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  • DANIEL HÖFLING: Onipresença e Onisciência Neoliberal

    DANIEL HÖFLING: Onipresença e Onisciência Neoliberal

    O comportamento aparentemente descabido do inacreditavelmente ainda presidente Jair Messias Bolsonaro impressiona sob vários aspectos. Não há líder no planeta que combine tantas aberrações. Qual presidente no mundo sairia às ruas com a possibilidade de estar infectado e daria a mão aos seus eleitores? Qual presidente demitiria um ministro da saúde em meio à pandemia? Qual presidente discursaria ao lado de uma faixa pedindo intervenção militar e fechamento dos poderes Legislativo e Judiciário? Qual presidente afirmaria que tudo não passa de uma gripezinha e que, dado seu histórico de atleta, passaria incólume num eventual contágio? Pode até ser que um transloucado fizesse uma ou duas das coisas acima; todas não. Uma possível explicação para tais bizarrices seria acometimento de loucura.  Um fascista que leva suas atitudes às últimas consequências, colocando sua vida e a de seus apoiadores em risco, seria outra justificativa “plausível”. Um narcisista com a crença absoluta de ter sido ungido por Deus para livrar o Brasil de todos os males e instaurar o paraíso na terra, outra boa explicação. Entretanto, o problema nos parece ainda maior.

    Sem dúvida, Bolsonaro é um pouco de tudo isso: louco, fascista, narcisista eleito por Deus. Mensurar o peso de cada uma dessas variáveis na formação de sua personalidade e no condicionamento de suas atitudes é impossível e desnecessário. O que importa no debate acerca do comportamento do presidente bem como da sua capacidade de manutenção no poder é (re) acrescentarmos dois fatores “adicionais”, em grande medida negligenciados desde o começo da pandemia: 1) a crença do presidente nas ilusões do livre mercado e 2) o apoio dos atores econômicos/sociais/políticos interessados na vitória inconteste do projeto neoliberal. Parece lugar comum insistir no poder ideológico do neoliberalismo e na força do credo de seus agentes. O assunto começa a ficar desgastado. Logo vem alguém e diz: “Tudo é culpa dos interesses econômicos? ” “Esse papo já deu o que tinha que dar, muda o disco! ”. Entretanto, me parece que é hora de escutarmos o disco novamente e com mais atenção…

    É importante explicitarmos que o liberalismo econômico, em termos quantitativos, é a ideologia que mais abarcou adeptos na história da humanidade. Nenhuma religião, isoladamente, contemplou tantos fiéis. Nunca um conjunto de valores desenrolou-se com maior assiduidade e profundidade no cotidiano das pessoas do que os preceitos liberais. Pelos quatro cantos do mundo bilhões de seres humanos vivem e morrem há séculos movidos pela concorrência, meritocracia e amor ao dinheiro.

    Não seria exagero afirmar que tais valores são os fatores que mais impactaram o consciente e o inconsciente da maioria dos terráqueos nos últimos 300 anos. A ideologia liberal está presente em nossas vidas com muito mais intensidade do que qualquer outro pensamento ou sentimento; é o substrato da quase totalidade das nossas ações bem como das nossas relações sociais. De tão intensa e presente, passa despercebida; naturalizou-se. Justamente por isso, jamais podemos menosprezar sua força e capacidade em condicionar os acontecimentos não somente econômicos como também sociais e políticos. Senão vejamos.

    Bolsonaro, bem como seus apoiadores, querem que a economia volte à “normalidade” (como se isso fosse possível). Voltar à normalidade, para eles, é colocar a economia em funcionamento. É deixar o setor privado trabalhar. É liberar as forças de mercado para gerarem emprego e renda; portanto, é prescindir do auxílio estatal. Na sua lógica o Setor Público não tem dinheiro para sustentar pessoas e negócios; precisa economizar recursos para pagar a dívida pública pois, extinguindo-a, o empresariado sentir-se-á confiante e ampliará seus investimentos, culminando em maior crescimento econômico, geração de renda e bem-estar. Nada mais liberal que isso! Entretanto, não é preciso desenhar para demonstrar tamanha falácia. Basta dizer que o principal fator de estímulo ao investimento privado é a perspectiva de demanda futura; nenhum empresário olha a relação dívida/PIB para investir. E, como qualquer aluno de primeiro ano de economia sabe, a demanda do amanhã deriva do investimento e do consumo público e privado de hoje. Logo, cortar gastos do setor público em tempos de crise é a receita certa ao aprofundamento da recessão.

    A tática do governo é clara. Concede recursos públicos insuficientes à manutenção mínima da renda e do emprego agregados. Os negócios começam a quebrar, o desemprego aumenta, a população sofre. O tecido social começa a se desestruturar. Aí Bolsonaro avisa: “Se não voltarmos à normalidade, o povo brasileiro irá sofrer; o povo precisa trabalhar”. A pressão dos seus apoiadores aumenta e, gradativamente, o isolamento vai abrandando. As pessoas voltam às ruas, o comércio reabre, a vida parece voltar ao normal… Só que esqueceram (ou não se importaram) que estamos entrando na pior fase da pandemia; todo o esforço pretérito será jogado no lixo. A tentativa de isolamento vertical num país cuja pobreza é horizontal será uma catástrofe. A pressão ao fim do isolamento aumenta na pior hora possível…

    Todos juntos pelo Deus Mercado

    Devemos nos perguntar de onde vem essa pressão. A resposta, infelizmente, é clara: de todos os setores e classes sociais. É bom repetir: a pressão pelo fim do isolamento cresce em todos os setores e classes sociais, simplesmente porque o liberalismo é onipresente e onisciente. Os argumentos para o fim do isolamento parecem variados mas possuem raízes comuns: a necessidade premente de sobrevivência dos mais pobres, a manutenção dos ganhos extrativos dos mais ricos, o desejo de ir à academia ou às compras não importando as consequências alheias, tudo é decorrência do domínio neoliberal. Os menos favorecidos precisam trabalhar porque, infelizmente, o governo atual os abandona; os ganhos superelevados dos mais abastados ocorrem porque não há mecanismos extra mercantis para regulá-los; a vontade de fazer o que quiser objetivando o gozo individual, sem pensar no próximo… nada mais liberal do que tais “necessidades”!

    Não precisamos nos aprofundar muito para concluir a dissonância entre retórica e prática do discurso liberal. Ao prometer liberdade, riqueza e felicidade, entrega submissão e controle, desigualdade e pobreza, angústia e insatisfação permanentes. O enorme poder da ideologia liberal no imaginário da sociedade brasileira reflete não só a manutenção de Bolsonaro na presidência como também parte considerável dos males econômicos, sociais e políticos que nos afligem há décadas. Entretanto, essa letargia pode ser interrompida! A atual crise econômica nos dá a oportunidade de repensarmos nossos valores e crenças intuindo a construção de um país justo, digno e ambientalmente sustentável. A onipresença e onisciência liberal nos tornou conformistas; precisamos nos indignar! Não aceitar as coisas como elas são, mas sim lutar pelo que deveriam ser! Precisamos debater, refletir e agir politicamente! Isso nos moverá em direção a um Brasil e a um mundo melhor! Nossas próximas sessões se dedicarão a contribuir com isso.

    Daniel de Mattos Höfling

    é doutor em Economia

    pela Unicamp

    (Universidade Estadual de Campinas)

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  • O FRANKENSTEIN DE BOLSONARO

    O FRANKENSTEIN DE BOLSONARO

     

    ARTIGO

    Prof. Dr. Alexandre Santos de Moraes, do Instituto de História da Universidade Federal Fluminense

        

     

                No início século XIX, Mary Shelley escreveu seu mais famoso romance. Enclausurado, o estudioso Victor Frankenstein descobriu como gerar vida e passou a se dedicar à criação de um ser humano gigantesco. Concluiu sua obra após dois anos de trabalho. Estava exausto e febril. Também desenvolveu asco pelo ser que fabricou e decidiu fugir. Não demorou para que a criatura se insurgisse contra o criador: em meio à sua fúria, estrangulou Elizabeth, noiva de Victor. Ainda que Shelley não o tenha feito em seu romance, a tradição posterior dedicou o sobrenome de Victor à abominação que produziu, quase que como uma herança maldita de pai para filho, e fê-lo conhecido como Frankenstein.

                Dentre outras coisas, Frankenstein é uma excelente metáfora para discutir a relação entre o criador e a criatura, sobretudo do ponto de vista da responsabilidade moral. Que as ações tem um custo, ninguém duvida: se alguém sai na chuva, acaba se molhando; se alguém bebe em demasia, acaba embriagado; se alguém leva uma facada, corre risco de vida ou, quem sabe, é eleito presidente. A relação entre ação e reação está há muito reconhecida não apenas na Física, mas também na política e na economia. Quem produz um monstro deve ser responsável pela monstruosidade. É isso que falta a Jair Bolsonaro.

                Jair Bolsonaro perdeu o direito de ser irresponsável. Por muito tempo pintaram-no como boçal, quase como criança que é imune à estupidez por força da inexperiência. Ele caminhava graciosamente no ombro da abominação que produziu, mas diferentemente de Victor, que criou a vida, o presidente e seus ministros se comprometeram com a morte. Tentaram, a todo custo, matar o trabalho enquanto acalentavam o sonho dourado de uma economia forte para os rentistas e frágil para os trabalhadores. Desemprego deixou de ser um problema para figurar como necessidade. Aprofundou a reforma trabalhista de Michel Temer e implementou, ainda que não do jeitinho que queria, uma Reforma da Previdência que fará com que muitos brasileiros e brasileiras morram antes de se aposentar. O Frankenstein de Bolsonaro é a informalidade, o trabalho precário, a escassez de direitos que o receituário neoliberal estimulou. E agora, como no romance de Mary Shelley, a criatura se volta contra o criador.

                A ausência de responsabilidade moral de Bolsonaro é bem representada pelas falsas ciladas que produz em sua retórica politiqueira. Quando quis impor seus ataques aos trabalhadores, fez questão de dizer que seria necessário escolher entre ter direitos trabalhistas e ter emprego. O povo, assustado, acreditou. As demandas da vida material gritam e o desemprego, que para o governo é uma necessidade estrutural, soa como verdadeiro terror para quem precisa trabalhar. Mas, apesar disso, convencidos de que não seria possível aliar as duas coisas, acreditaram nessa mentira oportunista que soa como música no ouvido dos empresários. A informalidade no Brasil é o dobro dos países desenvolvidos. Hoje, 41,1% da população ocupada não tem carteira assinada, o que as fragiliza diante de crises e diminui a arrecadação do governo: bom para os empresários, que vêem seus lucros aumentar, péssimo para os trabalhadores, que precisam lutar todos os dias para conseguir seu sustento.

                Com a crise gerada pelo COVID-19, a rotina de trabalho tão desprezada pelo governo se tornou preocupação de primeira ordem. Mais uma vez, Bolsonaro repete as falsas equivalências e joga sujo com as necessidades materiais. O presidente, de maneira grotesca e irresponsável, coloca os trabalhadores já precarizados em uma sinuca de bico: se saem para trabalhar, contraem coronavírus e aumentam a epidemia; se permanecem em casa, morrem de fome. O presidente sabe que o monstro que ele criou faz exatamente isso e, no lugar de contê-lo, abre a porteira para que ele saia estrangulando as pessoas. O Frankenstein do neoliberalismo de Paulo Guedes está alucinado com o risco de morrer de inanição, e o presidente se esforça para mantê-lo vivo com base no sacrifício do povo que o elegeu. Seu alimento é a carne dos trabalhadores.

                A crueldade do presidente é tão grande que ele se mantém surdo para as melhores práticas internacionais, inclusive aquelas adotadas por quem bajula como cão sem dono. As medidas que restringem a circulação de pessoas já foram identificadas como as melhores práticas para contenção da epidemia. Para não desassistir os trabalhadores e trabalhadoras, diversos países estão aprovando transferências emergenciais de renda. Os EUA de Donald Trump, sujeito que Bolsonaro cultua quase como a um deus, aprovou aporte de 2 trilhões de dólares para diminuir a recessão. Parte desse dinheiro será destinado aos trabalhadores, que devem receber cerca de U$ 1.200,00 para permanecerem em suas casas. O Reino Unido, afável às medidas de austeridade, decidiu garantir o pagamento de 80% dos salários até o limite de 2.500 libras por mês. A Dinamarca vai garantir 75% do salário desde que as empresas se comprometam a não demitir. Suécia, Canadá e outros países fizeram o mesmo. Apenas Bolsonaro decidiu não rasgar os panfletos neoliberais para não melindrar seu monstro.

                Não bastasse a inação, o governo tem trabalhado vigorosamente para ampliar a recessão que se avizinha. Ainda que tenha recuado, publicou Medida Provisória que assegurava aos empregadores o direito de cortar o salário por quatro meses desde que mantivessem os empregos. Bolsas de estudo foram suspensas. O Bolsa-Família está terrivelmente paralisado. Busca-se reduzir os salários dos servidores públicos. Nos últimos dias tem insistido, apesar de vozes divergentes dentro do próprio governo, na retomada das atividades produtivas como se não houvesse pelas ruas um vírus que já matou milhares de pessoas ao redor do mundo e que poderá matar, mesmo nas previsões pessimistas, alguns milhões.

    Obrigar os brasileiros a optar entre morrer de fome ou por insuficiência respiratória não é apenas uma retórica covarde, típica dos genocidas, mas uma forma de se eximir das responsabilidades que o cargo para o qual foi eleito exigem.

                Talvez a criatura já tenha dominado o criador, mas é bom que se note que não basta expurgá-lo do poder para defender a vida do povo brasileiro: é urgente ceifar também a abominação que já nos oprimia na vida cotidiana e que se tornou ainda mais abominável em temos de pandemia. O Frankenstein é o neoliberalismo e ele deve ser exterminado junto com o governo Bolsonaro, do contrário, teremos outro imbecil alimentando a mesma besta que amola a faca que corta nossa carne.  

     

  • Desgoverno corta o FIES e arrocha funcionalismo em 2020

    Desgoverno corta o FIES e arrocha funcionalismo em 2020

    O FIES, programa de financiamento de mensalidades em universidades privadas a juros baixos, em 2014 chegou a 732 mil contratos. Para 2019, o governo neoliberal anunciou 250 mil contratos. Para 2020 serão apenas 100 mil e para 2021 o número deve chegar a 54 mil contratos. Esses cortes, junto ao sucateamento das universidades públicas, prejudicam especialmente os mais pobres.

    Orçamento 2020: Desgoverno corta 5,8 bilhões do gasto de pessoal e participação cai de 5,7%(2019) para 5,5% do PIB.

    O gasto previdenciário cresce 40 bilhões e a sua participação do PIB cresce de 8,6% (2019) para 8,9% (2020).

    O Beneficio de progressão continuada (BPC) caiu R$ 10 milhões e o gasto com seguro desemprego será de R$ 40 bilhões, o mesmo de 2019. A participação do seguro desemprego frente ao PIB cai de 0,6% (2019) para 0,5% (2020).

    O investimento, somado aqui as empresas públicas, cresce 6,2 bilhões e mantém a participação no PIB.

    O déficit primário previsto para 2020 é de R$ 124,1 bilhões.

    Até novembro o déficit primário foi de R$ 80,3 bilhões e a imprensa deu isto como um número bom para o desgoverno. Ocorre que o governo federal fez uma nova estimativa orçamentária em dezembro e o déficit primário deve ser de 137,6 bilhões ou R$ 1,4 bilhão a menos que o previsto.

  • SOBRE HOMENS E MONSTROS

    SOBRE HOMENS E MONSTROS

    ARTIGO

     

    Vinícius Augusto Pontes de Carvalho, historiador, mestrando pela Universidade do Estado de Santa Catarina

     

    Vocês estão horrorizados com a política do governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel de fuzilamento de escolas, pedreiros, mulheres com bíblia na mão, crianças com chuteira na mochila e casas de moradores?

    Estão horrorizados com a promessa de violência prometida por Bolsonaro, Ônix Lorenzoni e Weintraub, caso a previdência não fosse aprovada ou o Future-se não passe?

    Eu também estou. Mas essa violência é um projeto. E não, não é uma frase pronta. A violência no neoliberalismo É DE FATO um projeto científico.

    A jornalista e economista canadense Naomi Klein, investigou e pesquisou vastamente sobre como se deu a implantação do modelo neoliberal em países periféricos e, principalmente, no seu primeiro laboratório, o Chile. E o questionamento que os baluartes desta teoria econômica faziam, era: “Como implantar um modelo econômico tão destrutivo para a população sem reação?”. A saída encontrada por eles foi uma metodologia baseado na eletroconvulsoterapia utilizada na psiquiatria, mas isso elevado a condição de psicologia de massas. Ou seja, recrudesce a violência para cima da população, antes dela sequer saber o motivo, sem ter espaço para defesa, e assim domesticá-la.

    Segundo a autora, “a doutrina do choque, como todas as doutrinas é uma filosofia de poder. É uma filosofia sobre como conseguir seus próprios objetivos políticos e econômicos. É uma filosofia que sustenta que a melhor maneira, a melhor oportunidade para impor as ideias radicais do livre-mercado é no período subsequente ao de um grande choque. Esse choque pode ser uma catástrofe econômica. Pode ser um desastre natural. Pode ser um ataque terrorista. Pode ser uma guerra. Mas, a ideia é que essas crises, esses desastres, esses choques abrandam a sociedades inteiras. Deslocam-nas. Desorientam as pessoas. E abre-se uma ‘janela’ e a partir dessa janela se pode introduzir o que os economistas chamam de ‘terapia do choque econômico’. “ (Klein, 2007)

    Bolsonaro, Witzel e Weintraub podem não conhecer com sofisticação científica tal projeto de dominação social, mas entendem o método.

    No dia 21 de março de 2019, o jornal “O Estado de S. Paulo” divulgou duas matérias categóricas sobre o assunto: “Onyx vê mérito em reformas de Pinochet e diz que ditador ‘teve que dar banho de sangue’” e “Bolsonaro diz que o governo se inspira em modelo de Previdência do Chile”.

    Nelas, Lorenzoni daria a seguinte declaração: “O Chile lá atrás teve que dar banho de sangue para mudar princípios macroeconômicos (…) é uma coisa curiosa até do ponto de vista histórico. No Chile uma coisa sangrenta, e o Chile se rearrumou” e prossegue fazendo um vínculo entre violência, regime Pinochet, e uma pauta bastante cara ao modelo neoliberal, o sistema previdenciário, “mas a gente está propondo caminho muito similar ao do Chile (em relação ao modelo previdenciário) (…) a turma da esquerda se incomodou por ter reconhecido algum mérito no governo Pinochet”.

    Experiências capitaneadas por militares demonstraram que a eletroconvulsoterapia (terapia de submeter uma pessoa a uma série de eletrocuções planejadas no crânio) reduziam a propensão ao raciocínio, e imputavam ao “paciente” um estado generalizado de apatia e poucos estímulos, evitando, assim, de forma generalizada, o que Pavlov chamava de “reflexo condicionado”. Segundo Klein, a experiência passou a ser alcunhada fora do campo da medicina, e passou a ser aplicada no campo da psiquiatria, criando um ambiente de onisciente coletivo. Amplamente utilizada em combates durante a Guerra Fria, passou a ser imposta também, com o intuito de realizar políticas completamente impopulares e predatórias no campo político-econômico de um país.

    Neste enleado a Escola de Chicago, protagonizada pelo economista Milton Friedman, realizou uma robusta doutrina econômica, e sabendo da resistência que enfrentaria para ser imposta em “seus laboratórios”, com um receituário de privatizações, venda de bens públicos e a desregulamentação de capitais, foi aplicado com uma larga utilização do expediente da “doutrina de choque”.

    No mesmo “O Estado de São Paulo”, na edição de 6 de abril de 1975, página 12, o conceito de “tratamento de choque” apresentado por Milton Friedman aparecia no jornal pela primeira vez, na matéria intitulada “Chile tenta vencer a crise econômica”: “O debate econômico deve ser por muito tempo, ao que parece, a principal preocupação dos chilenos. Nos dias que precederam a Semana Santa, os economistas Milton Friedman, Arnold Harberger e Carlos Lagoni reiteraram uma vez mais o diagnóstico e a proposição de tratamento que a escola de Chicago oferece ao Chile. A solução, “um tratamento de choque”, de acordo com Friedman, foi ouvida com interesse e até mesmo “com devoção”.

    Portanto, a espetacularização da violência praticada por Witzel, e a prometida por Bolsonaro, autodenominados governos neoliberais, são milimetricamente planejadas. Todo o resto é narrativa…

    O neoliberalismo é um sistema que gerou um rearranjo de classes produzindo concentração de renda, desemprego, aumento de miséria e que, de forma esmagadora, viria a destruir os focos e diferentes formas de resistências populares, trabalhistas, sindicais e de movimentos sociais. Tornando tanto o Estado quanto a sociedade civil como figuras apáticas e imobilizadas perante a teoria do choque.

    E finalizando com Klein:

    “O estado de choque não é apenas o que acontece conosco quando acontece algo ruim. É o que acontece quando perdemos nossa narrativa, quando perdemos nossa história, quando ficamos desorientados. O que nos mantém orientados, fora de choque, é a nossa história.”

     

     

  • NEOLIBERALISMO OU DEMOCRACIA

    NEOLIBERALISMO OU DEMOCRACIA

    ARTIGO

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

     

    A eleição presidencial na Argentina é fato político de primeira importância para a América Latina. Nas prévias realizadas em 11 de agosto, Alberto Fernandez, candidato peronista ligado à família Kirchner, derrotou com folga o neoliberal Maurício Macri, que é o atual presidente. Ao que tudo indica, Macri será derrotado novamente no primeiro turno das eleições, que acontecerá em 27 de outubro.

    Novamente, o neoliberalismo está sendo derrotado nas urnas. Não será a primeira vez e provavelmente não será a última. O neoliberalismo é semente que não dá fruto no terreno da democracia.

    No Chile, o neoliberalismo só se tornou vitorioso porque foi imposto por uma ditadura. No Brasil, o neoliberalismo, travestido de socialdemocracia, chegou ao poder pela via democrática em meados da década de 1990. Quando o povão entendeu o que significa na realidade a retórica do “Estado Mínimo”, rejeitou o neoliberalismo nas eleições de 2002. O neoliberalismo somente conseguiu voltar ao poder em 2016, e através de um golpe. Temer governou durante dois anos e mostrou à nação um neoliberalismo puro sangue. Deixou o governo como o presidente mais mal avaliado da história.

    Reforma Trabalhista, PEC dos gastos. Somente um presidente que não foi eleito poderia chegar tão longe.

    Bolsonaro venceu as eleições de 2018 e o neoliberalismo venceu junto, é verdade. Mas não foram eleições normais. A corrida presidencial foi fraudada pela interferência do Judiciário e pela máquina de fake news, que deixou Paulo Guedes e seu programa econômico nas sombras.

    Nos EUA, que certamente é o país mais liberal do mundo, esse neoliberalismo extremo sagrou-se vitorioso no começo da década de 1980, no governo de Ronald Reagan. A vitória de Reagan se deu em clima eleitoral atípico. Reagan venceu Jimmy Carter em disputa confusa, onde o debate programático foi ofuscado pela pauta dos costumes. A candidatura de Reagan foi impulsionada por uma coalizão de direita formada por católicos, protestantes fundamentalistas e intelectuais conservadores. Todos eles acusavam a social-democracia, vigente no país desde os anos do new deal, de “excitar os desejos egoístas da sociedade e onerar demasiadamente o Estado”, segundo as palavras do intelectual conservador William Buckley, um dos principais ideólogos da campanha de Reagan.

    E não podemos esquecer do “nacional-socialismo” alemão dos anos 1930, que de socialismo não tinha nada. O programa econômico do III Reich foi caracterizado pela parceria com os grandes empresários, pela defesa do capital privado, pelas privatizações e, é claro, pela repressão aos sindicatos e a qualquer movimento reivindicatório. Aqui, pela primeira vez, o cão do neoliberalismo acasalou com a cadela do fascismo. Paixão à primeira vista!

    O que estou querendo dizer é que em um ambiente democrático saudável, onde programas de governo se confrontam livremente, sem cortinas de fumaça, o neoliberalismo encontra dificuldades para se sustentar como agenda politica viável, e isso é especialmente verdadeiro na América Latina. Por isso, o neoliberalismo costuma se associar a projetos políticos autoritários. É que só dá pra empurrar Estado mínimo no povão se for na marra, na força.

    Desde o final do século XVIII, o liberalismo é uma das mais importantes linhagens do pensamento político ocidental. O liberalismo está fundado numa premissa fundamental: a liberdade individual deve ser protegida da tirania do Estado. O indivíduo, portanto, é a célula social mais fundamental, aquele que deve ter seu corpo e propriedade protegidos de qualquer interferência externa.

    Pode parecer contraditório o fato de o ideário político fundado na promessa da liberdade individual ser capaz de se combinar com tanta desenvoltura com ditaduras e fascismos. Parece, mas não é. Não é porque o neoliberalismo se desassociou da política e da economia. A liberdade defendida é a liberdade econômica, é a liberdade de exploração. Uns precisam ser lives pra explorar. Outros precisam estar desprotegidos para serem explorados.

    Nos últimos 300 anos, o pensamento liberal se transformou bastante, mas sempre manteve viva a ideia de que o Estado não deve intervir na economia, que deveria se regular por si próprio, tendo como controle a “mão invisível do mercado”. Não há falácia maior que essa. Não existe Estado mínimo em sociedades complexas. O que existe é a disputa pelo Estado pelo controle das riquezas sociais que são administradas pelo Estado.

    O objetivo do neoliberalismo é impor o Estado mínimo para a maioria e garantir Estado máximo para uma minoria. Como Estado mínimo só é bom se for nos olhos dos outros, a maioria, quando consultada, quando pode se manifestar, diz “não, não, Estado mínimo aqui não”. Para sua sobrevivência, o neoliberalismo precisa silenciar a maioria, fechar os canais de representação e participação política.

    Após quatro anos de tsunami neoliberal, os argentinos lembraram o que é viver no neoliberalismo. Os brasileiros também estão lembrando, o que se traduz na queda da popularidade de Bolsonaro.

    Guedes pediu dois anos para a economia começar a dar sinais de melhora. O desespero bateu. O governo não tem dois anos. Talvez não tenha sequer mais seis meses.

    A Reforma Trabalhista já está sendo sentida, com profissionais contratados em regime intermitente, com a precarização das relações de trabalho. Em breve, a Reforma da Previdência fará suas primeiras vítimas. A PEC dos gastos está paralisando serviços públicos. Foi aprovada no Congresso Nacional a PEC da Liberdade Econômica, que mais uma vez promete gerar empregos através da “desregulamentação” das relações de trabalho.

    A narrativa sempre a mesma: o neoliberalismo promete prosperidade material em troca de direitos sociais garantidos pelo Estado. Os direitos são cassados, mas a prosperidade não chega. Em algum momento, as pessoas perdem a paciência.

    O tempo passa e a crise econômica se avoluma. Tá cada vez mais difícil continuar culpando o PT. O governo está nas cordas, Bolsonaro é fraco como presidente, apesar de ser forte como agitador fascista. Se não conseguir aplicar o autogolpe que vem prometendo desde o final de 2018, Bolsonaro será engolido pelo que ainda resta de democracia no Brasil.

    O povão pode estar confuso e desinformado, mas não é burro. Não há histeria que dure para sempre. Em breve, sobrará ao governo apenas a base social fascista, disposta a ir com Bolsonaro até o fim. Não é o bastante para governar na democracia.

    O neoliberalismo já tem plano A e plano B: se o autogolpe funcionar, não haverá nenhum constrangimento em continuar acasalando com a barbárie. Nada melhor para impor o Estado mínimo ao povo do que um Estado máximo, armado, violento e disposto a prender e matar.

    Se Bolsonaro cair, o neoliberalismo vai tentar se afastar do defunto e apresentar uma solução mais limpinha e civilizada. Candidatos não faltam: João Dória, Luciano Huck, Tábata Amaral, Marina Silva. Pode ser que a mudança dê alguma sobrevida ao projeto neoliberal. Não durará muito.

    Ou tem neoliberalismo ou tem democracia. As duas coisas juntas dá pra ter não.

     

     

  • Seminário feminista debate a resistência à onda neoliberal conservadora

    Seminário feminista debate a resistência à onda neoliberal conservadora

    Por Marcha Mundial das Mulheres

    “Resistência e construção de movimento: confrontando o neoliberalismo desde a economia feminista e os comuns” é o tema do seminário internacional organizado pela Marcha Mundial das Mulheres (MMM), que acontece entre os dias 17 e 19 de junho. Em São Paulo, o encontro reúne militantes feministas de países das Américas, Europa, África, Ásia e Oriente Médio.

    Nesta segunda-feira (17), a primeira discussão do encontro, intitulada “Construindo uma visão comum sobre as características da ordem mundial”, foi impulsionada por Yildiz Temürtürkan, da Turquia, Jean Enriquez, das Filipinas, Priya Johnson, dos Estados Unidos, e Bernadete Monteiro, do Brasil, compondo a mesa que gerou uma série de reflexões coletivas sobre o tema.

    Neste momento, a reflexão proposta foi sobre como se constroem e se manifestam os mecanismos de controle e como se expressa o antifeminismo na conjuntura internacional. Temürtürkan mencionou que, há uma década, feministas de todo o mundo estavam reunidas no Brasil para o Fórum Social Mundial e, desde lá, falavam de um avanço da pobreza, combinado com a criminalização e violência. Para ela, o que está sendo chamado de “populismo de direita” pelo mundo é, na verdade, o fascismo que se reorganiza no contexto internacional junto a uma privatização do Estado pelas corporações. Ela, que é militante da Marcha Mundial das Mulheres e atua em Ankara, em defesa dos direitos humanos, contra a tortura e assassinato de lideranças sociais, incluindo membros de sua organização, afirma que o antifeminismo é elemento central das construções dos novos regimes da nova ordem neoliberal.

    Para Jean Henriquez, que é militante da MMM das Filipinas e advogada pelos direitos das mulheres, trabalhando contra a prostituição e o tráfico de mulheres, os representantes do sistema capitalista querem impor governos que se baseiem na opressão das pessoas pobres e veem as lutas feministas contra a violência e a exploração como ameaças. Uma das ferramentas utilizadas pelo sistema é a guerra às drogas, que mata pessoas pobres nas Filipinas e em outros lugares do mundo. “O neoliberalismo é um projeto autoritário para os mais pobres”, afirma. Ela diz que não se pode perder de vista as perspectivas radicais do feminismo e que a defesa da democracia não pode se dissociar da luta por uma transformação do modelo econômico e social baseado na ganância que, internacionalmente, precariza a vida das mulheres.

    Priya Johnson, ao refletir sobre a conjuntura estadunidense, lembra que a agenda hoje representada pelo Donald Trump tem raízes antigas e profundas na história dos Estados Unidos e remonta o genocídio dos povos indígenas. Priya também critica a militarização da vida, os mecanismos de controle, o encarceramento da população negra, a crminalização dos movimentos, a xenofobia e a monopolização dos meios de comunicação, elementos que alimentam a ideologia patriarcal e neoliberal e legitimam, diariamente, o terrorismo deste sistema. Como uma das saídas, Priya convoca a construção de solidariedade entre as fronteiras.

    Bernadete Monteiro, que é militante da MMM em Belo Horizonte (MG), pontuou similitudes e especificidades do contexto brasileiro. Ela relembra que a ascensão da direita nacional se articula mais fortemente a partir de 2010 e tem a ver com uma crise prolongada, desde 2008, com uma reafirmação de uma hegemonia estadunidense, e com novas características do neoliberalismo, que em outros momentos se apoiou na defesa da democracia e que hoje prescinde dela. Bernadete também lembrou do lugar da América Latina nesta configuração internacional, que está sob ataque e é estratégica para a nova ordem de acumulação do capital.

    Nesta tarde, as discussões continuaram. “Enfrentamentos ao capitalismo racista e patriarcal: visões e estratégias de disputa para mudar o modelo de reprodução e consumo”, foi o tema do debate.