cuidadosas. Contra os que, vestidos de novos cruzados, celebram a sacralidade da civilização ocidental e consagram Donald Trump ou Jair Bolsonaro seus novos paladinos, pouco temos o que dizer. Mas, no campo daqueles que de boa fé buscam formas de enfrentar o grande desafio de defesa da democracia, vale insistir sobre a necessidade de diferenciarmos duas matrizes de crítica ao projeto moderno-ocidental. Há elementos fundamentalmente autoritários, racistas e aporéticos no projeto que devem ser revisados e abandonados, mas também há valores e ideais que ainda podem nos servir, que no lugar de serem abandonados precisam ser aprofundados e atualizados.

    Parte do “novo sentimento antidemocrático” e da frustração causada pela desigualdade social é fruto da não realização desses valores modernos, em especial, da democracia, ao menos não de forma satisfatória: a igualdade prometida pela universalidade, a fraternidade prometida pelo reconhecimento do mérito e a liberdade, não apenas permanecem como promessas não plenamente cumpridas, como foram distorcidas para legitimar projetos de opressão. É possível que esses valores sejam atualizados em sentido propriamente histórico para atender as demandas do presente e o aprendizado das ruas.

    O futuro da esquerda passa por enfrentarmos a perda de solidariedade social aberta pela crise entre o capitalismo e valores democráticos, em especial, atacar as causas da concentração de renda e da piora nos indicadores sociais, e avançar na compreensão dos modos de produção da desinformação, para alargar o controle social das fontes de produção e circulação de informação, combatendo o negacionismo da história, da ciência e dos valores éticos.

    Isso deverá levar a uma ocupação cidadã das novas estruturas da esfera pública e ampliar as oportunidades para o debate franco e honesto como forma de mediar conflitos e produzir novas solidariedades. Desde que possamos levar a sério o desafio proposto pela ideia de interseccionalidade de gênero, raça e classe, respeitando e conscientes dos limites e potencialidades da vivência e da experiência do lugar social de fala e ação. Afinal, conforme Géssica Guimarães e Amanda Danelli, “no interior do discurso pela igualdade deve haver espaço para o respeito à diversidade e o combate às opressões estruturais que ainda hoje assolam as vidas de tantas pessoas”.[6] 

    Assim, para sobreviver à ansiedade e à nostalgia do atualismo, assim como poder sair do fluxo contínuo de apropriações violentas do passado e do futuro pelo tempo presente, é necessário criar possibilidades de desatualização e de atualizações próprias, o que é mais do que desacelerar o tempo. Oscilar entre o atual e o inatual é entender que podemos ainda ter um papel sobre o futuro, que o presente pode ser futurizado e passadizado por decisões que podemos tomar coletivamente.

    (*) Mateus Pereira, Mayra Marques e Valdei Araujo escreveram o Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou o encontro do presidente fake e um vírus real. Mateus Pereira e Valdei Araujo são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto em Mariana. Também são autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem. Mayra Marques é doutoranda em História na mesma instituição. Agradecemos à Márcia Motta e aos grupo Proprietas pelo apoio e interlocução neste projeto.


    [1] A transcrição pode ser lida no site https://edition.cnn.com/2020/08/19/politics/barack-obama-speech-transcript/index.html.

    [2] É possível fazer um tour virtual pelas salas do museu em seu site: https://museumvirtualtour.org/

    [3] A transcrição do discurso de Trump na convenção do partido republicano pode ser lida no link – https://edition.cnn.com/2020/08/28/politics/donald-trump-speech-transcript/index.html 

    [4] A transcrição do discurso de Biden pode ser lida no link https://edition.cnn.com/2020/08/20/politics/biden-dnc-speech-transcript/index.html

    [5]https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/09/22/leia-a-integra-do-discurso-de-bolsonaro-na-assembleia-geral-da-onu.htm

  • ONU cobra do Governo Brasileiro sobre crime da Vale em Brumadinho

    ONU cobra do Governo Brasileiro sobre crime da Vale em Brumadinho

    Durante a 45º Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU hoje, 17, em Genebra, a relatoria especial responsável pelos temas de resíduos tóxicos e direitos humanos apresentou o informe sobre sua visita ao Brasil. O relator, Baskut Tunkat, esteve na Aldeia Indígena Naô Xohã, em São Joaquim de Bicas, MG, e conversou com lideranças de várias comunidades de Brumadinho em atividade realizada no Parque da Cachoeira, em dezembro de 2019.

    Após a apresentação do relatório, Marina Oliveira, mobilizadora social da Região Episcopal Nossa Senhora do Rosário (Renser), lembrou à comunidade internacional que, após 20 meses do crime, a população continua sem saber o nível de contaminação a que está exposta. E denunciou que “o Estado permite que a empresa responsável pela tragédia defina a metodologia de análise de contaminação. Como confiar no automonitoramento? Queremos análises independentes da qualidade do ar, solo e água”, disse.

    A porta-voz de Brumadinho pediu ao Conselho de Direitos Humanos da ONU que advirta o governo Brasileiro para que seja garantida a punição exemplar dos responsáveis pelas violações e que uma eventual retomada das operações extrativas em Brumadinho ocorra somente após a
    reparação integral dos danos e se estudos atualizados comprovarem que não há riscos para a segurança hídrica da população. “Queremos parâmetros e sanções internacionais para as empresas. Nós queremos compromissos reais, porque nossas dores são reais”, afirmou Marina.

    A Relatoria da ONU afirma que “os crimes corporativos contra trabalhadores e comunidades são perpetrados com impunidade, e os direitos à informação e participação são reduzidos drasticamente”. “Enquanto o desastre de Brumadinho foi tecnicamente causado pela
    instabilidade estrutural e liquefação, a verdadeira causa reside numa notável falta de fiscalização governamental e numa conduta criminalmente imprudente por parte da Vale”.

    Reconhecendo que o país passa por um momento de profundo retrocesso, o relatório apresenta uma recomendação ao Conselho da ONU para que seja aberta um inquérito internacional sobre a situação de direitos humanos no Brasil, com foco em questões ambientais, de saúde pública, direitos do trabalhador e defensores de direitos humanos. É a primeira vez que o Brasil é alvo de uma investigação como essa desde o início do período democrático.

    “Várias decisões judiciais e parlamentares não são implementadas quando desfavoráveis aos interesses privados. A retórica inflamatória, a rejeição da sustentabilidade e o fracasso em processar tem incendiado outra epidemia, uma de intimidação, ataques e assassinato de defensores dos direitos humanos”, denuncia o relator da ONU.

  • Davi Kopenawa vai à ONU denunciar risco de genocídio de Povos Indígenas Isolados

    Davi Kopenawa vai à ONU denunciar risco de genocídio de Povos Indígenas Isolados

    A Comissão de Defesa dos Direitos Humanos D. Paulo Evaristo Arns estará presente na 43ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, na Suiça, no dia 03 de março de 2020. Em evento paralelo, a Comissão Arns, o grande líder indígena Davi Kopenawa, premiado pelo Prêmio Right Livelihood 2019, e o Instituto Socioambiental (ISA), irão denunciar à comunidade internacional o risco de genocídio de povos isolados no Brasil

    Desde sua criação, a Comissão Arns trabalha pela proteção dos povos indígenas, principalmente, os  isolados ou de recente contato. O apoio ao povo Waimiri-Artroari (Kinjá), vítima de violação ao direito de consulta prévia nas negociações do Programa de Interligação Elétrica Manaus-Boa Vista, foi declarado logo no início nas atividades do grupo. Em novembro de 2019, junto ao Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (CADHu), a entidade protocolou uma representação contra o presidente da república Jair Bolsonaro, no Tribunal Penal Internacional (TPI), por incitar o genocídio e promover ataques sistemáticos contra os povos indígenas do Brasil.

    O discurso que o governo federal adota sobre as populações tradicionais será importante ponto de discussão no “evento paralelo” realizado no Conselho de Direitos Humanos da ONU. Também cabe destacar o retrocesso nos marcos legais, que visam a proteção desses povos como o desmantelamento da Fundação Nacional do Índio (Funai), e o assassinato de diversos líderes indígenas brasileiros. Segundo Laura Greenhalgh, diretora executiva da Comissão Arns, a falta de diálogo na gestão Bolsonaro deixa a entidade ainda mais alerta. “Este governo não quer ouvir os setores da sociedade que estão trabalhando com os povos indígenas para lhes garantir o direito constitucional da autodeterminação. Não há interesse em diálogo com a sociedade, com a Academia, com os cientistas e, muito menos, com os indígenas. Por esse motivo, sempre que possível, a Comissão Arns vai ocupar espaços de esclarecimento e alerta, dentro e fora do Brasil”, explica. A jornalista estará na mesa ao lado do líder indígena Davi Kopenawa, porta-voz do povo Yanomami e presidente da Hutukara Associação Yanomami e do pesquisador Antonio Oviedo, do Instituto Socioambiental (ISA).

    O “evento paralelo” é uma das formas de ONGs e instituições da sociedade civil credenciadas poderem participar das sessões do Conselho de Direitos Humanos da ONU.  Para o pedido ser aprovado, é necessário que a temática traga questões relevantes, que inclui o fortalecimento da promoção e proteção dos direitos da pessoa humana em todos os lugares do mundo e a elaboração de recomendações para abordar as violações, incluindo as graves e sistemáticas.

  • O aspecto positivo do discurso de Bolsonaro

    O aspecto positivo do discurso de Bolsonaro

    ARTIGO

    RODRIGO PEREZ OLIVEIRA, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

     

    Terça-feira, 24 de setembro de 2019.

    Jair Bolsonaro protagonizou aquele que talvez tenha sido um dos maiores vexames da história da diplomacia. Em aproximadamente 30 minutos de discurso, o presidente do Brasil vomitou no púlpito da ONU todas as bobagens que vem falando desde o início da década de 1990, e que durante muito tempo foram lidas como devaneios sem importância.

    Erro grave. A democracia brasileira subestimou o potencial destrutivo de uma fenda autoritária. A fenda foi crescendo, crescendo, até fazer desaparecer o chão sob nossos pés.

    Na ONU, Bolsonaro falou do Foro de São Paulo, do projeto socialista dos governos petistas, de ideologia de gênero e tudo aquilo que circula no submundo do Whatsapp.

    Confesso que não sei se o presidente acredita mesmo no que diz ou se isso faz parte da estratégia de constante excitação de sua base social orgânica. Pode ser que sejam as duas coisas. Acho mais provável que sejam as duas coisas.

    Não vou comentar o conteúdo do discurso. Muitos já o fizeram. Quero mesmo é mostrar o lado positivo do evento, acompanhado com atenção pelo mundo inteiro, que tenta entender o que está acontecendo no Brasil.

    O discurso mostrou ao mundo que a narrativa que desde o século XIX afirma o lugar do Brasil no concerto internacional das nações é, simplesmente, mentirosa.

    Mas que narrativa é essa?

    Em 1843, foi publicado um texto de autoria do botânico alemão Karl von Martius, onde o autor prescreve um modelo para aqueles que no futuro tentassem escrever a história do Brasil. Para Martius, qualquer um que se dedicasse ao empreendimento não poderia deixar de ressaltar aquele que seria o aspecto fundamental da formação histórica brasileira: a mistura pacífica entre as raças branca, negra e indígena.

    A tópica da mistura racial pacífica atravessou o pensamento social brasileiro, ganhando seus contornos mais conhecidos no livro “Casa Grande e Senzala”, de Gilberto Freyre, publicado pela primeira vez em 1933. A “democracia racial” se tornou a principal ideologia de autoapresentação brasileira no mundo.

    Em todas as exposições universais realizadas ao longo do século XX, lá estava no stand do Brasil um índio trajado de nu e com o corpo pintado, uma baiana fritando acarajé ou uma mulher negra sambando de biquíni.

    Durante muito tempo a narrativa colou, a tal ponto que na década de 1950, a ONU enviou uma missão ao Brasil para estudar como se dava a convivência pacífica entre raças diferentes. Naqueles anos, a ONU investia em uma agenda multiculturalista e estava convencida de que o Brasil tinha algo a ensinar ao mundo.

    O futebol ajudou a alimentar essa imagem positiva: Pelé, os Ronaldinhos, Romário. O Brasil seria tão tolerante e pacífico a ponto de monumentalizar heróis negros.

    Se é possível ver o copo meio cheio e encontrar algo de bom no discurso de Bolsonaro na Assembleia Geral das Nações Unidas, eu diria que foi a revelação ao mundo de uma verdade sobre o Brasil.

    Manifestações racistas, ataques aos direitos das comunidades indígenas, ofensas às mulheres. Os absurdos ditos por Bolsonaro ecoam na imprensa internacional desde o segundo semestre do ano passado, quando ele pintou como candidato forte na corrida presidencial.

    O discurso na ONU foi a cereja do bolo e jogou pá de cal na representação que durante quase 200 anos definiu o Brasil no imaginário internacional.

    Bolsonaro, com sua imagem fedorenta (a imagem de Bolsonaro fede, sou capaz de sentir o mal hálito exalando da TV), foi lá, tomou o microfone e mostrou ao mundo quem é o homem médio brasileiro.

    Bolsonaro é a representação perfeita do homem médio brasileiro, como já disse com astúcia Eliane Brum: autoritário, violento, deselegante, feio.

    Mesmo com todo o vexame, o discurso de 24 de setembro de 2019 serviu para globalizar o homem médio brasileiro e dar fim à farsa que durante muito tempo enganou o mundo, incluindo nós mesmos.

    Agora, talvez, diante do grotesco manifestado em espelho, sejamos capazes de entender quem somos e melhorar. Essa tragédia toda precisa servir pra alguma coisa.