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Tag: Ditadura militar

  • Futebol e violência contra a mulher na pandemia

    Futebol e violência contra a mulher na pandemia

    ARTIGO

    Camille Cristina, mestranda em História pela UERJ/FFP, e Daniel Pinha, professor do Departamento de História da UERJ

    Na fala de Renê Simões a normalização do machismo se faz presente de diversas formas. Em primeiro lugar, considera que o contexto “enlouquecedor” da quarentena criaria uma condição de estresse capaz de justificar a violência contra a mulher. O futebol – e não importa se em tempos de pandemia há exposição da saúde dos atletas nos treinos e jogos – serviria como uma espécie de “circo”, espetáculo, capaz de entreter e “acalmar” ânimos violentos. Como se o público consumidor do futebol fosse só de homens, algo que contraria o crescimento do esporte entre mulheres, que jogam e assistem. Reforça a máxima do “futebol é coisa de homem”, algo ainda mais grave quando proferido por um ex-treinador da Seleção feminina de futebol.
    Por fim, ele fala de amigos que já separaram, outros bateram… O grau de naturalização da violência é tamanho que ele fala de crimes cometidos por amigos como se isto fosse normal – pessoas próximas, com quem ele tem relação afetiva. Aliás, se ele soube de agressão a mulheres neste contexto de pandemia, por que não denunciou à polícia? Ou será que ele trabalha com a lógica machista de que em “em briga de marido e mulher não se mete a colher”?
    Em suma, a violência contra a mulher se revela nos gestos, mas também em discursos de normalização como o de Renê: “Vamos colocar homens correndo atrás de uma bola, para que outros homens assistam e parem de bater em suas mulheres por causa do estresse da quarentena”. Uma atitude que ainda é muito presente, infelizmente, na cultura futebolística brasileira.
  • OSVALDO ANTÔNIO DOS SANTOS – Morre um herói da nação brasileira, vítima da Covid-19

    OSVALDO ANTÔNIO DOS SANTOS – Morre um herói da nação brasileira, vítima da Covid-19

    OSVALDO ANTÔNIO DOS SANTOS – 14/08/1939 – 10/04/2020
    OSVALDO ANTÔNIO DOS SANTOS 14/08/1939 – 10/04/2020

    Nascido em 14 de Agosto de 1939, na Cidade de Arapuã, MG, Osvaldo Antônio dos Santos era filho de Gaspar Silvério de Oliveira e Maria Antônia dos Santos. Teve uma longa carreira profissional em várias empresas brasileiras e estrangeiras.

    Militante da Vanguarda Popular Revolucionária, a VPR, de Carlos Lamarca, Osvaldo “Portuga”, como Osvaldo Antônio dos Santos era conhecido, foi preso em 23 de janeiro de 1969 juntamente com Pedro Lobo de Oliveira, Ismael de Souza e Hermes Camargo em uma chácara nas proximidades de Itapecerica da Serra. No local, os quatro foram surpreendidos pela Polícia Militar de Itapecerica da Serra e levados ao Quartel do II Exército, no Ibirapuera.

    Da prisão no quartel, Osvaldo Antônio dos Santos foi transferido para o DEOPS, onde permaneceu até 13 de novembro de 1969 quando, junto com outros detentos, deu entrada no Carandiru onde ficou até 8 de dezembro de 1969. A última escala foi no Presídio Tiradentes, de onde saiu no dia 16 de junho de 1970.

    A liberdade, porém, não veio fácil. Em 11 de junho de 1970, enquanto as atenções do país estavam voltadas para a Copa do México, o embaixador da Alemanha Ocidental, Ehrenfried Anton Theodor Ludwig Von Holleben, era sequestrado no Rio de Janeiro, numa ação conjunta da Ação Libertadora Nacional (ALN) e da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). As organizações guerrilheiras exigiram a libertação de 40 presos políticos, entre os quais estava o “Portuga”, que deveriam ser levados em voo fretado para a Argélia. Um manifesto contra a Ditadura foi divulgado em todas as redes de rádio e TV, furando a rigorosa censura imposta pelos militares.

     

    Banido do território nacional, Osvaldo Antônio dos Santos chegou à Argélia e lá residiu por três meses. Posteriormente dirigiu-se a Cuba onde esteve de 1970 a 1971. Morou em Moçambique e na Alemanha. Retornou a Brasil com a Anistia Política. Foi casado com Denise Oliveira Lucena com quem teve dois filhos: Valter Bruno de Oliveira Santos e Renan Oliveira dos Santos.

    Seu estado de saúde era delicado, pois teve câncer de próstata e apresentava um quadro de doença de Alzheimer. Faleceu nesta madrugada (10/04) vitimado pelo Covid-19. Estava internado no Hospital de Referência Emílio Ribas.

    Não acontecerá o velório devido à letalidade da doença. O corpo de Osvaldo Antônio dos Santos será cremado em Embu das Artes, no Crematório Memorial Parque Paulista.

     

    OSVALDO ANTÔNIO DOS SANTOS, PRESENTE!

     

     

     

  • Apoio do governo ao Golpe de 64 revolta a sociedade

    Apoio do governo ao Golpe de 64 revolta a sociedade

    O que aconteceu em 1º de abril (e não em 31 de março) de 1964 foi um golpe de estado levado à frente por setores militares, com apoio do grande empresariado, da mídia hegemônica e suporte explícito (que poderia ser inclusive bélico, se fosse o caso) do governo dos Estados Unidos. Há uma abundância de provas documentais e testemunhais que impede qualquer historiador sério de negar esse fato. Análises e documentos históricos provam, ainda, que nunca houve uma “ameaça comunista”, nem uma “república sindicalista” e que a corrupção que havia no governo não era significativamente maior do que em qualquer outro período.
    Os legados da Ditadura são igualmente incontestáveis. A extrema militarização das polícias estaduais e seu uso na tortura de dissidentes políticos moldou a atual atuação das PMs, que são as forças de segurança que mais matam em todo o mundo. A explosão da dívida pública e a hiperinflação (que chegou a 3% ao DIA) são resultado direto do “Milagre Econômico” de Delfim Netto nos anos 1970. O imenso poder das grandes empreiteiras para corromper o executivo surgiu nos esquemas milionários de superfaturamento em obras como a Ponte Rio Niterói. E os oligopólios midiáticos que temos até hoje foram construídos a partir da concessão de TV à Globo em 1964, suas afiliadas pertencentes a políticos em todo o Brasil (Família Sarney no Maranhão, Collor em Alagoas, Antonio Carlos Magalhães na Bahia…).
    Se não bastasse tudo isso, ainda tivemos perseguições políticas, fechamento do Congresso, exílios, torturas, assassinatos, desaparecimentos forçados e todo pacote de autoritarismo e violação de diretos políticos e humanos que compõem uma ditadura clássica.
    Essa página, contudo, jamais foi virada na história. Agora que temos o maior desafio de saúde pública mundial em 102 anos, unificar e coordenar os esforços nacionais era fundamental. Mas falta um/a homem/mulher no posto chave da presidência. O que temos prefere vender ilusões em pronunciamento de TV e comemorar um passado mentiroso de glórias ao dizer que “Oh… Hoje é o dia da liberdade”, referindo-se ao Golpe de 64. E não está sozinho! O sujeito que ocupa a vice-presidência publicou em uma rede social que “com a eleição do General Castello Branco, iniciaram-se as reformas que desenvolveram o Brasil”. Ontem, o Ministério da Defesa divulgou ordem do dia dizendo que o Golpe, que eles chamam de “movimento militar”, é um “marco para a democracia”.
    Certamente esse apoio explícito a uma ditadura sangrenta como símbolo de ordem em meio às incertezas do futuro foi seguido em muitos lugares do Brasil. No Mato Grosso, por exemplo, o deputado estadual pelo PSL Sílvio Fávero, que teve uma postagem apagada pelo Instagram, denunciada por apologia a crime.
    Essas manifestações levaram a notas de repúdio de diversos setores da sociedade. Um deles foi o Sindicato dos Jornalistas de Mato Grosso, que se pode ler abaixo:

    VIVA A DEMOCRACIA!
    HERZOG VIVE!
    DITADURA NUNCA MAIS!

    Neste 31 de março de 2020, completamos 56 anos do Golpe militar que resultou em 21 anos de ditadura no Brasil, 20 mil pessoas torturadas e mais de 400 mortos ou desaparecidos, conforme Comissão Nacional da Verdade.

    A redemocratização ocorreu em 1985 após muita organização popular em defesa da Anistia, da Emenda pelas Diretas Já e na denúncia das torturas, perseguições e mortes a defensoras e defensores da democracia.

    Se hoje temos eleições diretas para cargos públicos e a autonomia dos três poderes, ainda que com suas inúmeras fragilidades, foi porque lutamos e derrotamos a ditadura militar.

    Nesta luta, centenas perderam a vida nos porões da tortura, como o jornalista Vladmir Herzog, que permanece vivo em nossa memória.

    Por isso repudiamos com veemência a postura do deputado estadual pelo PSL de MT, Silvio Fávero, por manifestar seu apoio ao regime de ódio e tortura expresso pelo Golpe de 64.

    Para que germes da ditadura não prosperem, dizemos em alto e bom som: ditadura nunca mais!

    Viva a Democracia!
    Herzog vive!

    Sindicato d@s Jornalistas de Mato Grosso (Sindjor-MT)
    (Gestão 2019-2020) Em defesa d@ jornalista

    Outra importante instituição a protestar contra a exaltação mentirosa da Ditadura foi o Instituto Vladimir Herzog, como se vê abaixo:

    O Instituto Vladimir Herzog vem a público repudiar de forma veemente a posição de membros do atual governo em relação ao golpe militar de 1964, que hoje completa 56 anos.

    Em ordem do dia publicada neste 31 de março de 2020, o ministro da Defesa do Governo Federal, general do Exército Fernando Azevedo e Silva, classificou o golpe como um “marco para a democracia”. Mais tarde, o vice-presidente da República, o general de reserva do Exército Hamilton Mourão, se expressou em uma rede social dizendo que a ditadura militar promoveu “reformas que desenvolveram o Brasil”.

    O atual governo, mais uma vez, manifesta uma posição absolutamente incompatível com o Estado Democrático de Direito, falseia a história e avilta o direito à memória e à verdade, previsto na Constituição.

    Tal conduta não pode passar desapercebida e, por isso, nos somaremos a outras entidades para denunciar mais esta afronta à democracia a instâncias nacionais e internacionais, na expectativa de que medidas cabíveis sejam tomadas.

    Definir o golpe de Estado e os 21 anos da ditadura militar como um “marco para a democracia” ou dizer que foram promovidas “reformas que desenvolveram o Brasil” é negar a gravidade dos atos cometidos durante esse período sombrio, marcado por violência, tortura, autoritarismo, corrupção, censura e gravíssimas violações de direitos humanos perpetradas contra cidadãos em todo o país.

    Ao promoverem esse revisionismo histórico grosseiro e valorizarem o que aconteceu a partir de 1964, o ministro da Defesa e o vice-presidente evidenciam uma total dificuldade de compreender o esforço civilizatório e a escolha da humanidade por um futuro que conjugue liberdade, justiça, respeito e promoção dos direitos humanos, e se pavimente nos verdadeiros ideais democráticos.

    Há mais de uma década, nós do Instituto Vladimir Herzog – entidade que leva o nome de um jornalista brutalmente torturado e assassinado pelas forças de repressão que sustentavam a ditadura militar – exercemos a missão de fazer com que a sociedade conheça o passado para entender o presente e construir o futuro.

    Ainda hoje, no entanto, convivemos com o legado autoritário dos anos de chumbo, visível, por exemplo, na ausência de punição aos agentes públicos que perseguiram, torturaram, assassinaram e ocultaram cadáveres durante os 21 anos em que generais, passando-se por presidentes, governaram o país.

    Esse legado de impunidade e autoritarismo é o que permite que agentes do Estado sigam matando, torturando e desaparecendo com corpos de cidadãos brasileiros, em sua grande maioria de pessoas pobres, pretas e periféricas.

    Isso evidencia, de forma preocupante, que a tarefa de consolidar a democracia no Brasil ainda está incompleta e é indissociável da necessidade de se garantir o direito à justiça, à memória e à verdade a todos que sofreram – e ainda sofrem – com as gravíssimas violações de direitos humanos cometidas no passado e no presente.

    Marco para a democracia e desenvolvimento para o Brasil será o dia em que militares – e todos aqueles que sustentaram a ditadura por longos 21 anos – reconhecerem os crimes cometidos por integrantes das Forças Armadas entre 1964 e 1985 e pedirem perdão às vítimas, seus familiares e à toda sociedade.

    Marco para a democracia e desenvolvimento para o Brasil será o dia em que o Poder Judiciário – atento ao fato de que a República Federativa do Brasil se constitui em um Estado Democrático de Direito e tem como fundamento a dignidade da pessoa humana – processar e, se demonstrada a responsabilidade, punir os muitos torturadores já identificados do período.

    Por tudo isso, encaramos o dia 31 de março como uma oportunidade para homenagear as crianças que foram covardemente sequestradas, as mulheres que tiveram seus familiares assassinados e desaparecidos, os pais que viram seus filhos serem torturados, indígenas, camponeses, trabalhadores e todos aqueles que foram submetidos a tanta desigualdade e precarização da vida, especialmente nas periferias e nas favelas, mas lutaram bravamente – muitas vezes sacrificando a própria vida – contra a ditadura, em defesa da democracia e de uma sociedade mais justa e igualitária.

  • Pior que a ditadura militar, só a ditadura miliciana

    Pior que a ditadura militar, só a ditadura miliciana

     

    ARTIGO

    Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

     

    Já é lugar comum associar o governo de Jair Bolsonaro à ditadura militar que governou o Brasil entre 1964 e 1985. Como se a história fosse cíclica, muitos afirmam que o atual governo seria a repetição da experiência política autoritária de antes. Isso pode ser ouvido na boca dos apoiadores e dos críticos de Bolsonaro. Os apoiadores elogiam porque têm uma visão positiva da ditadura militar. Os críticos rejeitam Bolsonaro porque tem uma visão negativa da ditadura militar.

    Bolsonaro seria, então, o retorno daquele passado.

    A associação rápida entre o governo de Bolsonaro e a ditadura militar inspira alguns cuidados. Ė necessário diferenciar o Bolsonaro deputado do Bolsonaro presidente.

    Jair Bolsonaro ficou quase 30 anos no Parlamento sem relatar projetos ou presidir comissões. A vida funcional do deputado se resumia, basicamente, a subir à tribuna para elogiar a ditadura e criticar a democracia. Como percebeu com astúcia o professor Daniel Pinha (do Departamento de História da UERJ), o deputado Bolsonaro era um outsider da democracia, ainda que fosse deputado eleito em exercício de mandato, legitimado pela própria democracia.

    Bolsonaro não fazia parte do jogo democrático. Era a fenda autoritária que trincava o chão da democracia brasileira. A rachadura era pequenininha, quase imperceptível. Ninguém deu importância.

    Não à toa, Bolsonaro passou a ter maior projeção quando a democracia começou a colapsar, em junho de 2013. Bolsonaro era um dos poucos políticos que conseguiam andar confortavelmente nas ruas conflagradas, exatamente porque podia bater no peito e dizer “Nunca fiz parte disso, sempre critiquei”. E tinha razão.

    O deputado Bolsonaro foi saudosista da ditadura. O presidente Bolsonaro não é, apesar dos elogios frequentes aos ditadores. O presidente Bolsonaro não pretende replicar a ditadura militar. Seus propósitos são ainda mais nefastos.

    Primeiro porque a relação de Bolsonaro com as Forças Armadas não é harmônica. Bolsonaro saiu do Exército em 1988 em condições ainda não esclarecidas. Na época, ele tinha 33 anos e contava apenas 15 anos de serviços militares prestados. Bolsonaro passou mais tempo no Congresso Nacional como deputado de baixo clero do que nos quartéis como capitão de artilharia.

    Militar de baixa patente com fama de arruaceiro e indisciplinado, sem vínculos de camaradagem com outros militares. Se tivesse que escolher alguém para liderar um governo militar puro sangue, o generalato não escolheria Bolsonaro. Escolheria Mourão, Santos Cruz, Flávio Macedo ou qualquer outro oficial de altíssima patente e mais identificado com as forças armadas.

    Mas como foi Bolsonaro o eleito, os generais embarcaram, achando que conseguiriam pautar o presidente. Deram com os burros n’água. No primeiro ano de governo, os generais com cargos no primeiro escalão foram constantemente humilhados pelos príncipes presidenciais e pelo guru Olavo de Carvalho.

    Santos Cruz, respeitadíssimo dentro do Exército, foi demitido em junho. Mourão tentou exercer algum protagonismo e foi abertamente escanteado. Apenas o aloprado Augusto Heleno, outro com reputação pra lá de questionável, parece circular com algum conforto pelo primeiro escalão do governo.

    Somente na quarta versão do decreto das armas e depois de muita pressão dos militares, Bolsonaro reconheceu a autoridade técnica das Forças Armadas em definir quais armamentos poderiam ou não ser comercializados para pessoas físicas. Por três versões, o texto do decreto liberava para porte privado armas consideradas de uso exclusivo das Forças Armadas sem prever consulta às Forças Armadas. É ofensa institucional gravíssima.

    Bolsonaro ignorou solenemente a orientação dos generais na ocasião da crise com a Venezuela.

    Bolsonaro não é presidente militar.

    Se nas últimas semanas, os militares ganharam mais espaço no governo com a nomeação de Walter Souza Braga Netto para o comando do Ministério da Casa Civil, não foi por gesto espontâneo do presidente. Bolsonaro está isolado institucionalmente, pressionado pelos outros poderes da República. Os generais ainda são aliados estratégicos, ainda.

    Mas se Bolsonaro não é presidente militar, é o quê?

    É presidente miliciano, o que é muito pior, muito pior mesmo, do que ser presidente militar.

    O projeto de médio prazo do bolsonarismo é infiltrar milicianos nas polícias militares estaduais, desestabilizando governos de oposição e construindo a base armada que sustentaria o golpe contra os outros poderes da República. A recente greve da PM cearense foi apenas ensaio.

    Se acontecer golpe no futuro próximo, não será exatamente golpe militar, como em 1964. Será golpe miliciano. Por isso, Bolsonaro insistiu tanto no decreto das armas. A justificativa de que se tratava de uma questão de segurança pública, de que o “cidadão de bem tem o direito de se proteger contra os bandidos”, é conversa pra boi dormir. O interesse é armar uma base social disposta a ir às últimas consequências para remover a resistência que as instituições democráticas ainda impõem ao projeto bolsonarista.

    Não à toa, Congresso Nacional e Supremo Tribunal Federal derrubaram o decreto das armas. O Congresso derrubou na política. O STF declarou inconstitucionalidade. Não à toa, a malta fascista que irá às ruas em 15 de março exige o fechamento do STF e do Congresso.

    O que aconteceria se o decreto tivesse se tornado lei e essas pessoas estivessem armadas?

    Se a história do Brasil for novamente sangrada por uma ditadura, tudo indica que não será uma ditadura militar. Será uma ditadura miliciana, o que é muito pior, muito pior mesmo que uma ditadura militar. 

    Militar é submetido à hierarquia, a projetos institucionais. Traja farda com nome bordado no peito. 

    Longe de mim elogiar a ditadura militar, mas precisamos lembrar que grande parte da infraestrutura que o Brasil tem hoje (que está sendo destruída pelo atual governo), foi erguida pelos governos militares. O sistema universitário brasileiro (que está sendo destruído pelo atual governo) foi construído pelos governos militares. Em diversos aspectos, os militares deram continuidade ao projeto de desenvolvimento nacional idealizado na década de 1930 sob a liderança de Getúlio Vargas. 

    Já o miliciano é capanga vulgar, rasteiro, que sai às ruas mascarado ordenando que os comerciantes fechem as portas. É jagunço armado sem nenhum compromisso com nada além da vontade do seu patrão, daquele que contratou seus serviços. 

    Pior que a ditadura militar, só a ditadura miliciana.

  • FLIP: Defensora do Golpe de 1964, Elizabeth Bishop será a homenageada da festa

    FLIP: Defensora do Golpe de 1964, Elizabeth Bishop será a homenageada da festa

    A notícia da escolha de Elizabeth Bishop como autora homenageada na Flip 2020 é uma pá de cal num ano em que a cultura, a arte, a literatura descem ralo abaixo no Brasil, menosprezadas e desprezadas não só pelo governo, mas pelos brasileiros que o elegeram. Bishop, nascida nos EUA, viveu no Brasil durante mais de uma década, mas achava nosso país “um horror”. Desprezava a cultura brasileira (salvo raras exceções), a ponto de dizer: ‘Se você nunca vê um Picasso autêntico, finge que Portinari é bom – ou se você nunca na vida ouviu boa música, finge que bossa nova é bom e que Villa-Lobos é o maior etc.’

    Por Luciana Hidalgo*

    Bishop estava no Brasil em 1964 e, sobre a situação política, escreveu: Aqui, tudo está uma confusão, e uma tragédia, na verdade. Deus sabe o que vai acontecer depois. Parece excessivamente pró-comunista para mim e, por favor, diga a Kennedy ou a Arthur S. Jr. para se mexerem. A América do Sul inteira poderia muito bem azedar – para o lado do comunismo –, como uma leiteira, eu acho, e a culpa é metade do Brasil e metade nossa.”

    Quando afinal se deu o golpe militar de 1964, Bishop resumiu: “Bem, foi uma revolução rápida e bonita, debaixo de chuva – tudo terminado em menos de 48 horas. De fato, sentimos um estranho esvaziamento, nos preparamos para viver coladas no rádio e na tevê, deitadas sobre muitos sacos de café; eu assei pão – não havia pão para vender etc. – e também assei um pernil de porco!”

    Bishop não só pediu ajuda oficial do governo dos EUA para ajudar os militares a dar o golpe na nossa democracia como, junto à companheira Lota, acompanhou notícias da “revolução” comendo pãezinhos. E quando o governo militar começou a banir políticos da oposição, ela apenas comentou: “A suspensão dos direitos, a cassação de boa parte do Congresso etc., isso tinha de ser feito por mais sinistro que pareça. De outro modo teria sido uma mera ‘deposição’, e não uma ‘revolução’ – muitos homens de Goulart continuariam lá no Congresso, todos os comunistas ricos iriam fugir (como alguns fugiram, é claro) e os pobres e ignorantes seriam entregues à sua sorte.”

    Todas essas opiniões de Bishop sobre o Brasil (contidas na sua correspondência) já bastariam, na minha humilde opinião, para que a Flip no mínimo evitasse homenageá-la. Ainda mais num ano em que a extrema-direita governa o país com ameaças de AI-5 e com censuras de todos os tipos a artistas e intelectuais.

    Outro trecho de carta, contudo, é ainda mais chocante (atenção, tirem as crianças da sala): “Reidy também era uma das poucas pessoas sãs com quem Lota tinha trabalhado. Ela jura que todos os homens brasileiros são ligeiramente doidos – as mulheres podem ser sãs, mas infelizmente são retardadas mentais…”

    Mulheres brasileiras: retardadas mentais. Pois é.

    Dizem por aí que não se deve misturar a obra de um autor com a sua vida – et pour cause. Escritores têm mesmo todo direito de expressar livremente o que pensam. No entanto, por que um festival literário da importância da Flip no Brasil prestaria tributo a uma autora estrangeira capaz de dizer tantas bobagens elitistas, reacionárias e preconceituosas sobre nós, deixando assim de homenagear autores brasileiros de enorme relevância?

    Esses e outros trechos das cartas de Bishop estão acessíveis em ótimos artigos na revista Piauí. Me dei ao trabalho de ler inúmeras cartas, e o que fica é aquela velha e batida visão de escritora estrangeira, branca e rica, que tudo acompanha sem sair do conforto da sua mansão, comendo pãezinhos. Brioches?

    Bishop acha tudo no Brasil provinciano, e nisso até acerta: a escolha de Bishop para uma importante festa literária no Brasil de 2020 é, para dizer o mínimo, provinciana.

    Fui convidada para a programação oficial da Flip em 2017, aquela que homenageou Lima Barreto, e pude ver nas ruas a importância desse evento no calendário literário nacional. É antes de tudo uma festa dos leitores, que se aproximam mais dos autores, compram nossos livros, nos param nas ruas para pedir autógrafos. Por tudo isso, espero sinceramente que a Flip reveja essa escolha infeliz, politicamente melancólica, nos escombros de Brasil que nos restam.”

    *Luciana Hidalgo é escritora brasileira e doutora em Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio Janeiro (UERJ) e pesquisadora-associada à Universidade Sorbonne Nouvelle Paris 3, onde fez pós-doutorado.

  • MORRE UM JUSTO, O RABINO HENRY SOBEL, HERÓI DOS DIREITOS HUMANOS

    MORRE UM JUSTO, O RABINO HENRY SOBEL, HERÓI DOS DIREITOS HUMANOS

    Tikkun Olam é um conceito bastante caro ao judaísmo. Significa, literalmente, “consertar o mundo”. E, como tudo no judaísmo, tem 5.000 interpretações diferentes. Uma delas traduz Tikkun Olam como o compromisso que o judeu e a judia têm com o mundo, além de sua família e de sua comunidade.

    Seja qual for a tradução que se escolha, ela se aplica perfeitamente a Henry Sobel (1944-2019), rabino cuja trajetória representou um compromisso permanente, muito além da comunidade judaica, com os direitos humanos no Brasil e com o mundo.

    Nascido em Portugal, de família polonesa refugiada do nazismo, Sobel criou-se nos EUA e chegou no início dos anos 1970 como jovem rabino da Congregação Israelita Paulista (CIP), preferindo o Brasil a uma oferta na Suíça. Seguindo a regra do “no Brasil, como os brasileiros”, logo escolheu seu clube de futebol —o Corinthians, que terminaria trocando pelo São Paulo por influência de amigos.

    Dom Paulo e Henry Sobel no enterro de Herzog
    Dom Paulo e Henry Sobel no enterro de Herzog

    Com pouco mais de 30 anos e falando um português ainda capenga, viu-se no meio de um vendaval: o assassinato do jornalista judeu Vladimir Herzog, diretor da TV Cultura, cometido pelos órgãos de repressão do regime militar. Sobel não aceitou a versão oficial de suicídio e recusou-se a autorizar o sepultamento de Herzog na ala reservada aos suicidas do Cemitério Judaico do Butantã.

    É inesquecível sua imagem ao lado de outros dois gigantes do humanismo —o cardeal d. Paulo Evaristo Arns e o reverendo Jaime Wright— no culto ecumênico em homenagem a Herzog, na praça da Sé, um marco fundamental para o avanço da luta que culminaria com o fim da ditadura, quase dez anos depois.

    O papel de Sobel fez com que o Brasil o adotasse. O corte de cabelo sui generis e o sotaque inconfundível (como esquecer seu “queridos irmãos” nova-iorquino?) o transformaram em personagem obrigatório do cenário político, cultural e religioso do país.

    Possivelmente tenha sido o judeu mais conhecido do Brasil por muitas décadas, sempre identificado não apenas com a religião e a cultura judaicas, mas com a tolerância e a defesa dos direitos de todos os homens e mulheres, não importa sua religião, cor ou orientação sexual.

     

    Sobel “brasileiro”

    Tive a sorte de testemunhar cenas inesquecíveis: Sobel interrompendo uma importante reunião comunitária para atender à liderança do Movimento dos Sem Terra e intermediar uma conversa com um governador de estado, também judeu.

    Ou sua decisão de abrir a sinagoga da CIP para um ato ecumênico em homenagem a um jornalista judeu argentino, torturado em seu país, e que se suicidou no Brasil. Para muitos líderes religiosos judaicos, essa homenagem deveria ser vetada a um suicida, já que o ato representa uma ofensa à vida.

    Henry Sobel comprometeu-se com o mundo e abraçou o Brasil. Mas também foi abraçado e protegido pelo Brasil democrático, até em momentos polêmicos, principalmente em seus últimos anos de vida, marcados por sérios problemas de saúde que dificultaram sua atuação.

    A morte de Sobel em um momento em que crescem a intolerância, o racismo e o antissemitismo no mundo e em que, no Brasil, os direitos humanos, para muitos, deixam de ser um compromisso obrigatório e se reduzem a “coisa de quem defende bandidos”, um Tikkun Olam parece obedecer a um timing perfeito. Hora de sair de cena.

    Enquanto Amanda, sua esposa, a filha Alisha e todo o país choram a morte de Sobel, a essa altura, o rabino americano mais brasileiro que já houve deve estar reunido com seus amigos Jaime Wright e Paulo Evaristo Arns, todos lamentando os tempos difíceis. O Brasil democrático amanhecerá mais pobre amanhã.