Hoje, dia 5, às 19h, será realizado um Ato na Câmara Municipal de São Paulo em repúdio a “manifestações de intolerância e intromissão fundamentalista na votação do Plano Municipal de Educação de São Paulo(PME-SP)”. É uma iniciativa dos movimentos sociais e da sociedade civil, preocupados com o avanço de setores conservadores que tentam minar as conquistas de direitos, atacando frontalmente a democracia e o Estado laico brasileiro. Participam da ação 110 entidades científicas e de direitos humanos.
Numa ação orquestrada pelos setores mais conservadores e reacionários da Igreja Católica e de várias denominações evangélicas, vereadores de todos os municípios do Brasil estão sendo pressionados pelos párocos locais, para retirar dos textos finais dos Projetos Municipais de Educação, os termos “gênero”, “orientação sexual” e “diversidade”. Em São Paulo, vereadores já retiraram todas as referências a questões de gênero e sexualidade do texto final, que volta para o plenário no dia 11 de agosto em nova votação.
Ontem, véspera do Ato, o vereador do PSDB Eduardo Tuma, representante da bancada da bala, realizou um seminário sobre “ideologia de Gênero”, uma expressão usada pela igreja católica para desqualificar e atacar a luta pela emancipação das mulheres e pelos direitos civis de populações socialmente vulneráveis, como as pessoas LGBTs. O seminário foi realizado em parceria com a Renovação Carismática, uma denominação católica que prega que “o pecado é ação contrária à vontade de Deus e é a fonte de todos os males existentes na sociedade”. Na entrada do seminário foi distribuída uma cartilha com um conteúdo preparado para incutir terror nas pessoas. Está escrito lá —um exemplo de mentira, canalhice e covardia :
“O que acontecerá caso aprovem a ideologia de gênero nas escolas? Todas as nossas crianças deverão aprender que não são meninos ou meninas, e que precisam inventar um gênero para si mesmas. Para isso, receberão materiais didáticos destinados a deformar sua identidade. E isso seria obrigatório por lei.”
A expressão “Ideologia de Gênero” foi falada pela primeira vez pelo papa Bento 16, num discurso proferido à Cúria Romana em 21 de dezembro de 2012.
“…sob o vocábulo «gender — gênero», é apresentado como nova filosofia da sexualidade, a “Ideologia de Gênero”. De acordo com tal filosofia, o sexo já não é um dado originário da natureza que o homem deve aceitar e preencher pessoalmente de significado, mas uma função social que cada qual decide autonomamente (…). Salta aos olhos a profunda falsidade desta teoria e da revolução antropológica que lhe está subjacente. (…) Se, porém, não há a dualidade de homem e mulher como um dado da criação, então deixa de existir também a família como realidade pré-estabelecida pela criação.”
O mito essencialista de que a natureza não só produz corpos como também comportamentos, e que homens e mulheres já nasceriam com as características que hoje conhecemos, foi derrubado pela antropóloga Margareth Mead em 1937, quando ela publicou o livro: “Sexo e temperamento”, um relato de suas pesquisas na Nova Guiné. Ao pesquisar três tribos de nativos, ela encontrou três modelos distintos de “homem” e “mulher”, completamente diferente dos modelos que nós conhecemos. Esse livro é tido como o estopim do movimento feminista internacional.
Quando o papa atual, em sua recente viagem pela América Latina condenou as “ideologias” se referia também à “ideologia de gênero”que ele condena:
“A ideologia de gênero é um erro da mente humana que provoca muita confusão, onde a família está sendo atacada.” disse Francisco num discurso dirigido aos jovens numa viagem a Nápoles, Itália. Ele denunciou ainda a existência de uma estratégia para impor a “ideologia de gênero” em países em desenvolvimento por meio de formas “chantagistas” de oferta de ajuda, o que Francisco denominou de “colonização ideológica”.
Segundo Francisco, existem atualmente tipos semelhantes a “Herodes” modernos que “destroem, que tramam projetos de morte, que desfiguram a face do homem e da mulher, destruindo a criação.”
Um vídeo no youtube (https://youtu.be/rPQfcGKR0FI) contém a explicação do que seria a tal “ideologia de gênero”, na conceituação da extrema-direita neofascista teocrática que quer golpear o Estado laico e a democracia brasileira.
Transcrevo aqui uma parte esclarecedora :
“A ideologia de gênero nasce apoiada na filosofia marxista de luta de classes onde Frederic Engels diz: a primeira opressão de uma classe surge “pelo antagonismo homem mulher, sexo feminino pelo masculino.” Ela está apoiada no “movimento feminista radical dos anos 60 e 70, que apoiado na filosofia marxista (…) e nas ideias da filósofa francesa Simone de Beauvoir que disse “ninguém nasce mulher, mas sim torna-se mulher”.
Um dos alvos principais desse factóide criado pela Igreja Católica é a emancipação das mulheres, visando à perpetuação de posições misóginas e machistas dentro das instituições de ensino. Não falar sobre sexualidade nas escolas é negar informações importantes, como os cuidados que se deve ter com relação à contracepção (não se pode esquecer que a Igreja até hoje mantém-se contrária ao uso de contraceptivos e de preservativos, além de condenar o aborto), e para a prevenção das doenças sexualmente transmitidas.
O catolicismo não condena diretamente a homossexualidade, mas considera que são pessoas “intrinsecamente desordenadas” que só podem ser incluídas nas comunidades cristãs se mantiverem o celibato — a prática da “sodomia” é considerada pecado. Retirar a expressão “orientação sexual” dos Planos Municipais de Educação é impedir que dispositivos de prevenção à homofobia sejam implantados nas instituições de ensino, e expor gays, lésbicas e bissexuais a violências cotidianas. Por tabela, as famílias homoafetivas são desqualificadas e combatidas, em nome de um modelo heteronormativo, considerado “natural”.
Mas os fundamentalistas religiosos que atacam aquilo que chamam de “ideologia de gênero”, têm descarregado toda a sua artilharia sobre a comunidade de travestis, mulheres transexuais e homens trans, que tem se fortalecido em sua luta por direitos civis nos últimos tempos. Foram vários os ataques transfóbicos recentes das bancadas católica e evangélica, unidas à bancada da bala, com projetos tentando anular direitos já adquiridos. Cito, entre os principais, a decisão do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e promoções dos direitos de lésbicas, gays, travestis e transexuais (CNCD/LGB), que garantiu o nome social em todas as instituições educacionais públicas e privadas, o uso de uniformes condizentes com a expressão de gênero autodeclarada, e do banheiro mais adequado. Todos esses direitos serão comprometidos se questões relativas a gênero não puderem fazer parte dos currículos escolares. A maior parte de travestis e uma parte considerável de mulheres transexuais e homens trans não têm nem o ensino fundamental completo, porque acabam abandonando a escola, atacados que são por sua expressão de gênero não-reconhecida.
Sem informação, a homo-lesbo-transfobia vai continuar fazendo suas vítimas dentro e fora das salas de aula.
Em depoimento, o ativista Adriano Diogo, um dos apoiadores do Ato, declarou que será “um erro gravíssimo, o dia em que, na escola, você não puder aceitar as crianças do jeito que elas são e não dar a elas o direito à liberdade de expressão e ao devido tratamento; você está criando uma forma de exclusão enorme pra uma faixa da população. É uma coisa perigosíssima porque qualquer pessoa dentro da escola e até pai de aluno poderá expulsar um aluno que destoe da heteronormatividade. O que está atrás disso tudo na realidade é uma enorme perseguição a qualquer manifestação LGBT. É uma coisa medieval, terrível de alguns setores religiosos que não aceitam que o mundo tenha essas características. Não só não aceitam como querem punir quem aceita. Daqui a pouco a Câmara vai votar a revogação da teoria de evolução de Darwin, aprovar o criacionismo (que defende o mito bíblico da origem da humanidade em Adão e Eva), a revogação da Lei internacional dos direitos humanos. E sabe-se lá o que eles podem inventar de pior…”