Do coletivo Transforma MP
Por Natália Ribeiro e Yashmin Baiocchi, na Revista do IBCCRIM.
Certa manhã, Joseph K.(1) foi surpreendido por autoridades que lhe atribuíram a prática de um crime. Sem saber do que se tratava, a personagem de Franz Kafka é atropelada por um sistema inquisitório em que o acusado não vislumbra outra alternativa a não ser aderir ao status quo dominante e assumir como própria a conduta delitiva a ele imputada.
No Brasil, com a consagração do Processo Penal acusatório, tal situação é inconcebível. O sistema de justiça criminal próprio de um Estado Democrático de Direito e enraizado no sistema de civil law exige positivação de direitos fundamentais inalienáveis e indisponíveis, assegurados a todos, sem qualquer distinção.
Mais precisamente no artigo 5º, LIV, do Diploma Constitucional, há o mandamento de que ninguém será privado de sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.
Este, que na concepção de Uadi Lammêgo Bulos (2015, p. 332) é classificado como um sobreprincípio, e, conforme asseverado pelo autor, “funciona como meio de manutenção dos direitos fundamentais. Sua importância é enorme, pois impede que as liberdades públicas fiquem ao arbítrio das autoridades (…)”.
Assim, o due process of law é o canal através do qual as demais garantias constitucionais criminais se afirmam. Nesse aspecto, o Supremo Tribunal Federal já reconheceu a indisponibilidade da prerrogativa do contraditório e da ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.(2)
Contudo, com a importação do plea bargain, oriundo de um país de common law eque possui a maior população carcerária do planeta, vislumbra-se a assustadora possibilidade de exercício do jus puniendi sem que tenha havido ao menos o oferecimento da denúncia pelo Ministério Público.
É cediço que o artigo 129, I, da Constituição Cidadã, ao instituir a competência privativa do Parquet de promover a ação penal, fundamenta a sistemática da obrigatoriedade do processo que ainda prevalece na doutrina e na jurisprudência. Assim, para que alguém seja submetido a qualquer sanção de natureza penal, mormente em caso de restrição da liberdade, seria imprescindível a prestação jurisdicional.
Contudo, com a inserção do acordo de não-persecução penal no Brasil, inicialmente e ainda mediante resolução do Conselho Nacional do Ministério Público, houve verdadeira relativização das garantias à liberdade, à propriedade e, sobretudo, ao devido processo legal.
Quase que imediatamente após a edição da resolução 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público, houve a propositura de duas ADIs (5790(3) e 5793(4)) no Supremo Tribunal Federal, cujos questionamentos precípuos consistiam na exclusão do crivo do Judiciário e à inovação legislativa do Conselho.
A primeira crítica foi sanada pela resolução 24/2018, que previu a submissão do acordo ao juízo competente. Quanto à suposta inconstitucionalidade formal, o Projeto de Lei Anticrime, apresentado pelo Ministro Sérgio Moro, intenta inserir a justiça negocial nos futuros artigos 28-A e 395-A, ambos no Código de Processo Penal.
Em verdade, pouco importa se a aplicação da medida se dará através de resolução ou de lei ordinária; o cerne da questão reside no fortalecimento da política de criminalização da pobreza.
Um dos pressupostos para a efetivação do acordo de não-persecução consiste na confissão detalhada do delito. Claramente, o objetivo central é punir, a fim de sustentar, perante a sociedade, a falsa ideia de efetividade penal. Não importa a quem se puna, desde que se puna alguém.
Conforme demonstrado no Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), em junho de 2016 havia mais de 726.000 (setecentas e vinte e seis mil) pessoas encarceradas no Brasil, contingente este que, em decorrência da política criminal implantada, tende a aumentar a cada ano.
Em caso de aprovação do Projeto de Lei Anticrime e da aplicação do “acordo” de não-persecução, ao acusado, se for o caso, nos termos do que dispõe o artigo 395-A, poderá ser oferecida a restrição imediata da liberdade, com renúncia ao processo e aos recursos inerentes a este, em nome da celeridade processual.
Ainda de acordo com o Infopen, cerca de 54% da população carcerária brasileira é constituída por jovens de até 30 anos, 64% por negros e 51% por pessoas que não completaram o ensino fundamental. Além da extrema desigualdade social, da precariedade do ensino público e do racismo enraizado na sociedade, também se deve atribuir à defesa técnica ineficiente grande parcela desta realidade.
No vindouro artigo 28-A, a ser inserido no Código de Processo Penal, há, em seu § 4º, menção expressa à necessidade de que o acordante seja inquirido pelo promotor na presença de advogado. Ocorre que, conforme anteriormente mencionado, os investigados “padrões” não dispõem de recursos financeiros suficientes para custear uma defesa minimamente satisfatória.
Aqui, a interiorização da Defensoria Pública mostra-se, até então, a única alternativa capaz de equiparar tecnicamente defesa e acusação. A nomeação de defensores, salvo raríssimas exceções, visa apenas “tapar lacunas” impostas pela legislação, e não satisfaz a exigência de efetividade da defesa técnica oferecida pelo Estado ao réu.
Ademais, o próprio acusado é induzido a acreditar que está sendo, de fato, defendido. A aplicação do plea bargain no Brasil só seria positiva se ao menos houvesse possibilidade de, no caso concreto, frear a arbitrariedade estatal viabilizada através de um Código inspirado no sistema ditatorial italiano.
Outro ponto problemático da proposta consiste nos casos de inadmissibilidade da justiça negociada, previstos também no artigo 28-A, § 2º, do Projeto. Já no inciso I, consta a primazia do acordo de não-persecução sobre o benefício da suspensão condicional do processo.
A suspensão condicional do processo, regulada pelo artigo 89 da Lei 9.099/1990, consiste na paralisação da ação penal após o recebimento da denúncia pelo juízo competente. A grande vantagem do instituto em detrimento do acordo de não-persecução penal reside em já se ter prova da materialidade delitiva e indícios suficientes de autoria, condições indispensáveis à apresentação da exordial acusatória.
Caso haja a implementação da justiça negociada, nos exatos termos do projeto, os referidos requisitos serão dispensados, sendo suficiente a existência de inquérito policial instaurado em desfavor do investigado.
Assim, mesmo que não haja materialidade e/ou indícios de autoria, ao promotor de justiça será assegurada a possibilidade de oferecimento do acordo ao investigado, que, sem conhecimento técnico e assistência de um profissional disposto a analisar a causa, acaba por ceder ao constrangimento estatal e confessar a prática de um crime do qual não se tem qualquer prova. Seria o retorno do status da confissão como “rainha das provas”.
Já no inciso II do artigo 28-A, § 2º, tem-se a positivação da Teoria do Etiquetamento Social, também conhecida como Labelling Approach Theory, ao reforçar o estigma de outsider daquele que praticou uma conduta desviada, ao invés de se preocupar em interromper a carreira criminal do indivíduo. Nesse contexto, as condutas desviantes parecem ser alimentadas pelas agências de controle designadas para inibi-las (SCHECAIRA, 2004).
Destarte, ao prever que a justiça negocial não alcançará aqueles que sejam criminosos habituais, reiterados ou profissionais, o projeto deixa à discricionariedade do Parquet a rotulação do agente como delinquente.
Frisa-se que o referido inciso não trata de indivíduos que já estejam sendo processados ou que possuam condenação transitada em julgado; em alguns casos, bastará que haja um Termo Circunstanciado de Ocorrência para que o agente seja rotulado como criminoso habitual.
Evidente, portanto, que o Projeto de Lei Anticrime está eivado de inconstitucionalidade material, residente na possibilidade de celebração de um acordo em que se renuncie ao processo e a todas as garantias inerentes a ele, cuja presunção será sempre de culpa, em total dissonância à Constituição Federal de 1988.
Nesses termos, a involução da política criminal brasileira acarretará incalculáveis danos à já lesionada estrutura social do país, pois, assim como Joseph K., aqueles que estiverem à margem do sistema serão engolidos por ele.
Natália Pimenta Ribeiro é discente da Faculdade de Direito da Universidade de Rio Verde UniRV. Estagiária do Ministério Público do Estado de Goiás.
Yashmin Crispim Baiocchi de Paula e Toledo é mestra em Direito, Relações Internacionais e Desenvolvimento pela PUCGO. Professora de Direito Penal da Universidade de Rio Verde – UniRV. Promotora de Justiça em Goiás. Integrante do Transforma MP.
Referências
Bulos, Uadi Lammêgo. Direito constitucional ao alcance de todos. 6 ed. rev. e atual. De acordo com a EC n. 83, de 5-8-2014, e os últimos julgados do STF. São Paulo: Saraiva, 2015.
BRASIL. Secretaria Nacional de Segurança Pública. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – Infopen, Junho/2016. Fórum Brasileiro de Segurança Pública, dezembro/2015; IBGE, 2016.
Schecaira, Sérgio Salomão. Criminologia. – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
Notas
(1) Joseph K., personagem da obra O Processo, de Franz Kafka, é um respeitável funcionário de um banco surpreendido por uma acusação que não lhe é formalmente apresentada e submetido ao autoritarismo da Justiça, sem que lhe sejam oferecidos meios de defesa, apesar de ser inocente.
(2) “O contraditório e a ampla defesa são princípios cardeais da persecução penal, consectários lógicos do due process of law. O devido processo legal é processo pautado no contraditório e na ampla defesa, no intuito de garantir aos acusados em geral o direito não só de participar do feito, mas de fazê-lo de forma efetiva, com o poder de influenciar na formação da convicção do magistrado”. (STF – HC: 116985 PE, Relator: Min. ROSA WEBER, Data de Julgamento: 25/03/2014, Primeira Turma, Data de Publicação: DJe-071 DIVULG 09-04-2014 PUBLIC 10-04-2014).
Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=((99459.NUME.%20OU%2099459.DMS.))%20NAO%20S.PRES.&base=baseMonocraticas>. Acesso em: 20 mar. 2019.
(3) Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf? seqobjetoincidente=528302>. Acesso em: 20 mar. 2019.
(4) Disponível em: http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf? seqobjetoincidente=5288159. Acesso em: 20 mar. 2019.