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América Latina e Mundo

A prisão de Lula e a contrarreforma conservadora

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Por Luciana Gaffrée

O professor de História Edgardo Ortuño, primeiro deputado negro do Uruguai, ex-vice-ministro da Indústria, Energia e Mineração – ministério que inclui nada mais e nada menos que dois importantes pilares para entender qualquer contexto geopolítico latino-americano como Comunicação e Petróleo – trabalhou lado a lado com o ex-presidente Mujica e aqui expõe sua perspectiva sobre a grave situação que o Brasil atravessa hoje.

 

Qual é sua perspectiva sobre a situação atual do Brasil?

De grande preocupação, porque o Brasil vive uma deterioração de suas instituições democráticas, desde o processo de destituição da presidenta Dilma Rousseff, culminando com a prisão do ex-presidente Lula, o candidato com maior margem de aprovação popular atualmente.

É preciso esclarecer que, independentemente da orientação, seja de direita ou de esquerda, o que acontece no Brasil é muito preocupante a partir de uma perspectiva de defesa da democracia.

Nós, latino-americanos, não deveríamos nos esquecer da importância do Brasil na vigilância do funcionamento democrático em toda a região. O início do período de deterioração e posterior quebra constitucional na América Latina começou no Brasil em 1964. Por isso, nós, democratas da América Latina, estamos todos muito preocupados com o que está acontecendo no Brasil.

 

Porque você considera que o Brasil vive um período de deterioração das instituições democráticas?

No Brasil, o poder judiciário está influenciando e determinando processos políticos importantes, e o poder executivo sofre forte pressão das redes de comunicação mais importantes no país, das forças conservadoras e agora, também,a militar. Os militares do país se pronunciam politicamente, até mesmo com ameaças, gerando um contexto de pressão indevido, como, por exemplo, quando assistimos pronunciamentos de generais em comando de tropa antes mesmo do parecer do STF, como no caso do ex-presidente Lula.

 

Você acredita que a ausência de uma Lei de Regulamentação de Mídia no Brasil foi parte relevante nessa articulação?

A ausência de regulamentação no Brasil permitiu uma atuação decisiva das grandes redes e dos grandes meios no processo político,o que deixou os cidadãos reféns de sua perspectiva, em grande parte por que não ofereceram toda a informação em sua diversidade, buscando reforçar uma única narrativa do momento, com notícias enviesadas, sem pluralismo nem opiniões divergentes.

Implementar uma normativa para os meios não tem sido fácil, em toda a região latino-americana. Ainda que tenha sido proposta na agenda de todos os governos progressistas da última década, houve muita resistência e níveis díspares de aplicação, em toda a região.

Uruguai, Argentina e Brasil assumiram a meta de construir uma normativa para garantir a liberdade de pluralidade nos serviços de comunicação audiovisual, mas com conteúdos e resultados díspares. Na Argentina, com o governo Macri, a aprovação foi imediata, mas houve uma desarticulação dos principais aspectos que a “lei de regulamentação das mídias” continha. No Brasil, barrou-se esse processo, que nunca chegou a se concretizar.

No Uruguai, a Lei de Regulamentação da Mídia foi precedida por um processo de consulta social a todos os envolvidos, longo e profundo, incluindo os próprios donos dos meios de comunicação, jornalistas, organizações da sociedade civil e todos os partidos políticos, sem exceção, porque atravessou uma etapa de debate parlamentar, longa e aprofundada, num parlamento como o uruguaio, onde estão representados todos os partidos políticos. Houve também uma ampla consideração do Poder Judicial,que ratificou sua constitucionalidade, pelo que está em ótimas condições para sua aplicação plena, oque ainda não ocorreu.

 

Foi você quem promoveu essa luta, não é mesmo?

Fui um promotor convicto desta lei, entre outros, porque acreditamos que a regulamentação democrática dos meios garante tanto a liberdade editorial, de opinião, dos meios, livres da pressão do governo no poder, como o acesso dos cidadãos a informações plurais, diversas, que são questões absolutamente chave em uma democracia.

A agenda de regulamentação e modernização das telecomunicações e dos meios de comunicação de massa ainda está pendente na América Latina e, no caso da Argentina e do Brasil, com os últimos governos, vimos um retrocesso ou mesmo um aborto dessa regulamentação.

 

Você acredita que Lula é vitima de uma guerra jurídica?

No Brasil se dá um processo onde se tem atores judiciais que mais parecem inquisidores do que juízes imparciais e, ao mesmo tempo, campanhas sistemáticas e tendenciosas dos meios de comunicação de massa, portanto, estamos, sim, frente a um caso de guerra jurídica ou abuso da lei,com objetivos políticos e pré-julgamento midiático. Talvez o caso de Lula seja o mais dramático.

As mídias não difundem os argumentos ou contra-argumentos da defesa de Lula com a mesma intensidade e profundidade. É aí que se percebe a tomada de partido dos meios de comunicação, alinhados com um poder judicial que também toma partido e assume posições políticas e, inclusive, pronunciamentos políticos.

No Brasil nota-se claramente um desmedido protagonismo do poder judiciário sobre a vontade dos cidadãos e da Constituição, associado a um lobby conservador e a campanhas midiáticas muito significativas, onde se vê um uso abusivo da lei em um processo de aparência legal, mas de essência antidemocrática.

 

O Uruguai tem como impedir uma guerra jurídica?

A judicialização da política pode ser vista em toda a região. O que é preocupante. A guerra jurídica surge como uma estratégia para deslegitimar e deslocar as forças progressistas quando não se consegue apoio dos cidadãos nas urnas. Essa é uma tentação do bloco conservador em toda a região.

A Lei de Regulamentação da Mídia inibe esse tipo de ações tendenciosas dos meios de comunicação que, por sorte, no Uruguai não foram vivenciados com a intensidade que vemos no Brasil. No nosso caso, o fundamental é que não há pontos de apoio na realidade para isso.

 

A Ancap não seria o ponto de apoio na realidade? Não vê uma correlação entre as investigações na Petrobrás e na Ancap?

Não é casualidade no contexto regional, que se tome a empresa petroleira do Estado como objeto de estudo e investigação. Mas, até o momento, não houve provas de processos de corrupção que envolvam o Poder Executivo ou o governo, a não ser questionamentos pontuais a pessoas que exerceram determinados cargos na Ancap em determinado período.

Entretanto, se nota claramente que a direita uruguaia está desesperada para associar a situação no Uruguai com a política interna do Brasil e da Argentina, não há, por parte da oposição, um projeto alternativo ou que seja confessável.

Porque o projeto político e econômico da direita na região é um projeto inconfessável. Se confessado, jamais terá o apoio do povo: redução de salários, redução de direitos, desregulamentação trabalhista, diminuição de garantias previdenciárias para a aposentadoria, distribuição regressiva da riqueza, redução radical do investimento em políticas sociais, enfim, um programa inconfessável e indefensável. Quem votaria nisso? Daí o atalho pela maracutaia, pela judicialização, para tentar isolar as forças políticas progressistas que contam com respaldo popular.

 

Então, qual foi para Lula e Dilma o ponto de apoio na realidade?

Eu creio que o antecedente do “mensalão” foi dramático para a legitimidade do Partido dos Trabalhadores, os processos de compra de votos ou de corrupção e o julgamento de políticos históricos de referência do PT, acusados de suborno e de enriquecimento pessoal ilícito, contribuíram para a depreciação e a clara redução do apoio popular ao partido governante, gerando condições subjetivas para o avanço dessa ofensiva judicial conservadora, o que, agravado pelo enfraquecimento do apoio popular, ambientou um clima de agressão e finalmente de retirada de Dilma do poder e, agora, da prisão de Lula.

 

Quando disseram “jogar esse lixo no mar” ao transportar Lula em um avião da FAB para Curitiba, se nota uma alusão clara à Operação Condor. Você crê que exista o perigo de se repetirem os acontecimentos de 64?

Pelo protagonismo totalmente inadmissível que tomaram as figuras representativas do Exército, do poder militar, eu creio que haja um perigo objetivo de quebra da institucionalidade democrática do Brasil, com o apoio do poder econômico mais tradicional e conservador do país, contrário ao desenvolvimento produtivo e à forma como o PT administrava a redistribuição de renda e da economia, por exemplo, com um salário mínimo acima da inflação.

Por tudo isso é que, quer votemos na direita ou na esquerda, nós, democratas da região, devemos estar preocupados e ser solidários com a manutenção da democracia no Brasil, que está claramente ameaçada.

 

Você teve sob seu Ministério tanto o petróleo como as comunicações, dois grandes poderes atualmente. Tendo esse poder nas mãos, que críticas você tem a fazer para a esquerda hoje?

O que devemos assumir com autocrítica é que não desenvolvemos uma estratégia de desenvolvimento produtivo integrado em todo seu potencial.

O projeto da direita é um projeto radicalmente individualista, que não crê na igualdade e, portanto, não gera oportunidades de desenvolvimento para todos e todas. Mas não gera um desenvolvimento soberano, independente, porque não crê nele também.

Não podemos esquecer que o Brasil lançou uma estratégia geopolítica alternativa, rompendo o esquema unipolar. Isso gerou enorme oposição dos centros de poder, porque o governo progressista do PT conseguiu articulações econômicas e de poder alternativas, como foi o caso do BRICS, do Mercosul e UNASUR, em uma estratégia alinhada com os países mais emergentes e também com os países mais carentes. Lula tinha uma aposta claramente geopolítica alternativa às lógicas de domínio unipolar ocidental.

 

Por isso importa tanto o destino e a orientação política do Brasil?

Claro, porque toda América Latina sofre se o Brasil perder o protagonismo no cenário mundial e regional. Se o Brasil não retomar esses níveis de protagonismo, voltaremos à não existência da América Latina no concerto do mundo.

Aumentará a pobreza, aumentarão os níveis de dependência econômica e se retrocederá no respeito aos direitosem geral, em particular os dos mais desfavorecidos.

 

Estamos diante de um ataque conservador em nível regional?

Creio que sim, que assistimos a uma contrarreforma conservadora, em toda América. E essa contrarreforma busca o retorno ao pior da cultura conservadora de nossas sociedades. Refiro-me à existência de uma oposição radical à redistribuição de riqueza, à saída de uma porcentagem significativa da população da linha de pobreza, mas também à nova sensibilidade cultural que supõe “a agenda de direitos” que tem impulsionado a esquerda.

Essa oposição também se percebe no Uruguai. A redistribuição de riqueza irrita principalmente as elites de nossos países. Também há uma rejeição ideológica e cultural, de conteúdo reacionário, às políticas de direitos implementadas pelos governos progressistas, contrários aos direitos da mulher, às cotas, às políticas de equidade racial, à diversidade de gênero. Assistimos ao impulso de uma contrarreforma da direita, a uma reação conservadora.

Creio que Lula está certo em seu discurso quando diz que o problema não é Lula, mas a continuidade e o avanço dessas conquistas.

O grave é impor as mudanças sem aprovação popular. A soberania popular do Brasil não foi respeitada. Porque se votou um programa de governo proposto pela presidenta Dilma e, com sua destituição, se processou uma mudança radical nas políticas públicas, com a reforma do sistema previdenciário, as mudanças na política trabalhista, no modelo de desenvolvimento, com a intenção de favorecer os interesses econômicos tradicionais, debilitando o desenvolvimento econômico brasileiro e de toda a América Latina a médio e longo prazo. Foi uma mudança de programa sem mediar a decisão soberana, que agora se pretende reiterar impedindo a eleição de Lula.

Qual seria então o grande desafio dos partidos progressistas hoje?

O grande e maior desafio talvez seja a conscientização popular do que está em jogo e reivindicar o conteúdo ético do nosso projeto. É preciso conscientizar o povo sobre o perigo de um retorno às políticas mais conservadoras e de elite abastada.

 É conseguir fazer despertar a militância sobre os projetos em jogo e sobre seu papel na definição do futuro. A concepção da esquerda é uma concepção humanista, solidária, que não concebe o desenvolvimento pessoal se não ocorre numa convivência harmônica com os demais.

A única maneira de prevenir os processos de ameaça à democracia é com uma participação popular ativa e militante na defesa da democracia, não aceitando em hipótese alguma que se viole a Constituição e as garantias dos direitos fundamentais. Para isso, as pessoas precisam estar bem informadas, e por isso os meios de comunicação são tão importantes.

 

Lula é ou não é um preso político?

Minha convicção pessoal é que se trata de uma prisão de caráter político. Porque – sem elementos probatórios –se está privando o povo brasileiro de contar com um presidente que provavelmente seria eleito. Então, isso é grave, porquea prisão está interferindo no futuro eleitoral e, portanto, na orientação política do país. Em dois anos, tiraram Dilma e Lula. Não temos como não qualificar como político esse processo judicial. Mas não é um processo terminado, não está decidido seu final.

Não esqueçamos que Lula pode se tornar pré-candidato até o decorrer do mês de setembro. O que significa que ele pode ser candidato ou fator de triunfo presidencial no Brasil de dentro da prisão. Nós sabemos disso porque temos o general Líber Seregni como líder histórico fundamental da criação e crescimento da Frente Ampla.Ele esteve mais de dez anos preso e foi, de dentro da prisão, um fator fundamental para a recuperação da democracia e conseguinte mudança da realidade eleitoral.

A prisão das pessoas não é a prisão de suas ideias. Muitas vezes,estas se multiplicam. Porque são reforçadas pela marca ética que a prisão dá à sua luta, que o sacrifício pessoal da prisão dá à sua luta. E esse conteúdo ético a direita jamais poderá ter, incapaz que é de sacrifícios pessoais em função de projetos coletivos.

 

*Luciana Gaffrée – Graduada em Ciências da Comunicação – Faculdade de Informação e Comunicação (FIC) – Universidade da República do Uruguai.

Tradução de Samara Leonel – Jornalista e tradutora de espanhol ao português.

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América Latina e Mundo

Chilenos enterram a Constituição de Pinochet e começam um inédito (e incerto) processo Constituinte

Carta Magna produzida em 1980 era a base do modelo neoliberal chileno, que destruiu a Saúde, a Educação e a Previdência públicas

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Estátua equestre do general Manuel Baquedano, que liderou expedições contra os indígenas do sul, pintada de vermelho - Bárbara Carvajal (@barvajal)

A data 25 de outubro ficará marcada para sempre na história do Chile. Em 2019, foi o dia em que mais de 1,2 milhão de pessoas saíram às ruas para exigir um país mais digno. Um ano depois dessa manifestação, a maior do país, no dia 25 de outubro de 2020 os chilenos decidiram enterrar o último legado da ditadura de Augusto Pinochet: a Constituição de 1980.

Por Amanda Marton Ramaciotti, jornalista brasileira-chilena

No domingo, milhões de chilenos votaram em um plebiscito sobre escrever ou não uma nova Carta Magna, uma medida que nasceu como uma saída política à crise social iniciada em 2019. O resultado foi avassalador: 78,27% da população aprovou a iniciativa, contra 21,73% que a rejeitou.

Além disso, 78,99% dos votantes disse que quer que a nova Constituição seja redigida por uma Convenção Constituinte formada por 155 membros eleitos pela sociedade; versus um 21,01% que expressou que preferia uma Convenção Mista, formada por 172 membros, a metade deles legisladores e o restante constituintes. 

A comemoração durou horas. Em Santiago, milhares de pessoas foram a pé, de carro e de bicicleta em caravana até a avenida principal da capital e à praça central (antes conhecida como Praça Itália e agora, pelas manifestações, chamada popularmente de “Praça Dignidade”). Bandeiras do Chile e cartazes com as palavras “adeus, general” (em referência ao Pinochet) eram vistos em várias ruas.

Nova Constituição: chance de o Chile renascer - @delight_lab_oficial
Nova Constituição: chance de o Chile renascer – @delight_lab_oficial

A sensação era de um êxtase coletivo. “Ainda não consigo acreditar no que está acontecendo… Mais do que isso, é impossível dimensionar tudo que conseguimos”, me disse uma manifestante. Em um dos edifícios emblemáticos de Santiago, foi possível ler uma grande projeção com a palavra “Renasce”.  

“Para mim, é o começo de uma nova era”, comentou um jovem que estava comemorando os resultados do plebiscito.

Ele tem razão. Apesar de que a Carta Magna “do Pinochet” —escrita pelo advogado constitucionalista e ideólogo da direita chilena Jaime Guzmán, sofreu alterações durante a democracia, manteve vários dos seus aspectos principais. Ela continuou sendo a base do modelo neoliberal chileno que se adentrou na saúde, educação e sistema de aposentadoria, e também impedia grandes reformas estruturais pela exigência de um quórum de dois terços ou três quintos que, na prática, sempre foi muito difícil de ser alcançado.  

O novo ciclo

A decisão de escrever uma nova Carta Magna encerra um ciclo doloroso para milhares de pessoas que foram vítimas da ditadura do Pinochet, uma das mais sangrentas na América Latina, e também para tantas outras que até agora vivem em um país desigual devido, em grande parte, às disposições da atual legislação. O ciclo que começa agora é cheio de esperanças, mas também repleto de desafios.

O presidente Sebastián Piñera, quem em nenhum momento do processo deixou claro qual era o seu voto, disse domingo de noite que o plebiscito “não é o fim, é o começo de um caminho que juntos deveremos percorrer para escrever uma nova Constituição para o Chile. Até agora, a Constituição nos dividiu. A partir de hoje todos devemos colaborar para que a nova Constituição seja o grande marco de unidade, de estabilidade e de futuro do país”.

Ainda são poucas as definições que já foram tomadas sobre como será a assembleia constituinte. Sabemos que, em abril de 2021, os chilenos voltarão às urnas para escolher os 155 cidadãos que serão parte do processo. Sabemos que ela estará formada de forma paritária por homens e mulheres (algo inédito no país). Mas ainda falta uma série de decisões, como se poderão participar do processo pessoas que não estejam associadas a partidos políticos e se o órgão terá assentos reservados para os povos originários.

A assembleia contará com até 12 meses para redigir uma nova Carta Magna, cujas normas deverão ser aprovadas por dois terços dos integrantes. Esta será submetida a outro plebiscito, cuja participação será obrigatória.

Esse ponto é o que desperta mais dúvidas na sociedade. É que o plebiscito do domingo passado foi de caráter voluntário, e acudiram às urnas um total de 7,5 milhões de chilenos dos mais de 14 milhões habilitados para votar. Apesar de ter sido a participação mais alta da sociedade desde 2012, quanto o sufrágio começou a ser optativo no país, a votação do dia 25 de outubro não deixa claro qual será o resultado final se as 6,5 milhões de pessoas que não participaram no domingo votarem em 2022.

Mas, como dizem por aqui, isso é uma decisão para o Chile do futuro. O Chile do presente quer comemorar. E tem motivos de sobra para isso.

O estádio nacional, um dos maiores centros de tortura durante a ditadura, neste domingo foi um dos lugares que recebeu mais votantes - Bárbara Carvajal (@barvajal)
O estádio nacional, um dos maiores centros de tortura durante a ditadura, neste domingo foi um dos lugares que recebeu mais votantes – Bárbara Carvajal (@barvajal)

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Chile

Chilenos se preparam para um plebiscito histórico sobre manter ou dar adeus à “Constituição do Pinochet”

Chilenos estão ansiosos para o plebiscito, adiado desde abril por conta da pandemia

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Era uma demanda colocada por alguns setores da sociedade chilena há anos, mas foram os protestos de 2019 os que voltaram exigir a derrubada da Constituição de 1981, imposta pela ditadura militar de Augusto Pinochet. Agora, no domingo 25 de outubro, mais de 14 milhões de chilenos acudirão às urnas em um plebiscito histórico que decidirá se o país “aceita” (aprueba) ou “rejeita” (rechaza) uma nova Carta Magna. A votação foi pensada como um caminho político para aplacar a crise social que o Chile enfrenta.

Por: Amanda Marton Ramaciotti, jornalista brasileira-chilena

Os ânimos estão à flor da pele. Nos muros, nas redes sociais, na mídia praticamente não se fala de outra coisa. Não é para menos, já que o plebiscito, inicialmente marcado para o dia 26 de abril, foi atrasado pelo governo devido à pandemia. Além disso, acontecerá somente uma semana depois do primeiro aniversário do chamado “estallido social”, iniciado em 18 de outubro de 2019, quando milhões de pessoas saíram às ruas para exigir um país mais igualitário. Mas a sociedade chilena -como tantas outras na América Latina e no mundo- está profundamente polarizada e, apesar de as pesquisas dizerem que a maioria votará pelo “aceita”, nada está definido.

Foto: Pablo Gramsch / Instagram: @active_grounds


Por um lado, o “apruebo” reúne intenções diversas, que vão desde exigir uma mudança no modelo neoliberal chileno até entregar mais direitos às mulheres, aos índios e às diversidades sexuais.

Alejandra Saez, uma trabalhadora independente, me disse que vai aprovar porque “se necessita uma mudança imediata, apesar de que o resultado chegue com o tempo, tomar a decisão de transformar o sistema já é um grande avanço”. “Quero que as novas regras validem o bem-estar das pessoas e não os cofres dos outros. Que não nos sintamos atacados pelo sistema”, afirmou.

Já o bioquímico Francisco Pereira me explicou que votará “apruebo” porque considera que é necessária uma “mudança drástica na atual Constituição, já que apesar de que outorga direito a serviços básicos, em nenhum momento garante o acesso a esses serviços, deixando muitos recursos principalmente nas mãos do mundo privado. Além disso, foi escrita para um contexto de desenvolvimento de país determinado muito diferente do atual, e é bastante rígida, o que dificulta que ela seja adaptada às atuais necessidades do Chile”.

Nas campanhas eleitorais, também é possível ver que muitos dos que pedem uma nova Constituição querem reformar as instituições encarregadas da segurança pública, já que, em 2019, pelo menos 30 pessoas morreram, milhares ficaram feridas e o Chile foi cenário de graves violações aos direitos humanos no marco dos protestos sociais, segundo Human Rights Watch, a ONU, entre outros. De acordo com o Instituto Nacional de Direitos Humanos, 460 pessoas sofreram lesões oculares durante as manifestações devido ao uso excessivo da força policial. Delas, pelo menos duas ficaram completamente cegas.

Por outro lado, Natalia C. (que pediu não ser identificada) aposta pelo “rechazo” porque considera que “não há necessidade de escrever uma nova Constituição inteira para realizar as reformas que o país precisa”. Nas redes sociais, as pessoas que chamam a votar por essa alternativa também dizem temer que o Chile se transforme em um país “caótico” e/ou “esquerdista”.

Além disso, muitos sinalizam que votar “apruebo” seria dar um aval à destruição de patrimônio que ocorreu no marco das mobilizações sociais. É que o metrô de Santiago, várias igrejas, ruas e estátuas foram parcialmente destruídos e/ou incendiados desde outubro de 2019, mas não há informação detalhada disponível sobre quem foram os responsáveis de cada um desses atos.

Foto: Pablo Gramsch / Instagram: @active_grounds


Muitos ainda estão indecisos. O microempresário Javier Baltra comentou que achava melhor votar nulo porque “ambas as opções estão cheias de problemas. Aprovar pode ser sinônimo de um Estado maior, e eu acho isso problemático para a economia. E rejeitar é deixar tudo como está até agora e não sei se isso é uma boa ideia”.

Além de escolher entre as opções “apruebo” ou “rechazo” uma nova Constituição, os chilenos devem votar se desejam que a eventual Carta Magna seja escrita por uma Convenção Constitucional formada por 155 constituintes eleitos ou por uma Convenção Mista de 172 membros (metade legisladores e metade cidadãos eleitos).


A LEI ATUAL


Qualquer pessoa que não conheça a história do Chile provavelmente se surpreenderá ao saber que um país como este tenha ainda uma Constituição que foi escrita na época da ditadura militar. “Nossa, mas é um país tão desenvolvido”; “como assim?”; “sério?” foram alguns dos comentários que recebi de amigos brasileiros quando contei sobre o que está acontecendo agora.


A Constituição atual foi aprovada em um questionado plebiscito realizado no dia 11 de setembro de 1980, em plena ditadura do Pinochet, quando milhões de chilenos viviam sob o medo da repressão, sem registros eleitorais e com os partidos políticos dissolvidos.
O texto foi escrito pelo advogado constitucionalista Jaime Guzmán, um dos maiores ideólogos da direita chilena, e que foi assassinado por um comando de ultraesquerda em 1991.

Ele foi escolhido por uma comissão designada pela ditadura. Posteriormente, a redação contou com a revisão e o apoio do Conselho de Estado e a Junta Militar, composta pelos máximos chefes do Exército e o diretor da polícia, que exercia como “poder legislativo”. Guzmán criou uma série de regras muito difíceis de alterar para perpetuar seu modelo econômico e político.

Como ele mesmo disse quando escrevia a Constituição, sua ideia era que, se os adversários chegassem a governar, eles se veriam “obrigados a seguir uma ação não tão distinta ao que alguém como nós gostaria (…) que a margem seja suficientemente reduzida para fazer extremamente difícil o contrário”.

Foto: Pablo Gramsch / Instagram: @active_grounds


Para realizar reformas à Carta Magna, Guzmán detalhou que é necessário alcançar um quórum de dois terços ou três quintos, segundo o caso, algo que, na prática, tem sido praticamente impossível de conseguir, porque nem o oficialismo nem a oposição conta com essa quantidade de votos.

Essa Constituição também instaurou um modelo econômico, político e social neoliberal, que se adentrou na educação e na saúde privada e um sistema de aposentadoria conhecido como AFP baseado na poupança individual e que no ano passado entregou aposentadorias pelo valor de 110.000 pesos chilenos (uns US$ 140). Esse sistema, hoje sumamente questionado pela população chilena, foi elogiado pelo Ministro de Economia do Brasil, Paulo Guedes, em várias ocasiões.

Se bem que o texto legal não estabeleça especificamente que a saúde, a educação ou o sistema de aposentadoria devam ser privados, na prática, sim, impõe princípios que limitam a ação do Estado e promove a atividade privada nesses setores. Por exemplo: não existe no Chile nenhuma universidade que seja gratuita.

Segundo analistas, a Constituição atual também é hierárquica e desconecta a cidadania do poder político, porque não inclui muitos mecanismos de participação.

Ao longo da sua história, sofreu duas modificações: a primeira, em 1989, ano do fim da ditadura, quando foi derrogado um artigo que declarava “ilícitos” a grupos que realizassem “violência ou uma concepção da sociedade do Estado ou da ordem jurídica de caráter totalitário ou fundada na luta de classes”. Outra, em 2005, quando depois de um grande acordo político o presidente socialista Ricardo Lagos conseguiu alterar outros aspectos, como que os comandantes em chefe das Forças Armadas passassem a estar subordinados ao poder civil, e a eliminação de senadores designados e vitalícios. Isto permitiu que em 2006 (há 14 anos!) o Senado fosse totalmente conformado por membros de eleição popular.

Agora, se a opção “apruebo” ganhar o plebiscito, o texto não só será modificado: a sociedade poderá dar adeus à chamada “Constituição do Pinochet”. Sem dúvidas, uma decisão histórica.

Veja também: Chileno preso no RIR: desembargador reconhece ilegalidade da prisão

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Bolívia

Veja a tradução da declaração de Evo Morales

Declaração de Evo Morales, ex-presidente da Bolívia, dada em 18 de outubro, dia da eleição presidencial após o golpe.

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DECLARAÇÃO DE IMPRENSA DO EX-PRESIDENTE EVO MORALES
Buenos Aires, 18 de outubro de 2020

  1. Desde a cidade de Buenos Aires, neste dia histórico, domingo, acompanho nosso povo em seu compromisso com a pátria, com nossa democracia e com o futuro de nossa amada Bolívia, de exercer seu direito ao voto em meio aos acontecimentos em nosso País.
  2. Saúdo o espírito democrático e pacífico com que se desenvolve a votação.
  3. Diante de tantos rumores sobre o que vou fazer, venho declarar que a prioridade é exclusivamente a recuperação da democracia.
  4. Quero pedir a vocês que não caiam em nenhum tipo de provocação. A grande lição que nunca devemos esquecer é que violência só gera violência e que com ela todos perdemos.
  5. Por este motivo, conclamo as Forças Armadas e a Polícia a cumprirem fielmente o seu importante papel constitucional.
  6. Diante da decisão do Tribunal Supremo Eleitoral de suspender o sistema DIREPRE (Divulgação de Resultados Preliminares) para ir diretamente para a apuração oficial, informo que, felizmente, o MAS possui seu próprio sistema de controle eleitoral e que nossos delegados em cada mesa irão monitorar e registrar cada ato eleitoral.
  7. O povo também nos acompanhará nesta tarefa de compromisso com a democracia, como o fez tantas vezes, situação pela qual somos gratos.
  8. É muito importante que todas e todos os bolivianos e partidos políticos esperemos com calma para que cada um dos votos, tanto das cidades como das zonas rurais, seja levado em conta e que o resultado das eleições seja respeitado por todos.
  9. Neste domingo, no campo, nas cidades, no altiplano, nos vales, nas planícies, na Amazônia e no Chaco; em cada canto de nossa amada Bolívia e de diversos países estrangeiros, cada família e cada pessoa participará com alegria e tranquilidade na recuperação da democracia.
  10. É no futuro que todos os bolivianos, inclusive eu, nos dedicaremos à tarefa principal de consolidar a democracia, a paz e a reconstrução econômica na Bolívia.
    Viva a Bolívia!
    Evo Morales

Tradução: Ricardo Gozzi /Jornalistas Livres

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