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Quando a ignorância irá acabar?

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Eu desejo aplaudir cada um de vocês sentado aqui esta noite. É uma experiência maravilhosa e profunda ver a fila aqui em cima reunidos aqui, pois somos a prova do poder da visão.

A ignorância acabará quando cada um de nós começa a procurar e confiar no conhecimento profundo dentro de nós, quando ousamos entrar nesse caos que existe antes de entender e voltar com novas ferramentas de ação e de mudança. Porque é desde dentro desse conhecimento profundo que nossas visões são alimentadas e é nossa visão que estabelece as bases para nossas ações e para o nosso futuro.

Esta conferência é uma afirmação do poder da visão. É um triunfo da visão dizer as palavras, até mesmo, Conferência Nacional de Lésbicas e Gays do Terceiro Mundo. Trinta anos atrás, isso só foi possível em nossos sonhos sobre o que um dia poderia acontecer. E, no entanto, como sabemos, sempre fomos em todos os lugares, não é? O poder da visão nos nutre, encoraja-nos a crescer e a mudar e a trabalhar para um futuro que ainda não existe.

Audre Lorde: “Mulheres são poderosas e perigosas”

Então eu estou aqui enquanto uma poeta guerreira feminista lésbica negra, de quarenta e seis anos, vem fazer o meu trabalho, já que cada um vem fazer o dele e o dela — tarefas de alegria, de luta, de comunidade e o trabalho de redefinição de nosso poder conjunto e objetivos, para que nossos jovens não precisem sofrer no isolamento que tantos de nós conhecemos. E enquanto estamos aqui, peço que cada um de vocês se lembre dos fantasmas daqueles que vieram antes de nós; que carregamos dentro de nós mesmos — a lembrança dessas lésbicas e gays dentro de nossas comunidades, cujo poder e conhecimento nos foram roubados, aqueles que nunca estarão conosco e aqueles que não estão aqui agora. Algumas de nossas irmãs e irmãos não estão aqui porque não sobreviveram aos nossos holocaustos, nem vivem para ver o dia em que finalmente houve uma Conferência Nacional de Lésbicas e Gays do Terceiro Mundo.

Alguns estão ausentes porque não podem estar aqui por causa de restrições externas e para nossas irmãs e irmãos na prisão, em instituições mentais, sob controle de desvantagens e doenças incapacitantes, peço sua atenção e sua preocupação, que é outra palavra para o amor.

Mas outros não estão aqui porque viveram uma vida tão cheia de medo e isolamento que eles não são mais capazes de alcançarem essa visão. Eles perderam sua visão, perderam a esperança. E para todos nós aqui esta noite, como todos sabemos, há muitas lésbicas e gays presos pelo medo em silêncio e invisibilidade e existem em um vale de terror fraco que usa vestígios de conformidade. E para eles, também, peço sua compreensão. Pois, como também sabemos, a conformidade é muito sedutora, pois é destrutiva e também pode ser uma prisão terrível e dolorosa.

Então, enquanto participamos desta noite, deixe cair uma pequena lágrima, chame-a de libação, que é um antigo costume africano, para todas as nossas irmãs e irmãos que não sobreviveram. Pois é dentro dos contextos do nosso passado, bem como do nosso presente e do nosso futuro, que devemos redefinir a comunidade.

Na afirmação da nossa união e do poder potencial de nossos números, lembre-se também de quanto trabalho ainda há para ser feito em nossas comunidades. No presente, a visão deve apontar o caminho para a ação em cada nível de nossas existências variadas: a maneira como votamos, a forma como comemos, a maneira como nos relacionamos, a maneira como criamos nossos filhos, a forma como trabalhamos para a mudança. Este fim de semana, estamos aqui não só para compartilhar experiências e conexões, não só para discutir os muitos aspectos da liberdade para todos as pessoas homossexuais. Nós também estamos aqui para examinar nossos papeis como forças poderosas dentro de nossas comunidades. Pois nenhum de nós será livre até que todos nós estejamos livres e até que todos os membros de nossas comunidades sejam livres. Então, estamos aqui para ajudar a moldar um mundo onde todas as pessoas possam florescer, além do sexismo, além do racismo, além do preconceito de idade, além do classismo e além da homofobia. Para fazer isso, devemos nos ver no contexto de uma civilização que tenha notório desrespeito e aversão por qualquer valor humano, por qualquer criatividade humana ou diferença humana genuína. E é sobre a nossa capacidade de olhar honestamente sobre as nossas diferenças, para vê-las como criativas e não divisivas, que o nosso futuro sucesso pode estar.

Nós estamos aqui como uma Conferência de Lésbicas e Gays do Terceiro Mundo. Isso nos diz o que nos reúne. Existe uma maravilhosa diversidade de grupos dentro desta conferência e uma maravilhosa diversidade entre nós dentro desses grupos. Essa diversidade pode ser uma força geradora, uma fonte de energia que alimenta nossas visões de ação para o futuro. Não devemos deixar que a diversidade seja usada para nos separar um do outro, nem de nossas comunidades. Esse é o erro que eles fizeram sobre nós. Eu não quero que façamos isso só sobre nós.

Neste país, historicamente, todos os povos oprimidos foram ensinados a temer e desprezar qualquer diferença entre nós mesmos, uma vez que a diferença tem sido usada contra nós tão cruelmente. E todos sabemos o quanto particularmente dolorosa a homofobia em nossas comunidades pode ser, pois também compartilhamos uma luta com nossas irmãs e irmãos homofóbicos.

Portanto, nossos movimentos para a mudança devem ser iluminados por esse conhecimento, devem implementar as lições que aprendemos nas comunidades das quais fazemos parte. E nunca devemos esquecer essas lições: que não podemos separar nossas opressões, nem ainda isso as fazem iguais. Que nenhum de nós é livre até que todos estejamos livres; e que qualquer movimento para a nossa dignidade e liberdade é também um movimento para as irmãs e irmãos de nossas comunidades, quer tenham ou não a visão de vê-la. E entre nós, a diferença não deve ser usada para separar-nos, mas para gerar energia para a mudança social, ao mesmo tempo em que preservamos nossa individualidade. E, embora tenhamos sido programados para nos respeitar com suspeita e com medo (a antiga rotina de divisão e conquista), podemos ultrapassar esse medo aprendendo a respeitar nossas visões do futuro mais do que respeitamos nossos terrores do passado. E isso não pode ser feito sem um esforço pessoal extenuante e, as vezes, dolorosas escutas da mudança.

Não se engane. Não só nossas irmãs e irmãos heterossexuais, mas nós também fomos ensinados a reagir a qualquer diferença com instinto assassino: de destruir. Eu chamo isso de psicologia da veia jugular: “Eu não gosto da maneira como você age, então eu vou te eliminar imediatamente.” Bem, isso não vai funcionar para nós aqui. Nós vamos aprender como tornar nossas diferenças em poder e combustível para visão e mudança.

Temos que nos fazer algumas perguntas difíceis aqui neste fim de semana. Por exemplo, o que o apoio real significa em um ambiente consistentemente hostil? O que realmente uma cultura genuinamente não-sexista, não-racista requere e implica? O que a responsabilidade de comunidade significa? Isso significa apenas um aperto de mão falso, a última moda em roupas de cruzeiro, o direito apenas de segurar a mão na rua? Ou significa construir redes genuínas de apoio de uns aos outros e a nossas comunidades, de modo que, sempre que for, quando estivermos funcionando dentro desse sistema que canibaliza nossos amores e nossas vidas, sempre que atuemos dentro desse sistema, trabalhamos para trazer mais humanidade e mais luz um para o outro e para aqueles que, como nós, sentiram o frio afiado da rejeição. Nesta sala, há uma quantidade significativa de pessoas — poder para a mudança social e deve se tornar um poder consciente e útil. Esse é o significado do suporte e da comunidade.

Enquanto negra e lésbica, vivi sem esse apoio durante a maior parte da minha vida e sei o que custou de mim e o que custou a muitos de vocês. E para mim, era apenas a consciência, a visão, de uma comunidade em algum lugar, algum dia — era apenas minha visão da existência e da possibilidade do que é, de fato, aqui esta noite, que ajudou a me manter sã. E às vezes nem mesmo isso. Agora, temos a chance de fazer esse apoio real um ao outro.

Eu penso que estamos todos aqui porque estamos buscando um novo tipo de poder, uma força para a mudança além das formas antigas que não nos serviram. Estamos aqui porque cada um de nós acredita em um futuro para nós mesmos e para aqueles que nos seguem. Estamos redefinindo nosso poder por uma razão e essa razão é um futuro e esse futuro reside em nossos filhos e nossos jovens. Estou falando aqui não só sobre as crianças que podemos ter cuidado e gerado, mas sobre todos os nossos filhos, porque eles são a nossa responsabilidade conjunta e nossa esperança conjunta. Eles têm o direito de crescer, livres das doenças do racismo, do sexismo, do classismo, da homofobia e do terror de qualquer diferença. Essas crianças levarão o que fazemos e a seguiremos por suas visões e suas visões serão diferentes, por sua vez, da nossa. Mas eles precisam de nós como modelos, para saber que eles não estão sozinhos ao ousar se definir fora das estruturas aprovadas. Eles precisam conhecer nossos triunfos e nossos erros.

Então, neste fim de semana, peço que cada um de nós se comprometa com essas crianças dentro de nossas comunidades, para um futuro para elas que estará livre de opressão e abuso, bem como da fome. Pergunto que, no nosso planejamento e discussões, incluímos as crianças em nosso futuro e trazemos nossas ideias e conhecimento para que não sejam tiranizados e marginalizados como nós. Devemos nos envolver ativamente nas formas em que os filhos de nossas comunidades estão sendo socializados para aceitar as muitas formas de sua própria morte, comendo o veneno, lendo o veneno, aprendendo o veneno. Por exemplo, onde nossas crianças aprendem as lições de racismo, sexismo, classismo, homofobia e auto ódio? O que nossas escolas estão ensinando a nossas crianças?

O que nós ousamos sonhar hoje podemos trabalhar para tornar realidade amanhã. As visões apontam o caminho para tornar possível o real. Há trinta anos, a maioria de vocês sentados nessa sala não poderiam tomar sorvete em uma farmácia em Washington, DC, porque você não era branco. A ideia desta conferência foi um sonho impossível. Agora o futuro é nosso, com visão e trabalho. E esse trabalho não será fácil, pois aqueles que temem nossas visões tentarão mantê-los silenciosos e invisíveis. Mas a ignorância acabará, quando cada um de nós estiver preparado para nos colocar na linha para acabar com isso, dentro de nós mesmos e dentro de nossas comunidades. Isso é amor real, isso é poder real.

Nós somos o último bastião da humanidade em um mundo cada vez mais despersonalizado e anti-humano. A busca pela aceitação dentro desse mundo nunca deve nos cegar a necessidade de mudanças genuínas e de longo alcance. Devemos sempre nos perguntar, que tipo de mundo realmente queremos fazer parte?

Enquanto lésbicas e gays, somos as pessoas mais desprezadas, as mais oprimidas e as mais cuspidas em nossas comunidades. E nós sobrevivemos. Essa sobrevivência é um testemunho da nossa força. Sobrevivemos e nos reunimos agora para usar essa força para implementar um futuro, esperançosamente, um futuro que deve estar livre dos erros de nossos opressores, bem como dos nossos. O que estamos fazendo aqui neste fim de semana pode ajudar a moldar nossos amanhãs e um mundo.

Nós iremos mudar isso completamente.

 


When the ignorance end? Keynote speech at the National Third World Gay and Lesbian Conference, October 13, 1979 207. In: LORDE, Audre. I am your sister essays and speeches. New York: The Crossing Press Feminist Series, 1984. p. 207–211.

Traduzido por Carol Correia, em homenagem ao 29 de Agosto, Dia Nacional da Visibilidade Lésbica

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Perifericu no centro do Cinema Brasileiro

Perifericu, um dos mais relevantes curta-metragem dos últimos anos está disponível via streaming dentro da programação online da 8ª Mostra Tiradentes | SP. Legenda da foto de capa: Diária feita na Casa 1, casa de acolhimento de LGBTQIA+ em SP | Divulgação/Perifericú

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Desde o dia 1 de outubro iniciou-se em parceria com o SESC SP, a 8ª Mostra Tiradentes | SP, desdobramento da 23ª edição mineira do evento que ocorreu em janeiro de 2020. Na programação paulista, a mostra exibe entre outros filmes, os vencedores da edição mineira, como o curta-metragem “Perifericu”, um dos mais celebrados filmes do ano.

Por André Okuma * André Okuma é mestre em História da Arte pela UNIFESP, faz filmes independentes, é arte-educador e mora em Guarulhos-SP

A Mostra Tiradentes é um tradicional evento do calendário de festivais de cinema no Brasil, conhecido por uma curadoria atenta aos vislumbres e caminhos do pensamento e da produção cinematográfica no Brasil, tem apresentado uma diversidade de olhares e narrativas que extrapolam o centro expandido paulista e seus correlatos cariocas.

Com o tema “Imaginação como Potência”, a curadoria tenta elevar os ideais da mostra aos limites das possibilidades estético-políticas em diálogo com o nosso tempo, diga-se de passagem, tempo este de ascensão neofascista, censura, negacionismo, desmonte de políticas culturais e destruição da Cinemateca Brasileira:

A Imaginação como Potência é a temática que norteia esta edição do evento e propõe novas maneiras de ver, produzir e se relacionar com as imagens. Pretende gerar reflexão e ser propositiva diante de um cenário incerto, faz um convite para olhar adiante, desfrutar o cinema como arte e, em sua criação, vislumbrar os caminhos possíveis para a construção de novos rumos” (trecho do texto de apresentação do Catálogo da Mostra)

Diante desta perspectiva, um dos filmes premiados desta edição, o curta-metragem “Perifericu” é de certa forma a síntese disso. Premiado também como melhor curta-metragem no 27º Festival Mix Brasil e no 31º Festival Internacional de Curtas-metragens de São Paulo, o filme ficcional conta a história de Denise e Luz duas amigas pretas, LGBTQIA+ e periféricas que vivem no extremo sul de São Paulo.

Uma das qualidades aparentes à primeira vista no filme é seu desvio ante aos estigmas amplamente difundidos ao longo da história do cinema brasileiro, como as narrativas dramáticas das diversas violências sofridas, seja da desigualdade social, seja pelo preconceito sobre seus corpos, o filme, apesar de não ignorar estas questões, não é um filme-lamento, muito menos uma romantização disso, ele é uma insurgência estética e política profunda deste cinema já esgotado.   

Ancorado na afetividade, o que emerge das imagens em movimento é de um universo profundamente real e honesto, sem divagações estéticas, porém intensamente poético e consequentemente político. Corpos pretos, LGBTQIA+ e periféricos se impõem, desafiando o mundo ao mesmo tempo que o abraçam. Numa das cenas mais emblemáticas do filme, a personagem Luz (Vita Pereira, que também é uma das diretoras), dubla uma música gospel, no melhor estilo “I Will Survive” em Priscilla, a Rainha do Deserto,  o corpo trans cantando um louvor gospel na frente de sua mãe religiosa enquanto ela trabalha embalando pedaços de bolo pra vender, seguida de um plano detalhe de uma imagem de Nossa Senhora ao lado de um Barbie descabelada em cima da geladeira, é um desbunde!

O filme, ainda que seja “apenas” um curta-metragem, dá conta de imprimir uma certa potência estética do real em suas minúcias, mostrando cenas e situações tão usuais para quem é da quebrada, que soam mais realistas que muito documentário já feito, desde a arquitetura das casas e ruas, nos ruídos das discussões familiares, da presença do jornalismo sensacionalista policialesco nas salas de casa, do rap e das batalhas de mcs, e das influencia das igrejas nos moradores destes territórios. As cenas nos transportes públicos são um exemplo dessa impressão irremediavelmente real, quem mora longe do centro se identifica visceralmente, a diversidade dos corpos LGBTQIA+ se misturam aos amontoados de corpos trabalhadores comuns, enquanto outros trabalhadores informais preenchem os silêncios destes longos trajetos que ocupam grande parte da vida do trabalhador. A imagem da vida e da arte se fundem na espera do deslocamento.

Outra caraterística relevante deste filme é o seu modus de produção, dirigido de maneira coletiva por Nay Mendl, Rosa Caldeira, Stheffany Fernanda e Vita Pereira, o curta conta ainda com uma equipe e elenco de mulheres, LGBTQIA+, pretos e periféricos, subvertendo todos os paradigmas da estrutura organizacional do cinema brasileiro feito até recentemente, no qual, o diretor, em geral um homem branco cis, hétero normativo e de classe média é o autor, e o resto da equipe, em sua maioria brancos, seus subordinados.

O peso político do filme também se dá na escolha das locações, filmado quase todo no extremo-sul de São Paulo, território onde vive a maior parte das realizadoras, trazendo para o filme imagens profundamente carregadas de significado histórico e afetivo para a produção do filme. Outra locação importante é a da cena inicial do filme, gravado na Casa 1 importante espaço simbólico para a comunidade LGBTQIA+, pois é uma casa de acolhimento de LGBTQIA+ no centro da cidade que atende pessoas expulsas de casa e em estado de alta vulnerabilidade.

O filme abre e fecha com as personagens olhando diretamente para a câmera encarando o público, o filme se posiciona sem hesitar e reivindica a partir das imagens em movimento e sons o controle de suas próprias narrativas, aqui, e como potência imaginativa para vislumbrar possíveis caminhos para o cinema no Brasil, inclusive nos seus métodos e procedimentos de produção, “Perifericu” reconfigura novas e genuínas representações antes invisibilizadas e marginalizadas, e a insere no centro do nosso melhor cinema feito nos dias atuais.

Sobre o filme:

Perifericu (2019)

Sinopse: Denise e Luz cresceram no meio de canções de rap, louvores de igreja e passos de vogue. Da ponte para cá, é preciso aprender que o primeiro princípio para poder acessar a cidade é estar viva.

Este filme faz parte da Mostra Foco da 8ª Mostra Tiradentes | SP.

Brasil (SP) | 20 min. | Ficção | 14 anos

Direção: Nay Mendl, Rosa Caldeira, Stheffany Fernanda e Vita Pereira

Roteiro: Winnie Carolina e Direção

Fotografia: Nay Mendl, Rosa Caldeira e Wellington Amorim

Produção Executiva: Nayana Ferreira e Wellington Amorim

Elenco: Ingrid Martins e Vita Pereira

O filme pode ser visto no link: https://sesc.digital/conteudo/cinema-e-video/54371/perifericu disponível até o dia 05/10/2020.

Mais informações sobre a mostra em http://mostratiradentessp.com.br/

*André Okuma é mestre em História da Arte pela UNIFESP, faz filmes independentes, é arte-educador e mora em Guarulhos-SP

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“É importante mostrar às pessoas trans que um dia é você quem pode estar aí” diz primeira apresentadora transgênero da Bolívia

Leonie Dorado, de 26 anos, conclama que as pessoas da comunidade trans do seu país ocupem os espaços “comuns” da sociedade

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Por Maycon Esquer

Aos 26 anos, Leonie Dorado acaba de entrar para a história da televisão em seu país como a primeira apresentadora de notícias transgênero da história televisiva da Bolívia. Mas a conquista pessoal também é histórica  na comunidade LGBTIA+ da Bolívia, onde ser trans e ao mesmo tempo ocupar espaços de trabalho, principalmente com tamanha visibilidade nacional, pode soar como uma realidade inalcançável. “É importante mostrar às pessoas trans que um dia é você quem pode estar aí”, afirma Leonie Dorado.

O acontecimento, histórico, foi fortemente comemorado pela comunidade LGBT do país latino-americano, assim como da América do Sul, e representa um passo importante para um horizonte de inclusão trabalhista da comunidade trans boliviana. “Foi uma felicidade muito grande, estar à frente de um noticiário é uma responsabilidade jornalística muito grande”, conta Leonie.

Não é a primeira vez que Leonie se torna a primeira mulher trans a ocupar espaços na sociedade boliviana. Antes de entrar para a história da televisão boliviana esse ano, em 2019, a ativista, que também é musicista, entrava para a história da música do seu país ao se apresentar no “Festival Internacional Festi Jazz”, evento que acontece todos os anos desde 1987.

“Concentrado na cidade de La Paz, o festival de jazz recebe gente do mundo todo, inclusive artistas do Brasil. Eu resolvi encarar esse desafio ano passado e consegui”, relata Leonie relembrando o esforço e a disciplina que teve. “Eu penso que foi tudo atitude. Levei quase seis meses para me preparar para esse festival e no final deu tudo certo”, declara orgulhosa.

Leonie Dorado nasceu em La Paz, capital administrativa da Bolívia. Estudou música clássica desde os seis anos de idade no Conservatório Nacional de Música, onde aos 18 anos também estudou licenciatura em Música. Aos 21 anos decidiu estudar Comunicação Social em Buenos Aires, Argentina. Em 2015, depois de concluir a graduação no exterior, Leonie decidiu regressar à Bolívia e iniciar sua transição de gênero. Ao mesmo tempo, começou a se dedicar a outras coisas.  

Apesar da formação, Leonie conta que é essa a primeira vez que exerce a profissão de jornalista e que sua entrada nos meios de comunicação surge exatamente como um projeto da Abya Yala Televisión, canal boliviano de alcance nacional operando desde 2012, que atualmente tem apostado na “construção e difusão dos direitos individuais e coletivos que fortalecem o respeito à diversidade e inclusão social”.

 Assim como qualquer apresentadora de noticiários do seu país, em Ahora Bolívia, programa em que ela é âncora na Abya Yala Televisión, Leonie trata de temas nacionais e internacionais desde a cidade de La Paz, a segunda cidade mais populosa do Estado Plurinacional da Bolívia. “Abya Yala está mostrando uma pessoa trans não mais de um ângulo físico, como se fossemos um experimento humano, mas sim nos mostrando em um espaço social comum, como é o espaço na televisão”, explica Leonie.

“Eu tive apenas um mês de preparação para estar à frente de um noticiário”, comenta Leonie ao relatar o desafio ancorar o “Ahora Bolívia”, em um projeto que surgiu em plena pandemia. “No começo, eu estava muito nervosa mas agora, que é o segundo mês que estou nos meios de comunicação, já percebo um grande avanço. As pessoas que me sintonizam hoje em dia podem ver esse crescimento que venho tendo no meu desenvolvimento jornalístico”, declara.

FOTO:  Arquivo Pessoal

Puro Ativismo

A jornalista conta que o que a motivou a fazer parte da iniciativa da Abya Yala Televisión foi, principalmente, ver a “situação lamentável” das pessoas trans em seu país.

“Mundialmente, as ONGs e outras organizações que zelam pelos direitos humanos da comunidade LGBTIA+ têm hoje em dia uma preocupação especial com transgêneros, porque são as pessoas que mais enfrentam discriminação dentro e fora da comunidade”, revela Leonie.  

A jovem tem rompido barreiras no seu país ao mostrar, com o cargo que ocupa em uma cadeia de televisão nacional, uma pessoa trans exercendo uma “profissão comum” em um “espaço comum”. “Mostrar uma pessoa trans exercendo uma profissão comum,  como uma jornalista, advogada, veterinária, ou engenheira, é muito importante”declara Leonie ao argumentar sobre o significado da sua conquista para a comunidade trans.

Coletivo LGBTIA+ na Bolívia

Em termos legais, nos últimos anos a Bolívia teve avanços quanto à garantia de direitos à comunidade LGBTIA+. O artigo 5º da Lei Contra o Racismo e Todas as Formas de Discriminação – Lei Nº 45 de 2010 – proíbe a discriminação por motivos de orientação sexual e de identidade de gênero e o artigo 281º do Código Penal do país – modificado pela Lei Nº 45 – tipifica como delito qualquer ato de discriminação baseado na orientação sexual e/ou identidade de gênero. A promulgação da Lei Nº 807, em 2016, também estabeleceu a criação do procedimento para a troca do nome próprio e permitiu a utilização de nome social à comunidade transexual e transgênera do país. Porém, o coletivo LGBTIA+, especialmente a comunidade trans, à qual Leonie é parte, segue tendo tropeços.

“A Bolívia é um país onde temos muitas leis aprovadas, como a Lei de Identidade de Gênero e agora há pouco também se aprovou uma lei que permite a pessoas do mesmo sexo casar-se legalmente em um matrimônio civil”, esclarece Leonie. “Mas como em qualquer outro país, no geral podemos falar de América Latina, a comunidade trans segue tropeçando, não consegue ter acesso a fontes trabalhistas, não pode formar uma família, não pode adotar”.

Trabalhar na pandemia

Com mais de 80 mil casos de coronavírus e mais de 3000 mortes, a Bolívia atualmente enfrenta um caos desencadeado não apenas pela pandemia mas também pela ebulição política que aconteceu junto com o final de 2019. Entre outubro e novembro do ano passado, os bolivianos foram espectadores de um turbulento processo que envolveu a deposição e fuga de Evo Morales Ayma – presidente eleito pelo partido “Movimento ao Socialismo” – para o México, e posteriormente para a Argentina, onde atualmente se encontra exilado, e a posse de Jeanine Añez – atual presidente interina do país andino do partido liberal-conservador Movimento Democrático Social .

O conflito ainda é lido de duas maneiras pela população boliviana cada vez mais polarizada. Parte dos bolivianos acredita na narrativa de que o caso se resume à fuga de um líder populista por ter fraudado as eleições. Para outra parte, no entanto, houve um golpe de estado movido por forças políticas das classes médias urbanas e da direita do país, que não conseguiu se eleger em nenhuma das últimas eleições presidenciais. 

Os efeitos da pandemia do novo coronavírus na Bolívia, então, se cruzam não apenas com a carência hospitalar mas também com o cenário dramático da política atual. “Eu penso que se tivesse feito isso em uma época que não tivéssemos que viver essa pandemia, de todas as formas teria sido complicado, mas agora é duas vezes mais complicado”, explica a apresentadora sobre como tem sido o seu trabalho. “Na Abya Yala temos protocolos de biossegurança muito rigidos. Quando apresento o jornal, meu companheiro está a quase dois metros de mim”.

Bastidores do noticiário | FOTO: Arquivo Pessoal

Manifesto à comunidade trans

Outra bandeira do ativismo de Leonie, além da garantia de direitos básicos à comunidade LGBTIA+, é a luta pela conscientização dos riscos de tratamentos invasivos na população trans durante o período de transição. A ativista intitula como “O Surgimento da Nova Ideologia Pós-Moderna” a corrente que defende que a comunidade trans “não desperdice anos de vida lutando contra seus próprios corpos”, não se submetendo a cirurgias plásticas invasivas ou ao uso indiscriminado de hormônios. 

“Existem problemas de trans-feminicídio, sim, claro que existem. As pessoas ainda matam outras simplesmente por serem trans”, afirma Leonie, que durante a transição não fez uso de hormônios e nem se submeteu a operações plásticas. “Mas o que eu quero esclarecer é que outra grande porcentagem de morte de pessoas trans são os tratamentos invasivos, e não estamos falando de deformações corporais, estamos falando de tumores cancerígenos, problemas graves”, insiste.

Enquanto ocupa o seu espaço no país latino-americano e tradicionalmente conservador, Leonie amplia a sua voz para abrir caminhos para que a comunidade trans do seu país também possa reivindicar o seu espaço na sociedade.

“Pelo simples fato de você ser um ser humano, você já tem direitos trabalhistas, independente do gênero”, diz Leonie. “A sociedade sempre escondeu as pessoas trans, não só nessa época. Mas as pessoas trans podem e merecem ocupar espaço na sociedade e por isso temos que ir abarcando esses espaços”.Leonie Dorado sentencia: “Não é fácil! As coisas não vão ser cor de rosa do dia para a noite. No nosso caso, sempre temos que nos esforçar duas vezes mais para que nossos frutos sejam reconhecidos, por isso é muito importante não desistir e seguir adiante”. Um  exemplo disso é a sua própria história, que neste momento renova as esperanças de inclusão social e representatividade da comunidade trans da Bolívia.

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Ativistas lançam cartilha com Projetos de Lei LGBTIA+ nos Estados

Grupo mapeou todos os projetos de lei apresentados nas assembleias legislativas entre 2018 e 2020

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Movidos pelo interesse em compreender a realidade das pautas LGBTIA+ no legislativo dos estados brasileiros, os jovens Marcos Salesse, Hugo Martins, Matheus Gonçalves e Adeilson Viana, desenvolveram a Cartilha “LGBTIA+ no Legislativo dos Estados”. O material foi publicado nesta terça-feira (28), e apresenta um panorama dos Projetos de Lei (PL), criados entre 2018-2020, que tramitam nas Assembleias Legislativas dos estados brasileiros, e também da Câmara Legislativa do Distrito Federal. A ação integra um trabalho feito pelo grupo para o programa Todxs Embaixadorxs (Todos Embaixadores), da startup social Todxs Brasil (Todos Brasil).

            Com o levantamento, o grupo conseguiu identificar uma baixíssima presença das pautas LGBTIA+ no legislativos de diversos estados. Algumas dessas unidade federativas não apresentaram nenhum PL que tratasse das demandas desta população, como foi o caso de Santa Catarina, Rondônia, Acre, Amapá, Alagoas e outros.

Capa da cartilha disponível em https://bi.tly/lgbtianolegislativo

            Disponibilizado gratuitamente na plataforma Issuu, os interessados podem não só conferir a cartilha digitalmente, como baixar a íntegra do material. Segundo um dos desenvolvedores do conteúdo, essa é mais uma das formas de munir os LGBTIA+ com uma ferramenta fundamental na luta pelos direitos dessa população.

“Com a cartilha a gente consegue visualizar um panorama geral da situação das nossas pautas no Brasil”, explica Marcos Salesse, estudante de jornalismo na UFMT. “É fundamental que a gente tenha materiais como esse, assim podemos entregar aos nossos uma ferramenta imprescindível na luta por direitos, que é a informação”.

            Para acessar a íntegra da cartilha, clique aqui.

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