EL BOSQUE é uma das 32 comunas que compõem Santiago e uma das menos cotadas entre os turistas que passam pela capital do Chile. Com casas baixas e ruas estreitas, herdeira das antigas poblaciones que a formaram, é bem diferente da imagem moderna que a cidade costuma deixar na memória dos viajantes. Ali, onde nem o metrô chega – e o de Santiago é o maior da América do Sul –, conheci Hugo González. Velho militante comunista, ex-prisioneiro político da ditadura de Augusto Pinochet, Hugo me recebeu em sua casa alguns anos atrás, para dar seu testemunho sobre a repressão que sentiu na pele.
Em uma das paredes de casa, ostentava um retrato de Fidel Castro e Camilo Cienfuegos celebrando a vitória da Revolução Cubana. Em outra estante, uma imagem de Salvador Allende com a faixa presidencial. Era 2012 e Hugo me contava o que havia ocorrido quase 40 anos antes, quando foi pego na rua durante o toque de recolher imposto pelos militares e passou, pela primeira vez, pelos centros de detenção da ditadura. Mas também fazia comentários sobre a atualidade. Ainda gostava de protestar. “Sigo sendo comunista”, dizia com certo orgulho. “Mas não sou mais filiado ao Partido”.
Lembrei de Hugo González na última semana, conforme os protestos chilenos contra o aumento da passagem ganharam corpo e atingiram o ponto de ebulição na última sexta-feira, quando a situação se agravou definitivamente, o país entrou em estado de emergência e até o fantasma do toque de recolher voltou. Há quatro noites, os santiaguinos precisam voltar para a casa mais cedo, antes da hora determinada pelos militares, ou podem passar a madrugada detidos. Lembrei de Hugo nem tanto pela volta do toque de recolher, que o vitimou em outros tempos, mas por sua desilusão com a política partidária, compartilhada por muitos chilenos desde a redemocratização.
As medidas que o presidente Sebastián Piñera agora promete em resposta aos protestos, a contragosto e por ter sido colocado contra a parede, não respondem a demandas novas: são bandeiras antigas que atravessaram vários governos de centro-esquerda sem serem devidamente contempladas após a volta à democracia.
Manifestantes exibem cartazes que fundem foto do atual presidente Sebastian Piñera e do ditador Augusto Pinochet.
Foto: Pablo Vera/AFP via Getty Images
Heranças do general
Se o Chile chegou a esse ponto de convulsão social, é em grande parte pelas políticas iniciadas na ditadura, a privatização descontrolada de todos os aspectos da vida, mas também é pela forma com que a transição foi levada, receosa de tocar em algumas feridas. Nos anos 1990, com a sombra de Pinochet ainda presente na vida pública, a coalizão de centro-esquerda que governava o país manteve boa parte das estruturas intactas. Em nome da estabilidade política e econômica no curto e médio prazos, empurrava-se para o futuro a resolução de problemas mais profundos. Até a Constituição chilena, embora reformada em vários pontos, ainda é fundamentalmente a mesma ditada sob Pinochet em 1980 e aprovada em um plebiscito fraudulento.
O resultado foi que a Concertación governou o país por mais tempo do que a própria ditadura durou (20 anos contra os 17 de Pinochet) e, embora tenha promovido uma série de reformas na direção do bem-estar social e avançado na reparação às violações de direitos humanos cometidas pelos militares, nunca chegou a desativar de verdade as bombas-relógio deixadas pela ditadura – as medidas radicais propagadas pelos Chicago Boys e que, no Brasil, tanto influenciam o pensamento de Paulo Guedes.
Agora, elas parecem ter explodido juntas e de uma vez só, mas são questões levantadas pela primeira vez há mais de 20 anos, e adiadas para outro século enquanto todos os outros indicadores eram positivos: a renda média e o IDH se elevavam, o PIB mantinha um crescimento quase ininterrupto, a desigualdade se reduzia ano a ano, e o Chile parecia destinado a ser o primeiro país desenvolvido da América Latina. O outro lado da moeda estava na própria desigualdade, que só caía tanto porque era altíssima para começo de conversa – a segunda maior da América Latina, atrás apenas do Brasil, ao fim da ditadura, e ainda hoje entre as maiores do mundo –, e os elevados custos de todos os serviços que, mesmo quando se mantiveram formalmente “públicos”, são pagos.
Tome-se a saúde, por exemplo: apenas 20% dos chilenos têm um plano privado, mas, mesmo para a maioria da população que não pode ou não quer mantê-los, há mensalidade para se utilizar o Fonasa, o mais próximo que o país tem de um SUS, criado pelo regime Pinochet em 1979 – um desconto fixo de 7% do salário, mais um valor pago por consulta ou procedimento, de acordo com a faixa de renda do usuário. A menos que o chileno viva em estado de pobreza extrema, única situação em que a lei garante isenção (e também o atendimento mais precário, reproduzindo a desigualdade), é preciso sempre passar pelo caixa do hospital. Como ocorre aqui, o sistema “público” também sofre com longas filas e falta de especialistas.
Na educação, os custos do ensino superior estão entre as maiores causas de endividamento entre jovens entre 15 e 29 anos. A dívida acumulada através dos chamados créditos com aval do estado se aproxima dos US$ 7,7 bilhões, valor que equivale a quase 2,5% do PIB do país. Mesmo na Universidade do Chile, uma instituição pública, a anuidade média ultrapassa os R$ 21 mil, podendo chegar a R$ 34 mil em cursos mais caros, como medicina. Os cursos passaram a ser pagos nos anos 1980, sob Pinochet. A luta por uma educação pública que também seja gratuita exemplifica a dificuldade de reverter as medidas da época da ditadura: os primeiros protestos estudantis massivos começaram em 2006, mas seriam necessários outros 12 anos até Michelle Bachelet anunciar um recomeço de gratuidade.
Manifestantes protestam nos arredores do hospital Carlos Van Buren Hospital em Valparaiso, Chile.
Foto: Javier Torres/AFP via Getty Images
A pobreza dos velhos
Se os jovens se endividam pelo alto custo da educação, os mais velhos o fazem pela falta de recursos, devido às baixas aposentadorias. O outro grande elefante na sala do Palácio de La Moneda é o controverso sistema de pensões idealizado nos anos 1980 pelo então ministro do Trabalho, José Piñera, irmão do atual presidente, Sebastián Piñera. Trata-se do sistema de capitalização, em que o modelo “social” onde todos contribuem para um mesmo fundo nacional foi substituído por contas individuais. O modelo dos sonhos de Paulo Guedes para a reforma da previdência brasileira – que ainda não vingou por aqui, onde o texto aprovado ontem pelo Senado manteve a base do sistema atual, mas com regras muito mais rígidas quanto ao tempo de contribuição e à idade mínima para se aposentar.
No Chile, os resultados desastrosos da capitalização individual começaram a ser sentidos nos últimos anos, quando a primeira geração que contribuiu integralmente no sistema adotado em 1981 começou a se aposentar: obrigados a depositar 10% do salário para a pensão, mas sem contribuição complementar por parte do empregador ou do estado, a maioria dos chilenos chegou à velhice sem uma “poupança” suficiente para se manter. Muitos deles passaram boa parte da vida em empregos mal pagos ou informais, como reflexo da flexibilização das leis trabalhistas promovida pela ditadura, e hoje oito em cada dez pensionistas chilenos recebem abaixo do salário mínimo nacional. Os trabalhadores do país estão se aposentando com valores médios de 158,7 mil pesos chilenos mensais (R$ 884) em um país onde o salário mínimo bate nos 301 mil pesos (R$ 1.676).
A revolta aumenta quando se comparam com as pensões dos militares, que nunca aderiram ao sistema de capitalização imposto por Pinochet ao resto do país. Eles têm uma seguridade social própria e valores muito acima dos civis: saem da caserna ganhando, em média, 972,3 mil pesos mensais (R$ 5.415). Uma indignação resumida na troca de farpas que Daniel Jadue, prefeito de esquerda da Recoleta, outra comuna de Santiago, teve ao encontrar policiais militares nas ruas durante uma das manifestações da semana passada: “queremos o mesmo que vocês (têm)”.
Protestos de Junho de 2013 contra o aumento das passagens, em Belo Horizonte, Minas.
Foto: Yuri Cortez/AFP/Getty Images
Brasil e Chile: rebeldes na “bonança”
Desde que os protestos se agravaram, uma imagem muito utilizada na imprensa internacional se refere à suposta excepcionalidade do Chile frente aos vizinhos: se a ideia que o resto do mundo tinha do país andino era a de um paraíso, agora havia fogo às suas portas. A principal razão para isso? A crescente classe média do país que, apesar de todos os avanços das últimas décadas, não consegue dar o passo além, pois gasta o que tem para acessar serviços básicos que tenham alguma qualidade, como ocorre na saúde e na educação.
“O país cresceu em anos recentes. A pobreza está em seu nível mais baixo desde que há registro. Mesmo a desigualdade – uma característica tão própria do país – está em seus níveis históricos mais baixos”, escreveu o cientista político chileno Patricio Navia, da Universidade de Nova York. Para ele, a culpa não seria tanto do modelo econômico do país, mas da sua lentidão em se renovar: “os chilenos estão descontentes porque o país não avança o suficientemente rápido pelo caminho do crescimento econômico e o desenvolvimento com oportunidades iguais para todos”.
Se muito dessa leitura parece familiar, é porque vimos interpretações semelhantes no Brasil de junho de 2013. Hoje, mais de meia década de depressão econômica, social e política mais tarde, ficou mais difícil de lembrar que, naquele momento, também apresentávamos os melhores indicadores sociais de nossa história: a desigualdade havia atingido seu nível mais baixo desde os anos 1960 (agora voltou a crescer), o país estava a ponto de deixar o Mapa da Fome (para logo reaparecer nele) e vivia uma condição próxima do pleno emprego (dispensável dizer onde estamos hoje nesta questão).
Vistas como óbvias em retrospecto, as manifestações de 2013 pareciam um paradoxo ao primeiro olhar. Na época, o Financial Times argumentava que essa parte da população, que podia “consumir como nunca”, ainda não havia visto melhorias em outros setores: pagava caro por serviços de má qualidade. “A vida no Brasil sem dúvida melhorou, e muito, nestas duas décadas de ajuste ao capitalismo global. No entanto, ninguém aguenta mais”, resumia o filósofo Paulo Arantes.
Aqui, como no Chile, havia o impulso de uma nova e descontente classe média, que viu a vida melhorar, mas agora queria mais – e não conseguia dar o passo além. O estopim foi o mesmo, um aumento nas passagens do transporte se somando ao resto, e as causas subjacentes são bem parecidas: o tanto que se gasta para ter acesso ao que deveria ser básico. Aqui, na forma de impostos elevados que pareciam não trazer o devido retorno. Lá, no país onde o estado se desfez de quase tudo, pelas altas taxas que financiam serviços que, mesmo nominalmente públicos, operam como privados – quando não estão inteiramente privatizados, como a água e a energia, cujos custos elevados também apareceram entre as bandeiras das manifestações.
Ontem, em uma tentativa de apaziguar os protestos, Piñera respondeu com uma série de propostas que, se levadas adiante, finalmente começariam a desmontar a pesada herança social da ditadura: 1) reajuste e ampliação das chamadas pensões solidárias, que contam com aporte estatal, 2) ampliação do convênio do Fonasa, 3) criação de um seguro que permita às famílias não gastarem com saúde além de um teto definido pelo governo, 4) garantia de um complemento salarial para trabalhadores que recebem valores insuficientes, 5) redução da tarifa de energia elétrica, entre outras promessas que aprofundariam a responsabilidade do estado sobre questões adiadas nas últimas duas décadas.
Da promessa à concretização há um longo caminho. Mas, se o pacote sair do papel, o Chile veria um aumento das redes de subsídios e proteção social dizimadas pela privatização descontrolada dos anos 1980 e que nenhuma reforma da democracia conseguiu reconstruir por inteiro. Faria isso, curiosamente, sob um presidente conservador, que provavelmente nem tocaria nessa agenda se não fosse acossado pelas ruas. Em um surpreendente (mas não inesperado) movimento de contramão, o Brasil indignado nos protestos de 2013 desembarcou, seis anos mais tarde, com um governo que queria imitar o Chile. Agora, porém, os chilenos parecem ir às ruas querendo ser um pouco mais Brasil pré-crise.
A data 25 de outubro ficará marcada para sempre na história do Chile. Em 2019, foi o dia em que mais de 1,2 milhão de pessoas saíram às ruas para exigir um país mais digno. Um ano depois dessa manifestação, a maior do país, no dia 25 de outubro de 2020 os chilenos decidiram enterrar o último legado da ditadura de Augusto Pinochet: a Constituição de 1980.
Por Amanda Marton Ramaciotti, jornalista brasileira-chilena
No domingo, milhões de chilenos votaram em um plebiscito sobre escrever ou não uma nova Carta Magna, uma medida que nasceu como uma saída política à crise social iniciada em 2019. O resultado foi avassalador: 78,27% da população aprovou a iniciativa, contra 21,73% que a rejeitou.
Além disso, 78,99% dos votantes disse que quer que a nova Constituição seja redigida por uma Convenção Constituinte formada por 155 membros eleitos pela sociedade; versus um 21,01% que expressou que preferia uma Convenção Mista, formada por 172 membros, a metade deles legisladores e o restante constituintes.
A comemoração durou horas. Em Santiago, milhares de pessoas foram a pé, de carro e de bicicleta em caravana até a avenida principal da capital e à praça central (antes conhecida como Praça Itália e agora, pelas manifestações, chamada popularmente de “Praça Dignidade”). Bandeiras do Chile e cartazes com as palavras “adeus, general” (em referência ao Pinochet) eram vistos em várias ruas.
Nova Constituição: chance de o Chile renascer – @delight_lab_oficial
A sensação era de um êxtase coletivo. “Ainda não consigo acreditar no que está acontecendo… Mais do que isso, é impossível dimensionar tudo que conseguimos”, me disse uma manifestante. Em um dos edifícios emblemáticos de Santiago, foi possível ler uma grande projeção com a palavra “Renasce”.
“Para mim, é o começo de uma nova era”, comentou um jovem que estava comemorando os resultados do plebiscito.
Ele tem razão. Apesar de que a Carta Magna “do Pinochet” —escrita pelo advogado constitucionalista e ideólogo da direita chilena Jaime Guzmán—, sofreu alterações durante a democracia, manteve vários dos seus aspectos principais. Ela continuou sendo a base do modelo neoliberal chileno que se adentrou na saúde, educação e sistema de aposentadoria, e também impedia grandes reformas estruturais pela exigência de um quórum de dois terços ou três quintos que, na prática, sempre foi muito difícil de ser alcançado.
O novo ciclo
A decisão de escrever uma nova Carta Magna encerra um ciclo doloroso para milhares de pessoas que foram vítimas da ditadura do Pinochet, uma das mais sangrentas na América Latina, e também para tantas outras que até agora vivem em um país desigual devido, em grande parte, às disposições da atual legislação. O ciclo que começa agora é cheio de esperanças, mas também repleto de desafios.
O presidente Sebastián Piñera, quem em nenhum momento do processo deixou claro qual era o seu voto, disse domingo de noite que o plebiscito “não é o fim, é o começo de um caminho que juntos deveremos percorrer para escrever uma nova Constituição para o Chile. Até agora, a Constituição nos dividiu. A partir de hoje todos devemos colaborar para que a nova Constituição seja o grande marco de unidade, de estabilidade e de futuro do país”.
Ainda são poucas as definições que já foram tomadas sobre como será a assembleia constituinte. Sabemos que, em abril de 2021, os chilenos voltarão às urnas para escolher os 155 cidadãos que serão parte do processo. Sabemos que ela estará formada de forma paritária por homens e mulheres (algo inédito no país). Mas ainda falta uma série de decisões, como se poderão participar do processo pessoas que não estejam associadas a partidos políticos e se o órgão terá assentos reservados para os povos originários.
A assembleia contará com até 12 meses para redigir uma nova Carta Magna, cujas normas deverão ser aprovadas por dois terços dos integrantes. Esta será submetida a outro plebiscito, cuja participação será obrigatória.
Esse ponto é o que desperta mais dúvidas na sociedade. É que o plebiscito do domingo passado foi de caráter voluntário, e acudiram às urnas um total de 7,5 milhões de chilenos dos mais de 14 milhões habilitados para votar. Apesar de ter sido a participação mais alta da sociedade desde 2012, quanto o sufrágio começou a ser optativo no país, a votação do dia 25 de outubro não deixa claro qual será o resultado final se as 6,5 milhões de pessoas que não participaram no domingo votarem em 2022.
Mas, como dizem por aqui, isso é uma decisão para o Chile do futuro. O Chile do presente quer comemorar. E tem motivos de sobra para isso.
O estádio nacional, um dos maiores centros de tortura durante a ditadura, neste domingo foi um dos lugares que recebeu mais votantes – Bárbara Carvajal (@barvajal)
Era uma demanda colocada por alguns setores da sociedade chilena há anos, mas foram os protestos de 2019 os que voltaram exigir a derrubada da Constituição de 1981, imposta pela ditadura militar de Augusto Pinochet. Agora, no domingo 25 de outubro, mais de 14 milhões de chilenos acudirão às urnas em um plebiscito histórico que decidirá se o país “aceita” (aprueba) ou “rejeita” (rechaza) uma nova Carta Magna. A votação foi pensada como um caminho político para aplacar a crise social que o Chile enfrenta.
Os ânimos estão à flor da pele. Nos muros, nas redes sociais, na mídia praticamente não se fala de outra coisa. Não é para menos, já que o plebiscito, inicialmente marcado para o dia 26 de abril, foi atrasado pelo governo devido à pandemia. Além disso, acontecerá somente uma semana depois do primeiro aniversário do chamado “estallido social”, iniciado em 18 de outubro de 2019, quando milhões de pessoas saíram às ruas para exigir um país mais igualitário. Mas a sociedade chilena -como tantas outras na América Latina e no mundo- está profundamente polarizada e, apesar de as pesquisas dizerem que a maioria votará pelo “aceita”, nada está definido.
Foto: Pablo Gramsch / Instagram: @active_grounds
Por um lado, o “apruebo” reúne intenções diversas, que vão desde exigir uma mudança no modelo neoliberal chileno até entregar mais direitos às mulheres, aos índios e às diversidades sexuais.
Alejandra Saez, uma trabalhadora independente, me disse que vai aprovar porque “se necessita uma mudança imediata, apesar de que o resultado chegue com o tempo, tomar a decisão de transformar o sistema já é um grande avanço”. “Quero que as novas regras validem o bem-estar das pessoas e não os cofres dos outros. Que não nos sintamos atacados pelo sistema”, afirmou.
Já o bioquímico Francisco Pereira me explicou que votará “apruebo” porque considera que é necessária uma “mudança drástica na atual Constituição, já que apesar de que outorga direito a serviços básicos, em nenhum momento garante o acesso a esses serviços, deixando muitos recursos principalmente nas mãos do mundo privado. Além disso, foi escrita para um contexto de desenvolvimento de país determinado muito diferente do atual, e é bastante rígida, o que dificulta que ela seja adaptada às atuais necessidades do Chile”.
Nas campanhas eleitorais, também é possível ver que muitos dos que pedem uma nova Constituição querem reformar as instituições encarregadas da segurança pública, já que, em 2019,pelo menos 30 pessoas morreram, milhares ficaram feridas e o Chile foi cenário de graves violações aos direitos humanos no marco dos protestos sociais, segundo Human Rights Watch, a ONU, entre outros. De acordo com o Instituto Nacional de Direitos Humanos, 460 pessoas sofreram lesões oculares durante as manifestações devido ao uso excessivo da força policial. Delas, pelo menos duas ficaram completamente cegas.
Por outro lado, Natalia C. (que pediu não ser identificada) aposta pelo “rechazo” porque considera que “não há necessidade de escrever uma nova Constituição inteira para realizar as reformas que o país precisa”. Nas redes sociais, as pessoas que chamam a votar por essa alternativa também dizem temer que o Chile se transforme em um país “caótico” e/ou “esquerdista”.
Além disso, muitos sinalizam que votar “apruebo” seria dar um aval à destruição de patrimônio que ocorreu no marco das mobilizações sociais. É que o metrô de Santiago, várias igrejas, ruas e estátuas foram parcialmente destruídos e/ou incendiados desde outubro de 2019, mas não há informação detalhada disponível sobre quem foram os responsáveis de cada um desses atos.
Foto: Pablo Gramsch / Instagram: @active_grounds
Muitos ainda estão indecisos. O microempresário Javier Baltra comentou que achava melhor votar nulo porque “ambas as opções estão cheias de problemas. Aprovar pode ser sinônimo de um Estado maior, e eu acho isso problemático para a economia. E rejeitar é deixar tudo como está até agora e não sei se isso é uma boa ideia”.
Além de escolher entre as opções “apruebo” ou “rechazo” uma nova Constituição, os chilenos devem votar se desejam que a eventual Carta Magna seja escrita por uma Convenção Constitucional formada por 155 constituintes eleitos ou por uma Convenção Mista de 172 membros (metade legisladores e metade cidadãos eleitos).
A LEI ATUAL
Qualquer pessoa que não conheça a história do Chile provavelmente se surpreenderá ao saber que um país como este tenha ainda uma Constituição que foi escrita na época da ditadura militar. “Nossa, mas é um país tão desenvolvido”; “como assim?”; “sério?” foram alguns dos comentários que recebi de amigos brasileiros quando contei sobre o que está acontecendo agora.
A Constituição atual foi aprovada em um questionado plebiscito realizado no dia11 de setembro de 1980, em plena ditadura do Pinochet, quando milhões de chilenos viviam sob o medo da repressão, sem registros eleitorais e com os partidos políticos dissolvidos. O texto foi escrito pelo advogado constitucionalista Jaime Guzmán, um dos maiores ideólogos da direita chilena, e que foi assassinado por um comando de ultraesquerda em 1991.
Ele foi escolhido por uma comissão designada pela ditadura. Posteriormente, a redação contou com a revisão e o apoio do Conselho de Estado e a Junta Militar, composta pelos máximos chefes do Exército e o diretor da polícia, que exercia como “poder legislativo”. Guzmán criou uma série de regras muito difíceis de alterar para perpetuar seu modelo econômico e político.
Como ele mesmo disse quando escrevia a Constituição, sua ideia era que, se os adversários chegassem a governar, eles se veriam “obrigados a seguir uma ação não tão distinta ao que alguém como nós gostaria (…) que a margem seja suficientemente reduzida para fazer extremamente difícil o contrário”.
Foto: Pablo Gramsch / Instagram: @active_grounds
Para realizar reformas à Carta Magna, Guzmán detalhou que é necessário alcançar um quórum de dois terços ou três quintos, segundo o caso, algo que, na prática, tem sido praticamente impossível de conseguir, porque nem o oficialismo nem a oposição conta com essa quantidade de votos.
Essa Constituição também instaurou um modelo econômico, político e social neoliberal, que se adentrou na educação e na saúde privada e um sistema de aposentadoria conhecido como AFP baseado na poupança individual e que no ano passado entregou aposentadorias pelo valor de 110.000 pesos chilenos (uns US$ 140). Esse sistema, hoje sumamente questionado pela população chilena, foi elogiado pelo Ministro de Economia do Brasil, Paulo Guedes, em várias ocasiões.
Se bem que o texto legal não estabeleça especificamente que a saúde, a educação ou o sistema de aposentadoria devam ser privados, na prática, sim, impõe princípios que limitam a ação do Estado e promove a atividade privada nesses setores. Por exemplo: não existe no Chile nenhuma universidade que seja gratuita.
Segundo analistas, a Constituição atual também é hierárquica e desconecta a cidadania do poder político, porque não inclui muitos mecanismos de participação.
Ao longo da sua história, sofreu duas modificações: a primeira, em 1989, ano do fim da ditadura, quando foi derrogado um artigo que declarava “ilícitos” a grupos que realizassem “violência ou uma concepção da sociedade do Estado ou da ordem jurídica de caráter totalitário ou fundada na luta de classes”. Outra, em 2005, quando depois de um grande acordo político o presidente socialista Ricardo Lagos conseguiu alterar outros aspectos, como que os comandantes em chefe das Forças Armadas passassem a estar subordinados ao poder civil, e a eliminação de senadores designados e vitalícios. Isto permitiu que em 2006 (há 14 anos!) o Senado fosse totalmente conformado por membros de eleição popular.
Agora, se a opção “apruebo” ganhar o plebiscito, o texto não só será modificado: a sociedade poderá dar adeus à chamada “Constituição do Pinochet”. Sem dúvidas, uma decisão histórica.
DECLARAÇÃO DE IMPRENSA DO EX-PRESIDENTE EVO MORALES Buenos Aires, 18 de outubro de 2020
Desde a cidade de Buenos Aires, neste dia histórico, domingo, acompanho nosso povo em seu compromisso com a pátria, com nossa democracia e com o futuro de nossa amada Bolívia, de exercer seu direito ao voto em meio aos acontecimentos em nosso País.
Saúdo o espírito democrático e pacífico com que se desenvolve a votação.
Diante de tantos rumores sobre o que vou fazer, venho declarar que a prioridade é exclusivamente a recuperação da democracia.
Quero pedir a vocês que não caiam em nenhum tipo de provocação. A grande lição que nunca devemos esquecer é que violência só gera violência e que com ela todos perdemos.
Por este motivo, conclamo as Forças Armadas e a Polícia a cumprirem fielmente o seu importante papel constitucional.
Diante da decisão do Tribunal Supremo Eleitoral de suspender o sistema DIREPRE (Divulgação de Resultados Preliminares) para ir diretamente para a apuração oficial, informo que, felizmente, o MAS possui seu próprio sistema de controle eleitoral e que nossos delegados em cada mesa irão monitorar e registrar cada ato eleitoral.
O povo também nos acompanhará nesta tarefa de compromisso com a democracia, como o fez tantas vezes, situação pela qual somos gratos.
É muito importante que todas e todos os bolivianos e partidos políticos esperemos com calma para que cada um dos votos, tanto das cidades como das zonas rurais, seja levado em conta e que o resultado das eleições seja respeitado por todos.
Neste domingo, no campo, nas cidades, no altiplano, nos vales, nas planícies, na Amazônia e no Chaco; em cada canto de nossa amada Bolívia e de diversos países estrangeiros, cada família e cada pessoa participará com alegria e tranquilidade na recuperação da democracia.
É no futuro que todos os bolivianos, inclusive eu, nos dedicaremos à tarefa principal de consolidar a democracia, a paz e a reconstrução econômica na Bolívia. Viva a Bolívia! Evo Morales