Jornalistas Livres

Tag: Brasil

  • Bolsonaro se beneficia da ausência de candidatos competitivos na direita

    Bolsonaro se beneficia da ausência de candidatos competitivos na direita

    por Rodrigo Luis Veloso

    Bolsonaro se beneficia da ausência de candidatos competitivos no campo da direita. Quando olhamos as pesquisas de intenção de voto para presidente de forma segmentada isso fica mais fácil de entender.

    Hoje, Bolsonaro tem mais eleitores nas classes mais altas (na classe A é onde lidera com mais folga), entre os mais escolarizados e entre os jovens. Exatamente os perfis menos dependentes das políticas públicas, menos preocupados com políticas sociais, com o combate ao racismo, à violência contra mulher, e por isso mesmo mais suscetível ao discurso anticorrupção.

    No topo da pirâmide social, sobretudo nos condomínios da Barra da Tijuca, que é o feudo eleitoral que deu mais de 100 mil votos para Bolsonaro na última eleição para deputado, os eleitores não precisam votar preocupados com o trajeto de linhas de ônibus, nem com a superlotação dos trens. Ali a pauta que interessa é segurança, e o discurso que legitima tamanho egoísmo é a luta contra a corrupção.

    Privilegiados gostam de espalhar o medo de forma que ele justifique uma desigualdade cada vez maior. Assim posam de ameaçados em uma sociedade onde o índice de homicídios de negros é mais do que o dobro maior que o de brancos. Bolsonaro é representante do alarde.

    Em outros tempos esse mesmo perfil de eleitores, como demonstram gráficos, optou por candidatos da direita tradicional, como do PSDB. Em 2010, José Serra prometeu que, se fosse eleito presidente, invadiria a Bolívia com exército, e obteve expressiva votação nos mesmos redutos que agora estão com Bolsonaro. Em 2014, Aécio escolheu as cores verde e amarela para sua campanha que prometia livrar o Brasil da corrupção e que, em dado momento, se referiu ao golpe militar de 1964 como “revolução de 64”. Também foi vencedor nos redutos bolsonaristas.

    De uns tempos pra cá, no entanto, o fator mobilização nas ruas garantiu a Bolsonaro visibilidade que nunca tinha tido um candidato não apadrinhado pelos grandes meios de comunicação e o fator Lava-Jato, que se restringiu ao PT durante algum tempo para pavimentar o caminho para o golpe, extrapolou para todo espectro da política, deixando Bolsonaro posar como o único direitista honesto na disputa presidencial desse ano.

    A conjuntura policialesca patrocinada diuturnamente pelos jornalões, o Ministério Público e o judiciário obliterou a capacidade das legendas tradicionais operarem sua missão na terra, a de discursar contra a corrupção para encobrir a desigualdade e o aparelhamento do estado por interesses dos grandes empresários e rentistas.

    Dessa forma Bolsonaro diz absurdos que desagradam aqui e ali boa parte dos seus eleitores, porém, como são conservadores e não vão aderir a um programa de esquerda até outubro desse ano (por motivos diversos), eles não se veem com alternativa melhor. Preferem engolir “deslizes” e “exageros” de um extremista a ter que lidar com equívocos que consideram mais graves na agenda da esquerda.

  • Meu amigo Ariano

    Meu amigo Ariano

    Meu amigo Ariano eu conheci ainda menino, mas fui conhecendo mais conforme fui crescendo.
    Acho que tinha uns 11, 12 anos quando o acaso nos apresentou.
    Foi na biblioteca da escola que a gente se conheceu.

    Corria o ano de 1985.
    No recreio do grupo escolar era fácil identificar três tipos de crianças: as poucas às quais os pais davam dinheiro para o lanche, as muitas às quais os pais não davam dinheiro para o lanche e tinha eu, que não tinha nem o dinheiro do lanche dado pelos pais, nem os pais.

    Restavam duas alternativas possíveis, a fila da merenda oferecida pelo governo Montoro, que não era nenhum Lula lá, mas quebrou o galho naqueles tempos bicudos de redemocratização, e a biblioteca da escola, meu reino encantado particular.

    Salvo quando tinha alguma sorte — coisa rara, e faturava um trocado de maneira honesta ou nem tanto, pontualmente as 16:00h a fila da merenda e a biblioteca da escola eram meus destinos certos de segunda a sexta-feira.

    Foi numa dessas incursões ao meu reino encantado particular, mais conhecido como biblioteca pública, que conheci o meu amigo Ariano.
    E o meu amigo Ariano me apresentou os seus amigos.

    • João Grilo, um rapaz pobre que vivia tentando se dar bem através de expedientes. Trabalhava para o Padeiro, e era o melhor amigo de Chicó.

    • Chicó era um rapaz bem covarde, que gosta de contar mentiras. Entre uma mentira e outra, deixava escapar a grande verdade, que na verdade tinha um bom coração. Também trabalhava para o Padeiro, que remédio? e era o melhor amigo de João.

    • O Padeiro era um homem avarento, dono da padaria onde trabalhavam Chicó e João Grilo. Padeiro era casado com Dora.

    • Dora era uma mulher muito infeliz. Adúltera, mas que se dizia santa. Tentava agradar seu marido, o Padeiro mas o enganava, e a si mesma também se enganava.

    • Padre João era o padre que chefiava a paróquia de Taperoá, cidade onde vivia quase todo mundo dessa crônica. Muito racista e avarento, Padre João só queria saber de dinheiro, e não era pouco dinheiro não.

    • O Bispo, que assim como o padre, era muito avarento, e difamava seu colega de batina, o Frade.

    • O Frade era um homem religioso, honesto e de bom coração. Nem sabia que era difamado pelo seu colega de batina, o Bispo.

    • Antônio Morais era um major ignorante e autoritário, que usava seu poder para amedrontar os mais pobres. Uma espécie de Jair Bolsonaro do século passado.

    • Severino era um cangaceiro que encontrou no crime uma forma de sobrevivência. Seus pais foram mortos pela polícia, e desde então Severino desacreditou da Justiça, e fez do Cangaço a sua própria Justiça.

    • Cangaceiro era um dos capangas de Severino que fazia de tudo para agradar seu chefe, Severino. Não era muito inteligente Cangaceiro, mas era leal ao seu chefe, Severino, e era só isso que importava aos dois.

    • A Compadecida era a própria Nossa Senhora, mãe de todos e toda bondosa. Delicada. Confesso que foi um choque conhecê-la, eu que não estava nem um pouco acostumado com essa coisa de mãe, menos ainda de bondosa e delicada então nem se fala.

    • Manuel era um juiz do povo, julgando sempre com sabedoria e imparcialidade, e que tinha o dom da misericórdia. Diferente dos juízes de hoje, principalmente um certo Sérgio Fernando. Aliás era diferente também na cor da pele, preta, o que causava espanto em alguns, mas em mim não. Simpatizei como ele na hora. Era pobre, como eu. Era dos meus.

    • Encourado era a encarnação do diabo. Desprovido de qualquer tipo de sensibilidade ou misericórdia, era uma versão mais diabólica do Bolsonaro.
      Pois é, o mal tem várias versões e faz tempo, há muitas gerações.

    Pois bem, foi na biblioteca de um grupo escolar na Zona Sul de São Paulo, numa tarde em 1985, que o acaso me apresentou ao amigo Ariano Suassuna através de sua obra prima, “O Auto da Compadecida”.

    Desde então Ariano passou a ser meu amigo, um dos melhores amigos que já tive.

    Nunca cheguei a conhecer o amigo Ariano Suassuna pessoalmente, mas nos tornamos amigos inseparáveis desde aquela tarde, em 1985.

    Ariano Suassuna nos deixou no dia 23 de julho de 2014, mas nossa amizade dura até hoje.

    Um dia eu contarei para meu filho Fidel as histórias que Ariano Suassuna me contou através de suas obras.

    Contarei para ele as vezes em que me sentia deprimido, absolutamente sozinho, e abria um vídeo do amigo Ariano no Youtube, e sua maneira simples de enxergar a vida e contar seus causos me enchiam o coração de alegria, espantando a tristeza e a depressão que insistiam em nele fazer morada.

    Contarei todas essas histórias para Fidel, e muitas outras mais, e terminarei todas essas histórias como meu amigo Chicó terminava as suas, assim:
    “só sei que foi assim.”

    “Cumpriu sua sentença. Encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca do nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo, morre.”
    Trecho de “O Auto da Compadecida”

    Ariano Suassuna, presente!

    ★Parahyba, Paraíba — 16 de junho de 1927
    ★Recife, Pernambuco — 23 de julho de 2014

  • O problema do Brasil são os brasileiros?

    O problema do Brasil são os brasileiros?

    Provavelmente você já ouviu a frase “O problema do Brasil são os brasileiros”. Você acredita nisso? Essa frase quer dizer que o problema do Brasil sou eu, é você, seus familiares, amigos e vizinhos.

    Será que isso é verdade?

    Geralmente as pessoas que dizem isso comparam o Brasil com outros países e tentam provar que aqui os problemas são maiores. É como se o Brasil tivesse sido amaldiçoado: “tanta beleza, mas um povo tão ruim!”. Mas as pessoas esquecem que existem problemas gravíssimos em outros países que não existem aqui.

    No Japão, na Coreia do Sul e na Bélgica, por exemplo, as taxas de suicídio são assustadoramente altas. Se fossem lugares maravilhosos de se viver as pessoas tirariam a própria vida? Nos Estados Unidos são muito frequentes assassinatos massivos com armas de fogo dentro de escolas realizados por crianças e adolescentes. Serão felizes essas crianças? No entanto você não ouve dizer que “o problema da Bélgica são os belgas” ou que “o problema dos Estados Unidos são as crianças norte-americanas”.

    Ironicamente muitos estrangeiros discordam da ideia de que o problema do Brasil são os brasileiros, pois consideram o brasileiro um povo extraordinariamente criativo e alegre. Essa ideia também ignora coisas positivas que acontecem no nosso dia a dia.

    Você sabia que no Brasil mais de 7 milhões de pessoas realizam algum tipo de trabalho voluntário? Provavelmente elas buscam fazer algo positivo para o seu país. Você lembra daquela professora que morreu salvando crianças de um incêndio na creche em Minas Gerais?

    Será que todas essas pessoas são o problema do nosso país?

    Por que então algumas pessoas pensam que o problema do Brasil são os brasileiros? Provavelmente por duas razões. A primeira é por que fazem uma generalização extrema. Dizer que o problema do Brasil são os brasileiros é o mesmo que dizer que todos os brasileiros são mau-caráter, golpistas e trapaceiros. Evidentemente essa ideia é completamente falsa.

    Em segundo lugar, por que as pessoas fazem uma comparação entre o que os poderosos fazem (retirada de direitos, corrupção, lavagem de dinheiro…) e aquilo que o povo faz. É como se furar a fila do ônibus fosse o mesmo que desviar a verba da merenda escolar. Como se alterar em alguns reais o valor do recibo do lanche fosse o mesmo que ganhar auxílio-moradia de R$4.000 como os juízes brasileiros.

    Mas será que se trata realmente do mesmo problema?

    Na realidade, a maioria das contravenções que as pessoas comuns cometem no seu dia a dia são muito mais estratégias de sobrevivência do que atos equivalentes aos golpes milionários que aparecem na TV. Afinal, o brasileiro é antes de tudo um sobrevivente: sobreviveu ao colonialismo, à escravidão, à hiperinflação, ao desemprego, à fome… e para isso criou um modo de vida muito flexível. Podemos considerar moralmente errado, mas é basicamente um meio de sobreviver. O mesmo não se pode dizer dos poderosos. Por isso, é até engraçado pensar que o problema do Brasil é o brasileiro!

    Mas a quem interessa a ideia de que o problema do Brasil são os brasileiros?

    Essa ideia interessa a poderosos interesses estrangeiros, pois se nós somos o problema, a solução só poderia vir de fora. Assim, seria necessário entregar o patrimônio nacional para empresas estrangeiras pois eles saberiam como nos governar melhor. Por isso, é triste ouvir pessoas que se orgulham de vestir a camisa do Brasil dizerem que o problema do Brasil são os brasileiros.

    Os poderosos setores que controlam o Estado brasileiro também se beneficiam dessa visão. Pois se o problema é o povo, a gente merece o governo, o Congresso, a polícia, e o judiciário que temos. Alguns grupos que não querem que o povo participe da política também disseminam essa visão, afirmando que a solução para o Brasil é o uso da força e da repressão. Pois se o povo é o problema, há que prendê-lo e impedi-lo de falar.

    Dizer que o problema do Brasil é o brasileiro é o mesmo que dizer que o culpado da escravidão é o escravizado e não o senhor! É uma forma que alguns poucos encontraram para justificar injustiças de todo tipo.

    Mas, ouça bem: Os brasileiros não são o problema, são a solução! O problema do Brasil não é o povo, é o Estado brasileiro e aqueles que o controlam. E para vencê-los é necessário conquistar a liberdade para eleger e ser eleito. É necessário conquistar a liberdade de fazer política, dentro das eleições e para além delas.

    • Amilton Sganzerla, filósofo de meia idade, morador de uma Porto já não tão Alegre
  • PEIXE FRESCO COM FARINHA FINA.

    PEIXE FRESCO COM FARINHA FINA.

    Há uma flor, fruto aprimorado pelas etnias xinguanas, o pequi, que prenuncia a fartura da vida em equilíbrio. Coisas lindas se anunciam nesta época. Crianças correm atrás de flores como se fossem borboletas, brinquedos e brincadeiras inventam-se na época da flor de pequi. O olhar às vezes fala de coisas que não se quer acreditar.

    Brincar deve ser uma forma de ensaiar a vida, arriscar atitudes. Tantas crianças correm na aldeia, uma trilha sonora de pequenos gritos eufóricos, risadas breves e um batuque oco de chinelos havaianas correndo no terreiro. Pressinto, nessa hora, que Pindorama deveria ser uma alegria quando os patrícios aqui desembarcaram. Devem ter visto tantos prazeres que pensaram estar no éden. De fato, o humano impressiona quando o ambiente e a cura coincidem. 

    Anuncia-se o fim do inverno e as saudosas chuvas ainda estão longe, recolhem-se os rios denunciando os tracajás, jacarés e capivaras nas margens. Como uma língua longa, o rio Xingu começa a anunciar suas rasuras e praias de areia fina, desertas com ventos de aprazia, como dentes em uma boca ampla que abriga muitos sabores e apetites. Os peixes, nas águas em abundância, saciam pescadores indígenas de todas as idades. É peixe moqueado, mutap de peixe, é caldo de peixes e a boa farinha branca de mandiocas, de sutil sabor acre, selecionadas em primitivas roças. A mandioca,  romantizo aqui a sacralidade de sua providência, é alimento fundamental entre os povos indígenas e todos excluídos que na humanidade persistem.

     

    O que de fato pulsa quando o coração bombeia ao brincar ainda é cedo para se afirmar. Ousa o coração pulsar sangue, as trocas gasosas, condução de elementos que do alimento advêm. Como uma floresta virgem e seus rios, o corpo da gente vive bem e em sossego quando, lúcido, alimenta-se e  se movimenta, sem tanto e tudo que o mercado coloca dia a dia em nosso prato.

    Grande troca de saberes ocorre em ação desenvolvida para exames, diálogos, análises e diagnósticos da população local, pesquisa ação em dislipidemia executada  pela Universidade Federal de São Paulo, o Projeto Xingu, integrando médicos, enfermeiros, nutricionistas, alunos e profissionais da saúde. As mulheres indígenas Kawaiwete mostram seu refinado conhecimento da culinária tradicional, que em grande parte corrobora para os bons índices de saúde na comunidade e os  sorrisos largos na população.

    Assim como a comunidade expõe seus hábitos de preparo dos alimentos tradicionais, também a equipe multidisciplinar prepara alimentos de nossa tradição ocidental e orienta a comunidade sobre o uso do sal, açúcar e óleo, alertando para o grave risco do uso exagerado desses produtos.

    São tantos os sabores e saberes que separam saúde e doença, fronteiras muitas vezes mascaradas nas prateleiras de supermercados e vendas Brasil afora. São tantos também os alimentos da terra, de entranhas seculares de antigos preparos e poderes.

    Em breves belos dias vi um país possível pairando no ar seco, tão feliz, tão só, reluzente de um lugar que há graça entre sertão e bem querer, amenos cuidados, determinação em uma nação que somos. O bom prato constitui-se num ato de resistência ao desenfreado capitalismo da industrialização dos alimentos, ao avanço do diabetes, ao fim das brincadeiras nas aldeias.

     

    *imagens por Helio Carlos Mello© – acervo Projeto Xingu/UNIFESP.

  • FINA ESTAMPA DA BOA MESA.

    FINA ESTAMPA DA BOA MESA.

    Davi morreu, não venceu a batalha, morreu pelos hábitos da boca. Davi fazia pastéis tradicionais da Serra do Roncador, sua massa de farinha crua e caldos, recheios de carnes e a fritura fina em óleo quente. Em 16 anos de frequentes presenças no Mato Grosso e sua Canarana do agronegócio, tão jovem cidade, tão antigos hábitos forasteiros, sempre vi Davi com o cigarro entre os beiços, como se o filamento fosse um apêndice natural de sua cara atrás do balcão a atender sisudo ou firme a todos.

     

    Cheibom era o nome de seu estabelecimento, dizia ele que cheio que era bom e rimou para o luminoso da esquina. Colecionou cachaças intocáveis por 20 anos, como flor no jardim entre espinhos, preenchendo todas as paredes do bar. Davi acreditou na rosa, descuidou-se das armadilhas. Descobri em pura observação pela década, que colecionar também é um ato de resistência. Subterfúgio, artifício? Creio que sim, pois os tragos constantes à boca de Davi subtraía-se às garrafas já abertas para a venda aos clientes; e o fumo e os fritos. A bomba explodiu, enfim. Na cama ficou a dormir para sempre, sem drama, belo infarto.

     

    Ah, o desafio dos índices. A vida plena e o prazer de uma longa existência talvez resuma-se em saber comer; e beber também. Andar, respirar e amar são adendos. Equilibrar-se na verdade é o danado do samba dessa vida, vejo bem agora.

    Para a Terra Indígena do Xingu segui mais uma vez, a documentar o valente trabalho de equipe da Unisfesp, o programa de extensão universitária da Medicina Preventiva, Projeto Xingu. Como um estica e puxa de arco a arremessar uma flecha, daquelas que acometem peixes, pássaros ou bichos de chão e galhos, a pesquisa ação de dislipidemia dos povos é a bola de cristal, a espada de Hércules para o bem viver. Apesar de muitas baixas diante de Golias, muito há a se construir e descobrir na disputa entre hábitos alimentares tradicionais e a invasão dos açucares, sais e óleos comestíveis que abraçam e iludem originárias populações.

    Tudo é uma questão de saber cozer e esfriar o caldo, socar bem o milho, amendoim ou mandioca. Viver bem implica em produzir o prato, distante das armadilhas das prateleiras ou publicidades satânicas.

    Como bater timbó na água doce, alimentar-se é usar o veneno a favor do alimento, negar o que intoxica a vida preciosa, levar a semente onde pisam os pés, colher, cozer.

    *imagens por Helio Carlos Mello©/Acervo Projeto Xingu-UNIFESP.

  • Nossos mitos da caverna

    Nossos mitos da caverna

    Vejo numa padaria uma TV ligada na Globo News. Fico curioso pra ver a repercussão deles das vergonhosas manobras jurídicas que mantiveram Lula preso ontem. A manchete: “Estresse pós-traumático preocupa”, imaginei um grande trauma nacional depois do visível colapso do nosso sistema judiciário, mas se tratava das crianças que foram resgatadas de uma caverna na Tailândia. Não ouvia o som, mas pensei em qual seria essa preocupação com o estresse pós traumático. Porque um ser humano não deveria ficar traumatizado depois de uma experiência tão forte? Que resiliência é essa que o mundo parece esperar das pessoas? Já era a terceira vez eu via essa manchete em lugares diferentes. Será que querem saber com que rapidez essas crianças podem ser reinseridas na engrenagem de exploração e consumo? Com que rapidez podem voltar a iludir seus desejos, assistir televisão, querer brinquedos de plástico?

    Me choca já há algum tempo a rapidez com que se retoma, no Brasil, a aparência de normalidade. Há cerca de um mês não havia gasolina nos postos e se falava em caos. Um segundo depois, tanques cheios, foi como se nada tivesse acontecido. Há cerca de três meses Lula foi preso. Há cerca de quatro meses Marielle foi assassinada. Há cerca de dois anos Dilma Rousseff sofreu um golpe. Há trinta anos o Brasil era governado por uma ditadura. Há cento e trinta havia escravidão. E mesmo assim vivemos em suspensão, nos mitos da democracia racial, da democracia representativa, do Estado de Direito, do funcionamento normal das instituições. Não encaramos esses traumas, não olhamos, como país, propriamente para eles. A realidade, a concepção do que é possível, está golpeada, e com isso se vai a possibilidade do choque, com isso se vai a possibilidade de comover-se. Seguimos num teatro do absurdo, numa existência surreal em que nos foram roubados os limites, as ferramentas pra dizer “isso não pode”, “daqui você não passará”.

    Às vezes me parece mesmo que deveríamos estar em estresse pós traumático permanente. Mas não, perecemos lentamente. Me veio não sei de que lugar obscuro do inconsciente uma imagem de que um dia nos colocarão com os cotovelos virados pra fora e, depois de uma certa gritaria, no dia seguinte, já estaremos dizendo que assim é a vida. Ou pior, nem falaremos mais sobre o assunto, apesar da visível estranheza nos abraços dos casais na novela. Perversidade e apatia.

    Corta para a manchete seguinte: “Brasil tem 7.5 mil cavernas, a maioria em Minas Gerais.” Encontro uma aconchegante e perto do mar? Vejo circundar a minha cabeça e as dos meus amigos idéias de êxodo, de buscar cura nas coisas e nos ciclos eternos da natureza. A césar o que é de césar, meu reino não é deste mundo. Mas gosto ainda da luz do sol que me permite ver, mesmo quando não gosto do que vejo. Me comovo com o drama das crianças da Tailândia, desejo que elas possam lidar com o trauma de uma maneira saudável, que cresçam e contem histórias e tenham paixões. Anseio profundamente também por um Brasil livre, como um dia se vislumbrou no horizonte. Sem a dúvida que entre os comerciais me martela o pensamento: será que na caverna não já estamos?