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Feminismo

PLEA BARGAIN à brasileira: a justiça penal negociada do projeto de lei anticrime

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Do coletivo Transforma MP

Por Natália Ribeiro e Yashmin Baiocchi, na Revista do IBCCRIM.

Certa manhã, Joseph K.(1) foi surpreendido por autoridades que lhe atribuíram a prática de um crime. Sem saber do que se tratava, a personagem de Franz Kafka é atropelada por um sistema inquisitório em que o acusado não vislumbra outra alternativa a não ser aderir ao status quo dominante e assumir como própria a conduta delitiva a ele imputada.

No Brasil, com a consagração do Processo Penal acusatório, tal situação é inconcebível. O sistema de justiça criminal próprio de um Estado Democrático de Direito e enraizado no sistema de civil law exige positivação de direitos fundamentais inalienáveis e indisponíveis, assegurados a todos, sem qualquer distinção.

Mais precisamente no artigo 5º, LIV, do Diploma Constitucional, há o mandamento de que ninguém será privado de sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.

Este, que na concepção de Uadi Lammêgo Bulos (2015, p. 332) é classificado como um sobreprincípio, e, conforme asseverado pelo autor, “funciona como meio de manutenção dos direitos fundamentais. Sua importância é enorme, pois impede que as liberdades públicas fiquem ao arbítrio das autoridades (…)”.

Assim, o due process of law é o canal através do qual as demais garantias constitucionais criminais se afirmam. Nesse aspecto, o Supremo Tribunal Federal já reconheceu a indisponibilidade da prerrogativa do contraditório e da ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.(2)

Contudo, com a importação do plea bargain, oriundo de um país de common law eque possui a maior população carcerária do planeta, vislumbra-se a assustadora possibilidade de exercício do jus puniendi sem que tenha havido ao menos o oferecimento da denúncia pelo Ministério Público.

É cediço que o artigo 129, I, da Constituição Cidadã, ao instituir a competência privativa do Parquet de promover a ação penal, fundamenta a sistemática da obrigatoriedade do processo que ainda prevalece na doutrina e na jurisprudência. Assim, para que alguém seja submetido a qualquer sanção de natureza penal, mormente em caso de restrição da liberdade, seria imprescindível a prestação jurisdicional.

Contudo, com a inserção do acordo de não-persecução penal no Brasil, inicialmente e ainda mediante resolução do Conselho Nacional do Ministério Público, houve verdadeira relativização das garantias à liberdade, à propriedade e, sobretudo, ao devido processo legal.

Quase que imediatamente após a edição da resolução 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público, houve a propositura de duas ADIs (5790(3) e 5793(4)) no Supremo Tribunal Federal, cujos questionamentos precípuos consistiam na exclusão do crivo do Judiciário e à inovação legislativa do Conselho.

A primeira crítica foi sanada pela resolução 24/2018, que previu a submissão do acordo ao juízo competente. Quanto à suposta inconstitucionalidade formal, o Projeto de Lei Anticrime, apresentado pelo Ministro Sérgio Moro, intenta inserir a justiça negocial nos futuros artigos 28-A e 395-A, ambos no Código de Processo Penal.

Em verdade, pouco importa se a aplicação da medida se dará através de resolução ou de lei ordinária; o cerne da questão reside no fortalecimento da política de criminalização da pobreza.

Um dos pressupostos para a efetivação do acordo de não-persecução consiste na confissão detalhada do delito. Claramente, o objetivo central é punir, a fim de sustentar, perante a sociedade, a falsa ideia de efetividade penal. Não importa a quem se puna, desde que se puna alguém.

Conforme demonstrado no Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), em junho de 2016 havia mais de 726.000 (setecentas e vinte e seis mil) pessoas encarceradas no Brasil, contingente este que, em decorrência da política criminal implantada, tende a aumentar a cada ano.

Em caso de aprovação do Projeto de Lei Anticrime e da aplicação do “acordo” de não-persecução, ao acusado, se for o caso, nos termos do que dispõe o artigo 395-A, poderá ser oferecida a restrição imediata da liberdade, com renúncia ao processo e aos recursos inerentes a este, em nome da celeridade processual.

Ainda de acordo com o Infopen, cerca de 54% da população carcerária brasileira é constituída por jovens de até 30 anos, 64% por negros e 51% por pessoas que não completaram o ensino fundamental. Além da extrema desigualdade social, da precariedade do ensino público e do racismo enraizado na sociedade, também se deve atribuir à defesa técnica ineficiente grande parcela desta realidade.

No vindouro artigo 28-A, a ser inserido no Código de Processo Penal, há, em seu § 4º, menção expressa à necessidade de que o acordante seja inquirido pelo promotor na presença de advogado. Ocorre que, conforme anteriormente mencionado, os investigados “padrões” não dispõem de recursos financeiros suficientes para custear uma defesa minimamente satisfatória.

Aqui, a interiorização da Defensoria Pública mostra-se, até então, a única alternativa capaz de equiparar tecnicamente defesa e acusação. A nomeação de defensores, salvo raríssimas exceções, visa apenas “tapar lacunas” impostas pela legislação, e não satisfaz a exigência de efetividade da defesa técnica oferecida pelo Estado ao réu.

Ademais, o próprio acusado é induzido a acreditar que está sendo, de fato, defendido. A aplicação do plea bargain no Brasil só seria positiva se ao menos houvesse possibilidade de, no caso concreto, frear a arbitrariedade estatal viabilizada através de um Código inspirado no sistema ditatorial italiano.

Outro ponto problemático da proposta consiste nos casos de inadmissibilidade da justiça negociada, previstos também no artigo 28-A, § 2º, do Projeto. Já no inciso I, consta a primazia do acordo de não-persecução sobre o benefício da suspensão condicional do processo.

A suspensão condicional do processo, regulada pelo artigo 89 da Lei 9.099/1990, consiste na paralisação da ação penal após o recebimento da denúncia pelo juízo competente. A grande vantagem do instituto em detrimento do acordo de não-persecução penal reside em já se ter prova da materialidade delitiva e indícios suficientes de autoria, condições indispensáveis à apresentação da exordial acusatória.

Caso haja a implementação da justiça negociada, nos exatos termos do projeto, os referidos requisitos serão dispensados, sendo suficiente a existência de inquérito policial instaurado em desfavor do investigado.

Assim, mesmo que não haja materialidade e/ou indícios de autoria, ao promotor de justiça será assegurada a possibilidade de oferecimento do acordo ao investigado, que, sem conhecimento técnico e assistência de um profissional disposto a analisar a causa, acaba por ceder ao constrangimento estatal e confessar a prática de um crime do qual não se tem qualquer prova. Seria o retorno do status da confissão como “rainha das provas”.

Já no inciso II do artigo 28-A, § 2º, tem-se a positivação da Teoria do Etiquetamento Social, também conhecida como Labelling Approach Theory, ao reforçar o estigma de outsider daquele que praticou uma conduta desviada, ao invés de se preocupar em interromper a carreira criminal do indivíduo. Nesse contexto, as condutas desviantes parecem ser alimentadas pelas agências de controle designadas para inibi-las (SCHECAIRA, 2004).

Destarte, ao prever que a justiça negocial não alcançará aqueles que sejam criminosos habituais, reiterados ou profissionais, o projeto deixa à discricionariedade do Parquet a rotulação do agente como delinquente.

Frisa-se que o referido inciso não trata de indivíduos que já estejam sendo processados ou que possuam condenação transitada em julgado; em alguns casos, bastará que haja um Termo Circunstanciado de Ocorrência para que o agente seja rotulado como criminoso habitual.

Evidente, portanto, que o Projeto de Lei Anticrime está eivado de inconstitucionalidade material, residente na possibilidade de celebração de um acordo em que se renuncie ao processo e a todas as garantias inerentes a ele, cuja presunção será sempre de culpa, em total dissonância à Constituição Federal de 1988.

Nesses termos, a involução da política criminal brasileira acarretará incalculáveis danos à já lesionada estrutura social do país, pois, assim como Joseph K., aqueles que estiverem à margem do sistema serão engolidos por ele.

Natália Pimenta Ribeiro é discente da Faculdade de Direito da Universidade de Rio Verde UniRV. Estagiária do Ministério Público do Estado de Goiás.

Yashmin Crispim Baiocchi de Paula e Toledo é mestra em Direito, Relações Internacionais e Desenvolvimento pela PUCGO. Professora de Direito Penal da Universidade de Rio Verde – UniRV.  Promotora de Justiça em Goiás. Integrante do Transforma MP.


Referências

Bulos, Uadi Lammêgo. Direito constitucional ao alcance de todos. 6 ed. rev. e atual. De acordo com a EC n. 83, de 5-8-2014, e os últimos julgados do STF. São Paulo: Saraiva, 2015.

BRASIL. Secretaria Nacional de Segurança Pública. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – Infopen, Junho/2016. Fórum Brasileiro de Segurança Pública, dezembro/2015; IBGE, 2016.

Schecaira, Sérgio Salomão. Criminologia. – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.

Notas

(1)  Joseph K., personagem da obra O Processo, de Franz Kafka, é um respeitável funcionário de um banco surpreendido por uma acusação que não lhe é formalmente apresentada e submetido ao autoritarismo da Justiça, sem que lhe sejam oferecidos meios de defesa, apesar de ser inocente.

(2)  “O contraditório e a ampla defesa são princípios cardeais da persecução penal, consectários lógicos do due process of law. O devido processo legal é processo pautado no contraditório e na ampla defesa, no intuito de garantir aos acusados em geral o direito não só de participar do feito, mas de fazê-lo de forma efetiva, com o poder de influenciar na formação da convicção do magistrado”. (STF – HC: 116985 PE, Relator: Min. ROSA WEBER, Data de Julgamento: 25/03/2014, Primeira Turma, Data de Publicação: DJe-071 DIVULG 09-04-2014 PUBLIC 10-04-2014).

Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=((99459.NUME.%20OU%2099459.DMS.))%20NAO%20S.PRES.&base=baseMonocraticas>. Acesso em: 20 mar. 2019.

(3)  Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf? seqobjetoincidente=528302>. Acesso em: 20 mar. 2019.

(4)  Disponível em: http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf? seqobjetoincidente=5288159. Acesso em: 20 mar. 2019.

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Feminismo

“Estupro culposo”, culpa da vítima?

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Por Sonia Coelho*

O caso de André de Camargo Aranha veio à tona nas redes sociais por conta de sua absolvição pela denúncia de estupro de vulnerável. Segundo o The Intercept Brasil, durante o processo o promotor Thiago Carriço de Oliveira apresentou a tese de que não se pode comprovar, na conduta do acusado, a intenção de estuprar, a capacidade de perceber que Mariana não poderia consentir.

A audiência foi gravada e mostra como as vítimas de violência são revitimizadas pela Justiça que deveria acolhê-las. O tratamento à denúncia de estupro feita por Mariana Ferrer escancarou o que nós do movimento feminista temos denunciado sistematicamente: o quanto o Judiciário brasileiro é machista, misógino, patriarcal.

O advogado de defesa de André Aranha, Cláudio da Rosa Filho, armou um show contra Mariana, chegando a falar de sua roupa e de sua conduta para “justificar” o estupro. Expondo e julgando fotos que nada tinham a ver com o caso, e usando uma série de questões morais, tentou justificar que Mariana tivesse consentido com o estupro. É inaceitável que juiz e promotor presenciem a humilhação e o assédio moral proferidos pelo advogado de defesa em relação à vítima e não façam nada, não se pronunciem nem interrompam o advogado.

Não existe estupro “sem querer”

A interpretação do caso pela promotoria afirmou, segundo citação da Folha de São Paulo, que “não restou provada a consciência do acusado acerca de tal incapacidade, tendo-se, juridicamente, por não comprovado o dolo do acusado”– o que o portal The Intercept Brasil resumiu como “estupro culposo” em sua reportagem. O caso revela a dificuldade que as vítimas de crimes de estupro enfrentam para ver os agressores punidos, especialmente quando eles são brancos e ricos. O que Mariana relata é que o estupro aconteceu numa situação em que estava absolutamente vulnerável, sem condições de tomar qualquer decisão. Estupro não é acidente e a palavra da vítima deve prevalecer.

Embora a sentença não tenha citado a classificação do “estupro sem intenção” ou “estupro culposo”, a discussão do tema é essencial para evitar que mais uma tese seja emplacada no Judicário para absolver estupradores no Brasil. Teses machistas estão sendo retomadas no Judiciário, como as de “defesa da honra” e “violenta emoção”. São muitas as teses que o Judiciário brasileiro tem aceitado para manter a impunidade dos agressores no Brasil. Isso só fortalece a cultura do estupro.

O estupro não é um exercício da sexualidade. O estupro é o exercício do poder dos homens sobre as mulheres. Serve para colocar as mulheres no lugar de subordinação, e foi isso que essa audiência tentou: colocar Mariana Ferrer num lugar de subordinação.

O recente caso do jogador de futebol Robinho apresenta uma situação semelhante: ele mesmo dizia que a mulher sequer tinha condição de ficar em pé ou se expressar, mas continuou dizendo que ela quis, e que aquilo não era problemático porque “nem era sexo”. Essa é a tese machista de que os homens não têm essa capacidade de discernir, e é muito perigosa porque aceita como consentimento situações em que o consentimento é impossível. Na nossa sociedade, há um acobertamento dessas situações de violência, propondo uma aceitação como se fosse “algo da vida”. Isso é a banalização do estupro.

Os dados recentes do Fórum Brasileiro de Segurança Pública são alarmantes: em 2015, acontecia um estupro a cada 11 minutos, um dado já muito preocupante; em 2019, a situação piorou muito, passando a um estupro a cada oito minutos. Além disso, nesse período de pandemia que nos exigiu aumentar o isolamento social, vimos diversos estudos apontando um aumento ainda maior dos números de estupro e violência contra a mulher no Brasil. O que o Estado tem feito para se responsabilizar por essa calamidade?

Denunciar não pode acarretar em mais violências

A situação de Mariana Ferrer escancara uma realidade gravíssima. Oestupro já é um crime subnotificado, pela dificuldade de denunciar e ser ouvida. Muitas meninas e mulheres sentem vergonha de denunciar e expor sua intimidade, sua vida pessoal, seus traumas. A dificuldade aumenta quando não há confiança com a Justiça. O que aconteceu com a Mariana é uma prova dessa dificuldade: a vítima torna-se ré, torna-se culpada e é exposta, enquanto o violador sai impune e preservado, porque a palavra dele detém mais poder e confiança.

São várias mulheres e meninas que passam a vida convivendo com o fantasma do estupro que viveram sem conseguir denunciar, exatamente por medo e por vergonha. É por isso que muitas mulheres só conseguem falar sobre o que viveram depois de muitos anos. A desresponsabilização do Estado gera ciclos profundos de violência, anos de silêncio e dor, e afeta até mesmo a saúde mental das mulheres.

No Judiciário, a injustiça tem gênero, classe e raça. É bastante perceptível que a Justiça hoje criminaliza e ataca aqueles que oferecem algum risco ao sistema, ao mesmo tempo que permite a violência contra esses setores. O sistema que protege André de Camargo Aranha (um empresário branco que pode pagar por um dos advogados mais caros de Santa Catarina) é o mesmo que permite que a Polícia Militar assassine e encarcere a população negra, violando de forma brutal os direitos humanos.

Os homens poderosos acusados de estupro têm uma segurança de que as mulheres não vão ter coragem de denunciar e que, mesmo que denunciem, seu dinheiro e posição social são argumentos suficientes para jogar a culpa nas mulheres, dizendo que elas que “não se comportaram como deveriam”. Esse tipo de postura conivente do Judiciário dá a certeza para esses homens de que eles podem continuar estuprando e violentando as mulheres. E esse é um problema da Justiça brasileira e de toda a sociedade.

Isso significa que a Justiça só irá se mexer se nos mobilizarmos. Até 2005, por exemplo, o casamento do estuprador com sua vítima anulava o crime no Brasil. Não fosse o avanço do movimento feminista sobre esse tema, talvez isso ainda vigorasse até hoje. São diversos os casos de violência contra a mulher em que a manifestação do movimento feminista foi crucial para que a Justiça avançasse e a violência recuasse.

Só o feminismo pode mudar a nossa realidade

Graças à luta do movimento feminista, temos avanços importantes para que haja justiça diante de casos de violência e estupro.

Já tivemos muitos avanços, como a aprovação da Lei Maria da Penha em 2003, que possibilitou toda uma gama de políticas públicas de enfrentamento à violência. Ainda assim, precisamos de uma série de políticas que consigam concretizar o que está escrito nas leis, e isso só é possível com o movimento feminista organizado e com a responsabilização do Estado. No período dos governos do PT na Presidência da República, tivemos uma Secretaria de Política para as Mulheres responsável por políticas e programas muito importantes contra a violência e por ampliação da autonomia das mulheres. Infelizmente, muitas delas foram desmontadas pelo governo golpista de Temer ou pelo Ministério da Família de Damares e Bolsonaro.

Todas essas experiências nos mostram que, além de um sistema de justiça efetivo, é preciso uma série de políticas públicas para combater a violência. Essas políticas precisam ser permanentes, e se concretizar na vida das pessoas: serem acessíveis em todos os cantos das cidades, terem orientação feminista, combaterem a violência de forma integral. Para isso, não basta a política nacional. Políticas no âmbito estadual e municipal são cruciais, tanto para garantir a efetivação das políticas e dos serviços públicos, quanto para relacioná-las com a realidade de cada território, enfrentando os desafios próprios e se articulando com as organizações de mulheres e comunitárias em cada lugar.

O caso de Mariana Ferrer é mais um que mostra a necessidade da luta feminista e a necessidade de pensarmos em políticas para o combate à violência contra a mulher, incluindo aí um amplo debate sobre como esses casos são tratados pela Justiça brasileira. Precisamos nos manifestar e exigir que esses casos sejam tratados com a seriedade que lhes é devida. Temos que lutar para denunciar esse caso, fazê-lo retornar para um novo julgamento, onde haja respeito e o combate à violência seja levado a sério. Não iremos aceitar teses machistas, criadas para manter a impunidade do estupro no Brasil.

(*) Sonia Coelho é militante da Marcha Mundial das Mulheres, assistente social e candidata a vereadora em São Paulo.

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Feminismo

Estupro e feminicio em Alto Paraíso de Goiás, na Chapada dos Veadeiros

A cidade conhecida nacionalmente pelo clima esotérico, energia positiva e atrai turistas que exalam positividade, não tem sido um lugar seguro para as moradoras locais

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Republicação do jornal Metrópoles, por Anderson Costolli

APolícia Civil de Goiás (GO) investiga um caso de violência sexual que deixou os moradores de Alto Paraíso (GO), um dos principais destinos turísticos de Goiás, revoltados. Uma mulher, identificada como Oigna Rodrigues da Silva, 43 anos, foi estuprada e, devido aos graves ferimentos provocados pela brutalidade, morreu. Ela chegou a ser socorrida e encaminhada para o hospital da cidade, mas não resistiu.

O caso ocorreu nessa quarta-feira (16/9). Oigna foi encontrada em casa, por uma equipe do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), bastante machucada e o Serviço de Atendimento Móvel Urbano (Samu) foi acionado. A vítima recebeu o atendimento na unidade de saúde, com adoção dos procedimentos e protocolos indicados às vítimas de violência sexual, mas veio a óbito na manhã dessa quinta-feira (17/9).

A Secretaria Municipal de Saúde do município de Alto Paraíso disse que os serviços de segurança pública foram notificados das lesões que a paciente apresentava, através de exame comprobatório de corpo delito preenchido pelo médico de plantão.

O prefeito de Alto Paraíso, Martinho Mendes da Silva, repudiou o caso de violência e disse, por meio de nota, que acionou a PCGO, “solicitando uma atuação severa e investigação rigorosa”.

Oigna era uma mulher bastante conhecida no município. Por ter sofrimentos psíquicos, era atendida pela equipe da Secretaria de Assistência Social e do CRAS havia 12 anos, segundo a prefeitura.

Segundo o boletim de ocorrência, a vítima tinha um atendimento marcado com a assistente social do CRAS para quarta-feira (16/9), mas a paciente não compareceu. Desconfiada, uma equipe foi até a casa da mulher, que não atendeu a porta. Pela janela, uma das assistentes sociais avistou os pés de Oigna, que estava caída no chão.

Com a ajuda de uma vizinha, a funcionária do CRAS conseguiu entrar na casa de Oigna e a encontrou caída, de bruços, com vários ferimentos no rosto e com muito sangue no chão. “Ela estava sem consciência, sangrando, porém, respirando de forma ofegante”, consta no boletim.

Ao chegarem ao local, os atendentes do Samu fizeram os primeiros socorros e verificaram que o sangue na roupa da vítima já estava seco, o que indicava que os ferimentos haviam ocorrido tinha algum tempo.

Os sinais de violência sexual só foram identificados no hospital, no momento em que os funcionários da unidade davam banho em Oigna. “Ela possuía sinais de agressão física no tórax, seio, e também laceração na vagina, em decorrência de uma violência sexual”, diz o documento. Oigna aguardava pela transferência para um hospital em Goiânia, quando teve uma parada respiratória e faleceu.

Delegado da Polícia Civil de Goiás à frente do caso, Danilo Meneses diz que o crime foi cometido com requinte de crueldade. “Já identificamos um suspeito e pretendemos dar uma resposta à sociedade o quanto antes. O crime é realmente chocante. Inadmissível”, disse o delegado.

“Justiça por Oigna”

Nas redes sociais, um coletivo de mulheres de Alto Paraíso clama por segurança, uma vez que ninguém foi preso. O grupo organiza, ao menos, duas manifestações e exigem respostas das autoridades que investigam o caso.

Nesta sexta-feira (18/9), às 17h, ocorre a Marcha Justiça por Oigna, com concentração na Praça do Canãa. A orientação é que todas as mulheres compareçam ao protesto de roupas pretas e levem velas.

Uma nova manifestação está marcada para a próxima segunda-feira (21/9), desta vez em frente à Prefeitura Municipal de Alto Paraíso. O ato Justiça por Oigna começa às 10h.

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Belo Horizonte

A ciranda das mulheres que percorre o Brasil em podcast

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Texto: Lucas Bois
Revisão: Ágatha Azevedo

Escutar notícias, ouvir uma narração e ser levado por uma trilha sonora… O que antes poderia ser um programa de rádio, hoje talvez seja um episódio de podcast. Esse fenômeno que invadiu a internet há poucos anos, continua em constante crescimento no número de ouvintes e se expande também na variedade de assuntos oferecidos. Atualmente, grande parte dos temas de podcasts estão relacionados à pandemia da COVID-19 ou ao contexto sócio-político decorrente do bom ou mau enfrentamento dos governos a essa crise mundial sanitária. No nosso país, a pandemia escancara as desigualdades ao evidenciar os problemas sociais que separam as classes econômicas da população.

Diante desse contexto, as jornalistas Raquel Baster e Joana Suarez decidiram mergulhar no mundo do podcast para contar histórias de mulheres brasileiras que enfrentam a pandemia, além dos desafios diários vividos cotidianamente. “A gente tem certeza que as mulheres sempre tem as melhores soluções. Ao reunir essas histórias, trazemos muitas ideias e inspirações, formando uma grande ciranda. Daí veio o nome do podcast: Cirandeiras“, conta Joana.

Para conhecer melhor esse espaço de webrádio e feminismo, os Jornalistas Livres fizeram um bate-papo com as jornalistas que contam sobre o processo de produção, a pandemia e a relação desse projeto com a democratização da comunicação.

Como começou

Raquel Baster e Joana Suarez já dividiam afinidades pelas pautas feministas e bastou apenas uma semana de quarentena para que colocassem o projeto do podcast em ação. Joana, que vem do jornalismo de redação, conta que já vinha se aproximando da rede de podcasts, refletindo sobre a acessibilidade do áudio e seu poder de democratizar: “A maioria dos textos que eu faço são textos enormes e tenho a certeza que muita gente não lê, principalmente as mulheres sobre quem eu falo. O áudio me atraía muito porque leva as pessoas a imaginarem, criar cenários e ir para outra dimensão. Agora na pandemia onde as pessoas estão confinadas, o podcast virou uma companhia, uma forma de sair de casa.”

Já Raquel trouxe ao universo do podcast, sua experiência com a comunicação popular: “Eu sempre trabalhei muito com rádio comunitária e me interesso por essa forma de comunicação que está mais próxima das pessoas. Por mais que ainda seja um novo tipo de mídia, o podcast traz as características do rádio, como as histórias contadas através de uma narração.”

Como é produzido

Muitas vezes, quem escuta um podcast não imagina o que pode estar por trás de sua produção. Segundo as jornalistas, a primeira coisa a fazer é pensar no tema e escolher as mulheres para as entrevistas, por elas chamadas de “cirandeiras”.

“Geralmente o episódio tem a ver com uma pauta que já trabalhamos anteriormente e assim, procuramos mulheres que já tivemos contato. Por coincidência, toda vez que decidimos uma pauta, acontece algo nacionalmente que se conecta ao programa.” Joana lembra que o episódio recente Pandemia na internet sobre segurança digital foi ao ar na mesma semana em que o Senado brasileiro discutia o projeto de lei que combate fake news, enquanto outra discussão acontecia nas redes sobre a exposição de dados pessoais dos usuários do aplicativo FaceApp.

Após o primeiro contato, elas fazem uma pesquisa sobre a cirandeira, enviam as perguntas e dão algumas dicas à entrevistada de como fazer uma boa gravação utilizando o próprio WhatsApp. Como essa orientação, muitas vezes, não é suficiente, nem sempre os áudios tem a melhor qualidade, “mas na pandemia tá tudo justificado”, comenta Joana.

Com as respostas da entrevistada, o roteiro chega a ter mais de 10 páginas e leva de 20 a 30 horas para sua elaboração. A cada episódio, uma delas toma à frente a função de escrever o roteiro, incluindo referências pessoais, e em seguida, a parceira acrescenta a sua parte. “A gente percebe que às vezes um tema muito comum para uma, pode ser muito complexo para a outra. A gente vai se complementando para facilitar o entendimento de quem escuta”, conta Raquel.

Depois do roteiro, vem a hora da gravação que exige algumas preparações, como escolher um horário silencioso do dia para gravar, desligar a geladeira e armar um pequeno estúdio caseiro com edredons. “O legal do podcast é que é uma mídia barata. Basta ter um celular, internet e gambiarras”, conta Joana dando risadas.

Retorno dos ouvintes

As jornalistas contam que 75% das pessoas que ouvem o podcast são mulheres e pertencem ao grupo social que elas convivem. Além do desafio de expandir a rede de ouvintes, elas relatam que ainda é uma grande dificuldade fazer com que o podcast retorne às pessoas entrevistadas e a outras mulheres que não estão acostumadas a esse tipo de mídia.

Raquel conta que a cirandeira Lia de Itamaracá, entrevistada no episódio Pandemia na Ilha, só pôde escutar o podcast após seu produtor viajar até a ilha onde mora para mostrá-la pessoalmente em seu celular. Lia é uma das mulheres brasileiras que ainda não fazem parte dessa grande rede de internet em 2020.

Um infográfico produzido pelo site iinterativa utilizando as fontes do IBOPE, Spotify Newsroom e ABPod, mostra que cerca de 45% do público dos podcasts é formado por homens, do sudeste do país, que pertencem às classes A e B e tem entre 16 e 24 anos. Segundo a pesquisa feita em 2019, 32% dos entrevistados nem sabiam o que é um podcast.

Se o podcast ainda é limitado a uma pequena parcela da população, o WhatsApp talvez possa ser um lugar mais democrático para a sua difusão. As jornalistas contam que decidiram fazer os episódios em formatos pequenos de até 30 minutos para conseguir enviar pelo aplicativo de mensagens e garantir que o podcast alcance o maior número de pessoas.

Democratização da comunicação

Para a jornalista Raquel Baster, é inevitável discutir o alcance dos podcasts sem pensar na democratização dos meios de comunicação no Brasil. Apesar do surgimento das novas mídias, grande parte das informações veiculadas é controlada por um conglomerado de grandes empresários que atendem os interesses privados dessa própria elite.

Segundo ela, “não adianta inventar a roda do podcast, sem falar da estrutura da comunicação no Brasil. Para tornar (a comunicação) mais acessível, precisamos discutir a concentração midiática. A internet ainda não é acessível para grande parte da população brasileira. Precisamos que o maior número de pessoas tenham acesso, mas que possam também alcançar os meios de produção.”

No episódio sobre trabalhadoras rurais, a entrevistada Verônica Santana fala sobre a dificuldade das agricultoras em conseguir se comunicar durante a pandemia, visto que o trabalho sempre foi presencial. “A gente tem muita dificuldade, tanto no domínio dessas ferramentas, como no desafio de que a internet não funciona na maioria dos nossos territórios rurais. No campo, a internet ainda não é uma realidade.”, diz Verônica.

Segundo a pesquisa TIC Domicílios, apenas 50% da população rural tem acesso a internet e esses números podem diminuir ainda mais de acordo com o recorte social e econômico.

Por outro lado, Joana revela seu otimismo no poder das novas mídias: “Acho que o podcast vai se democratizar como aconteceu com o Instagram. Quando a gente poderia imaginar ter acesso a sotaques das pessoas do sertão do Cariri?” Joana se refere ao podcast BUDEJO, de Juazeiro do Norte, e cita ainda o Radionovela produzido por alunos da UFPE em Caruaru, no agreste pernambucano, que narra em formato de radionovela O Alto da Compadecida em Tempos de Pandemia, adaptação da obra de Ariano Suassuna.

Para onde vai essa Ciranda

O podcast Cirandeiras teve início durante a pandemia, portanto grande parte dos seus episódios tem esse tema como contexto. No entanto, as jornalistas Raquel Baster e Joana Suarez pretendem continuar os episódios futuramente, indo a diferentes locais do Brasil para entrevistar de perto as mulheres que conduzem “as cirandas”.

Os episódios das Cirandeiras estão disponíveis nas plataformas mais conhecidas de podcast e tem a cada quarta-feira um novo episódio. Também estão presentes no Instagram, onde ocorrem as lives com as outras mulheres dentro das temáticas dos programas.

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