Por que a greve dos caminhoneiros é mais do que justa

Por Katia Passos e Lina Marinelli, dos Jornalistas Livres

Alpha é caminhoneiro autônomo. Ele e seus companheiros de ofício organizam a vida cotidiana por intermédio de grupos de whatsapp. É assim que trocam informações sobre as condições das estradas, onde estacionar com segurança, assaltos, acidentes, valor de frete. Um assunto sempre presente nesses grupos são as condições subumanas de trabalho da categoria.

A vida dos caminhoneiros sempre foi mesmo muito dura: ficam dias longe da família, expostos à rotina de assaltos nas estradas e muitas vezes assassinados. Para economizar, dormem na boléia dos caminhões. O caminhoneiro suporta uma carga pesada em cima dele. Mas, nos dois últimos anos, o que já era difícil tornou-se ainda pior com a alta do preço dos combustíveis. Chegou no limite. Metade da despesa é com óleo diesel. Somam-se os custos com teste toxicológico, pedágio alto, preço do pneu, e a manutenção do caminhão. Segundo um caminhoneiro, “é muito tapa na cara”. Os caminhoneiros estão “pagando para trabalhar”.

Foi por isto tudo que o movimento explodiu agora, apesar de seus sindicatos fracos e desunidos. Onde antes havia assembleias gigantescas para decidir a paralisação de atividades, agora florescem grupos de whatsapp que funcionam como fóruns de deliberação e encaminhamento. E há os encontros presenciais, com a ocupação de trechos inteiros das estradas, onde se afinam as relações de confiança, as parcerias, as solidariedades visando a ação.

No Brasil, os caminhoneiros autônomos representam 46% da frota nacional, mas no transporte de até 29 toneladas eles representam 67% da frota nacional.

Nos dois últimos anos, desde o golpe contra Dilma Rousseff, houve uma escalada do preço dos combustíveis, com aumento diários de preços. A federação dos petroleiros aponta que “mesmo sabendo das consequências, Temer e Parente optaram por satisfazer o mercado e, em julho do ano passado, os reajustes nas refinarias passaram a ser diários. Desde então, a Petrobrás alterou 230 vezes os preços nas refinarias. Isso resultou em aumentos de mais de 50% na gasolina e diesel, enquanto os preços do gás tiveram 60% de reajuste”.

 
Para conhecer melhor o movimento que está parando o Brasil, Jornalistas Livres procuraram “Alpha Caminhoneiro”, um profissional autônomo, liderança da categoria. Alpha preferiu não se identificar porque desconfia dos auto-proclamados representantes da categoria –e não quer se tornar mais um. Respeitamos.

Nosso encontro com ele aconteceu em São Paulo, no domingo à noite. Ao chegarmos ao ponto de encontro, encontramos um jovem com sotaque sulista misturado a modos e maneiras do interior de São Paulo. Alpha nos recebeu com imensa simpatia e generosidade, embora estivesse com olhar preocupado, em razão da iminência no início do programa dominical da Globo, o “Fantástico”. Ele conhece o poder da Globo para moldar as reações à greve.

IMAGEM: SEBASTIÃO MOREIRA (EFE)

Para se ter uma ideia, só pelo seguro do caminhão, um Volvo FH 380 (3 eixos, ano 2005), mais a carreta com 3 eixos, Alpha Caminhoneiro paga cerca de R$ 18 mil ao ano. Juntos, caminhão e carreta, usam 22 pneus, cada um custando R$ 2 mil. A cada 10 meses, os pneus precisam ser trocados. Num rápido cálculo, o gasto –só com pneus— é de R$ 52.800 por ano. Se qualquer peça do caminhão for avariada, o caminhoneiro precisará arcar com o custo de seu bolso.

Pedimos ao caminhoneiro que simulasse os custos de uma viagem de São Paulo a Feira de Santana, na Bahia. São 2 mil quilômetros de distância entre uma cidade e outra. Só de pedágio, o caminhão paga R$ 263,00 e “bebe” um litro de diesel a cada 2,5 quilômetros rodado. Os preços do diesel variam entre um estado para outro. Mas vamos tomar como base de cálculo a última média anunciada pela ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis): R$ 3,788. Com este valor, o combustível sairá por R$ 3 mil (só ida), ou R$ 6 mil (ida e volta).

 
Quer mais? Uma viagem desse porte, dura em média 3 dias. Para tomar banho e se alimentar nos postos espalhados pelas estradas, o motorista gasta em média 180 reais. Além disso, a responsabilidade por carregar e descarregar o caminhão fica por conta deles também e lá se vão mais R$ 300 reais para o “Chapa”, outro trabalhador que sofre com as condições de exploração que a alta dos combustíveis traz para o país. Eles são aqueles homens que ficam nas marginais e beiras de estrada com cartazes de papelão oferecendo sua mão de obra.

E quanto a transportadora paga ao caminhoneiro?

No frete que simulamos com Alpha, a transportadora cobra do dono da carga cerca de R$ 17 mil reais. Ao caminhoneiro autônomo, entretanto, a transportadora paga apenas R$ 7 mil. Se houver um segundo “atravessador”, esse valor diminui. Mas vamos fechar a conta aqui: CUSTO da viagem = 3.000 + 434 (pneus) + 148 (seguro) + 263 (pedágio) = R$ 3.876. Sobraram quase R$ 3.124 para Alpha. Bom, né? Seria, não houvesse o desgaste do caminhão, que custa mais de R$ 100 mil usado, e se não tivesse mais sacanagem pra cima dele.

O “frete de retorno”, pago quando o atravessador ou transportadora sabem que o caminhoneiro precisa voltar pra casa, sai pelo preço mínimo de custo. Assim, Apha tem de voltar rezando para não acontecer nada com o caminhão, que não quebre nenhuma peça, que não fure nenhum pneu, que ele não fique doente.

Jornalistas Livres – Por que essa greve?
Alpha Caminhoneiro –
Porque não temos mais condições de trabalho, os custos estão altíssimos, a variação do valor do diesel não nos permite saber quanto vamos ganhar por frete, por viagem. É impossível. Uma viagem de ida e volta pro Nordeste leva no mínimo 15 dias, se tudo correr dentro da normalidade, se o diesel aumentar, tudo muda.
O ICMS para cada local é diferente, no Ceará é um, na Bahia, outro.
Não temos como prever as variações e os impactos. O que aconteceu é que muitos colegas vinham trabalhando com a margem mínima de ganhos e muitos ficaram sem dinheiro para voltar das viagens, assim, fazíamos ligações para as empresas que prestamos serviços pedindo ajuda, mas o que ouvíamos é que uma vez que o contrato foi fechado e assinado, não há flexibilização: “Se vire, não temos nada a ver com isso.” Antes da greve, tínhamos que tirar dinheiro do bolso toda vez que os aumentos aconteciam e não conseguíamos voltar para casa se não fosse assim.

Jornalistas Livres – Os donos das transportadoras entraram na greve?
Alpha Caminhoneiro –
Por que, agora com a greve, não vemos caminhões de empresa na estrada? Se a carga é comum, não vamos deixar passar. A empresa vai perder, então prefere não sair. O próprio motorista das empresas, os contratados, estão parando.
Os empresários de transportadoras querem apoiar por interesse, pois se o valor do diesel abaixa, eles terão mais lucros.

Jornalistas Livres – Qual tipo de carga vocês estão deixando passar?
Alpha Caminhoneiro –
Com nota, tudo que é emergencial: combustível para viatura, insumos hospitalares…

Jornalistas Livres – Mas os hospitais têm reclamado que faltam alimentos…
Alpha Caminhoneiro –
Não é verdade. Se na nota não tiver descrição, sempre vai constar o local de entrega. Se é para hospital, seja o que for, não bloqueamos. Essa é a orientação desde o início. Se isso está acontecendo não é uma ação do comando de greve. Nas redes sociais, a população pode ver vídeos de caminhoneiros sendo liberados com a apresentação da nota, principalmente quando se trata de insumos hospitalares.

Jornalistas Livres – Quem participou da reunião com Temer?
Alpha Caminhoneiro –
Nenhum caminhoneiro autônomo ou representante entrou na reunião. Gilmar Bueno foi um que estava lá, piloto de truck. Todos ali eram estranhos, não tinha nenhum autônomo. Quem tinha que entrar e não entrou era o Chorão e nem sequer foi convidado. Achamos que isso serviu para criar uma cena midiática, “vai aparecer na Globo, eles se dispersam e os caras não conseguem se mobilizar de novo.” Mesmo que o Chorão nos diga que, por exemplo, conseguiu que a reivindicação dos eixos suspensos seja atendida, vamos continuar parados pois queremos atendimento integral das pautas.

Jornalistas Livres – Como funciona a estrutura de comunicação de vocês?
Alpha Caminhoneiro –
O nosso trunfo é a comunicação. Temos as pautas de “gargalo”, aquelas de que não podemos abrir mão. Se o motorista que está no zap, não “fecha” conosco sobre o que é indispensável, já sabemos que é alguém estranho no grupo. Temos grupos de whatsapp com esse objetivo. Inicialmente, eram grupos focados em sua maioria no assunto “frete”. Agora, falamos da greve, das pautas, de nossa organização para continuarmos parados. Fomos nós quem iniciamos a greve no dia 18 de maio.

Jornalistas Livres – Mas parece que no ano passado vocês queriam parar?
Alpha Caminhoneiro –
Começamos mais fortemente o debate sobre as pautas em outubro do ano passado. Estávamos ensaiando. Tínhamos esperança que Temer baixasse. Temos muitos grupos de frete que cresceram de 6 meses para cá com esse debate. Nos últimos aumentos, começamos a falar em parar. Principalmente depois do último, quando interpretamos a medida de Temer como uma gozação com nossa categoria autônoma. A imprensa toda estava avisando que poderíamos parar e, mesmo assim, o governo não nos respeitou.

Jornalistas Livres – Sindicatos estão na greve?
Alpha Caminhoneiro –
Não. Sindicatos sempre negaram, nunca quiseram se meter.
Tentaram cooptar a greve no primeiro dia, na Regis Bittencourt, e nós não deixamos, expulsamos eles de lá, pois sempre viraram as costas para nós. Inclusive sempre duvidaram da nossa capacidade de mobilização.

Jornalistas Livres – Quanto ganha uma caminhoneiro autônomo por mês? Média?
Alpha Caminhoneiro –
Depende da região. Não ganha mais do que um caminhoneiro contratado ou um comissionado que não chega a R$ 5 mil. Fora os riscos da estrada, os assaltos, as despesas todas que temos e saem do nosso bolso. Pagamos para trabalhar.

Jornalistas Livres – Quais são as categorias dos caminhoneiros?
Alpha Caminhoneiro –
Somos divididos entre autônomos ou agregados e contratados.

Jornalistas Livres – Quais são as pautas principais da greve?
Alpha Caminhoneiro –
1. Queda de Temer; 2. Convocação de novas eleições; 3. Redução de imposto no diesel, do preço; 4. Frete: queremos que a empresa repasse margem boa de lucro, 80%, para não ficarmos reféns das variações; 5. Revisão das taxas por eixos suspensos em todos os pedágios do país; 6. Melhores condições de trabalho. Regulação da carga horária, pois não temos hora para terminar o trabalho e sofremos com as exigências de quem é contratado.

Jornalistas Livres – O que vocês querem mostrar para o povo?
Alpha Caminhoneiro –
Que se todos saírem às ruas, mudamos o cenário. Temos a impressão que muitos políticos de Brasília vivem vida de rei e nós estamos ficando cada vez mais ferrados. São muitos privilégios para eles. Queremos o povo junto de nós contra tudo isso.

Jornalistas Livres – E a pauta da intervenção militar?
Alpha Caminhoneiro –
Infelizmente há uma parcela de motoristas ignorantes na greve, no sentido de não saberem o que estão falando. São pessoas “de antigamente” que ficam passando isso para os netos. A greve é composta de muitos rostos, muita gente. Tem quem grite Lula Livre, tem separatista, tem gente pedindo intervenção militar.

Jornalistas Livres – Mas temos visto a intervenção como pauta. Qual é o motivo?
Alpha Caminhoneiro –
Acho que é porque uma parcela dos caminhoneiros não acredita mais em ninguém. Não confiam no Temer e em nenhum outro político. Mas intervenção não é pauta oficial. Não é.

Jornalistas Livres – Se a Tropa de Choque ou até o Exército forem para as estradas e atacarem, o que vocês pretendem fazer?
Alpha Caminhoneiro –
Não teremos reação. Não seremos violentos. Tem que ter muito caminhão do exército para tirar os caminhões. Achamos que é blefe. Os caminhões têm rastreamento, precisam de código. Não poderão nos obrigar a digitar a senha.

Jornalistas Livres – O MST organizou na Dutra uma cozinha para os caminhoneiros. Como está essa relação?
Alpha Caminhoneiro –
Não temos nenhuma relação. O pessoal não quer o MST e nem a CUT no meio.

Jornalistas Livres – Mas vocês estão aceitando os alimentos?
Alpha Caminhoneiro –
Sim, estamos. O que não queremos é que essas organizações fiquem tentando se aproveitar da greve para fins políticos, gravando vídeos, por exemplo.

Jornalistas Livres – Então vocês não querem vínculo com nenhum partido ou movimento, mas a intervenção militar está presente em todas as estradas e vocês não estão tirando as faixas…
Alpha Caminhoneiro –
É um ou outro que pensa que intervenção militar é uma boa, é uma minoria.

Jornalistas Livres – Mas se um grevista quiser colocar uma faixa Lula Livre…
Alpha Caminhoneiro –
Pode! Mas a maioria ficou criticando, talvez por isso que não tenham acontecido tantas iniciativas de apoio ao Lula na primeira semana de greve.

Jornalistas Livres – E a greve dos petroleiros?
Alpha Caminhoneiro –
Achamos muito importante. E, ao contrário do que pensam, sabemos diferenciar privatização de estatização. Qualquer classe trabalhadora que pare, será bom para fortalecer a gente.

Jornalistas Livres – Vocês gritaram Fora Dilma. O país está melhor agora com Temer ou na época de Dilma?
Alpha Caminhoneiro –
Concordo que agora está pior. Gritamos Fora Dilma, por que na época em que começamos a perder qualidade de vida, tentamos diversas vezes conversar com ela, mas nós, os autônomos, nunca fomos recebidos. Já com Lula foi diferente. Melhoramos de vida na época de Lula. Teve gente que aproveitou a facilidade para financiar caminhão, estradas importantes para a gente foram duplicadas, os pedágios ficaram com preços justos. Com Lula a gente nem precisava fazer protesto. Com Temer piorou de vez.

Jornalistas Livres – Na sua opinião, já vivemos uma espécie de greve geral?
Alpha Caminhoneiro –
Não existe greve geral se os transportes não pararem.

Jornalistas Livres – Qual é o futuro da greve dos caminhoneiros?
Alpha Caminhoneiro –
Queremos o fim da corrupção. Queremos varrer Temer do país.

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