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América Latina e Mundo

Partidos de direita são favoritos nas eleições presidenciais de El Salvador deste domingo

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MURILO MATIAS PARA O SITE  OPERA MUNDI

Caso as urnas confirmem a previsão, o pleito segue para o segundo turno, tirando da disputa o candidato Hugo Martínez, do tradicional partido de esquerda Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN).

De acordo com o levantamento, a liderança está nas mãos de Carlos Calleja, com 27% da preferência dos eleitores, seguido por Najib Bukele, com 21%, Hugo Martínez 10% e Josué Alvarado, do recém-formado partido Vamos, que apresentou apenas 3% de intenção de voto. A pesquisa aponta ainda que 22% de eleitores não sabem em quem votarão.

Entre os dois favoritos a vencer as eleições, o destaque é o ex-prefeito de San Salvador, Nayb Bukele, candidato alheio às grandes siglas, que se comunica pelas redes sociais e não comparece aos debates. O fenômeno, somado às dificuldades da esquerda e a centralidade dos temas relativos à corrupção e segurança, fazem com que a disputa salvadorenha repita em muitos aspectos os fenômenos ocorridos na recente eleição brasileira que culminou na vitória de Jair Bolsonaro, incluindo a suspeita de manipulação de dados em redes sociais.

“Vejo muito positivamente a vitória de Bolsonaro por sua luta contra a delinquência, temos muitas coincidências nisso. Estamos a ponto de romper trinta anos do bipartidarismo da Arena e da FMLN com um jovem de 38 anos, dentro de um partido criado há apenas nove anos. O cansaço das pessoas abre espaço para Bukele e nossa sigla”, define Guillermo Gallegos, deputado da Grande Aliança pela Unidade Nacional (Gana), que posiciona a legenda como liberal em termos econômicos e conservadora no terreno dos costumes.

À semelhança da plataforma vencedora no Brasil, o ex-prefeito bem avaliado na maioria das pesquisas de intenções dos votos sintetiza o sentimento das ruas com frases de efeito como a que repete sobre a corrupção, “o dinheiro alcança quando ninguém rouba”, garante Bukele. “Nas redes sociais nota-se muito apoio, mas nas ruas não há muita propaganda. Esses eleitores formam uma maioria que discorda da realidade que aí está, mas desconhecem a história do país, o processo da guerra, do pós-guerra. Como os meios de comunicação culpam a esquerda por toda a desordem, eles repetem essa ideia, além das discordâncias que existem por parte de setores mais críticos em relação ao atual governo”, comenta o jornalista Carlos Roberto.

Apesar do apelo de Bukele junto aos mais jovens, em paralelo à plataforma que prega a modernização do Estado, seu grupo político agrada aos segmentos conservadores ao propor leis mais punitivas no parlamento e o reforço dos aparelhos de repressão. No entanto, o candidato da Grande Aliança pela Unidade Nacional parece ignorar o rigor que a legislação já apresenta em determinados assuntos, a exemplo do caso de mulheres acusadas de aborto cujas penas podem chegar a trinta anos de detenção – no início deste ano, a pressão de movimentos sociais e feministas foi decisiva para a liberação da jovem Imelda Cortez, presa após um aborto espontâneo depois de ser violada durante anos por seu padrasto.

Embora as cifras oficiais indiquem a diminuição do número de homicídios no último ano, segundo as estatísticas do Plano El Salvador Seguro, o predomínio das questões envolvendo o poder das pandillas das letras e dos números, como são chamadas as principais facções do crime organizado Mara 18 e Mara Salvatrucha, e a sensação de insegurança, dificultam que a gestão do presidente Salvador Sánchez Cerén projete sua agenda positiva. Ao longo da década em que a esquerda esteve no poder, o país figurou entre os que mais reduziram seus índices de pobreza devido ao aumento da renda do trabalho nas famílias mais pobres, de acordo com a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), apesar do salário mínimo de 300 dólares ser considerado insuficiente para as necessidades de primeira ordem.  

O resultado do projeto Ciudad Mujer, centros de referência espalhados pelo território para o atendimento médico, jurídico e de qualificação profissional para as mulheres, que contempla mais de dois milhões de cidadãs, destaca-se entre os pontos que qualificam a administração. Figura histórica da FMLN, Cerén, ex-guerrilheiro presente nos acordos de paz celebrados 27 anos atrás e que carrega junto o título de professor, comemorou a extinção do analfabetismo em 100 das 232 cidades do país e a entrega de 80 mil títulos de propriedade a campesinos.

“Desde 2009 com o triunfo do primeiro governo da FMLN começaram a se assentar as bases das mudanças estruturais a favor da população mais desprotegida com programas de pacotes agrícolas, a pensão universal para idosos (…) fortalecidos ainda mais no segundo governo. Isso não foi fácil diante da direita oligárquica de Arena e Gana que consideram os projetos sociais desperdício de dinheiro”, publicou em nota a Associação Nacional de Trabalhadores Agropecuários, recomendando a seus membros a continuidade da presente gestão.

Das zonas rurais do país ao posicionamento no cenário internacional, a autonomia em relação ao tema venezuelano, por exemplo, pode ser medida na presença do presidente Cerén na posse de Nicolás Maduro, a despeito do tom adotado pela maioria dos vizinhos na América Central. A canonização pelo Vaticano de Monsenhor Romero, assassinado durante o auge da repressão oficial contra os movimentos populares e guerrilheiros nos anos 1980 aparece como outro momento de relevância no ambiente externo.

“Não sou religiosa, mas vejo Monsenhor Romero, mais do que um religioso, um personagem que fez algo muito importante para El Salvador. A admiração que existe é por sua obra de dar a vida ao povo e defender valores de igualdade”, comenta a estudante Gabriela Herrera.

A difícil “remontada”

A terceira geração da FMLN representada pelo engenheiro e ex-ministro das relações exteriores Hugo Martinez terá muita dificuldade em conquistar o terceiro mandato consecutivo para o partido. Segundo a empresa Gallup, Sanchez Céren desagrada metade dos eleitores e a permanente denúncia de esquemas de corrupção atingindo integrantes da legenda, incluindo o ex-presidente Mauricio Funes, que encontra-se em asilo na Nicarágua alegando perseguição judicial, debilita as chances da legenda em viabilizar a “remontada” (virada). A situação marca absoluto contraste com a disputa de cinco anos atrás, quando Funes estava entre os presidentes mais bem avaliados da região.

“As pessoas não avaliam Cerén por suas obras, mas pela maneira como se expressa. Os meios de comunicação e as redes tinham clara tendência de ridicularizá-lo, tornando mais evidente os equívocos através de um desgaste sistemático de sua imagem. Por outro lado, a esquerda foi muito mal comunicadora de seus acertos”, contextualiza o professor Romeo Miguel.

A ascensão da direita foi sentida já nas eleições municipais e parlamentares de 2018 quando a Arena venceu 138 prefeituras contra 61 obtidas pela Frente. Na Assembleia Legislativa, os conservadores voltaram a ter maioria com a ocupação de mais da metade das 84 cadeiras. “Aprofundamos programas sociais que se tornaram emblemáticos como as unidades de Cidade Mulher, a reforma de saúde, a alimentação e uniforme escolar até o ensino médio, a gratuidade no ensino superior, a formação e especialização de 25 mil docentes. Além disso, apostamos no engajamento popular criando a secretaria de participação cidadã, transparência e anticorrupção para prestar melhores informações à sociedade. Essas políticas não existiam há dez anos, avançamos grandemente. O legado desse governo mudou a vida dos salvadorenhos”, defende a deputada da FMLN, Dina Argueta.

Apesar da avaliação da congressista, a permanente crítica ao estilo do presidente junto aos graves problemas econômicos é explorada pela oposição para insuflar a insatisfação. A migração de salvadorenhos rumo aos Estados Unidos segue como a única alternativa a milhares de famílias, muitas inclusive agregam-se às caravanas migratórias que ocorrem na região em direção ao norte. Embora o oficialismo alegue que o contingente de migrantes venha diminuindo, três milhões de compatriotas vivem nos EUA, a maioria enviando remessas que representam expressiva parcela da economia da nação centro-americana.

“Hugo tem boas ideias, mas ninguém quer mais a FMLN, desejam algo novo. Falta oportunidades para trabalhar, grandes empresas saíram do país causando muito desocupação. Os empregos disponíveis pagam somente o salário base de 300 dólares e somente para comprar a cesta básica são necessários mais de 100 dólares, razão pela qual muitas pessoas se endividam”, avalia a chefe de cozinha Cláudia Dominguez.

É nesse aspecto que se concentra a campanha do empresário Callejas, sócio da principal rede de supermercados do país. “Vote por el trabajo”, propõe o candidato que defende a instituição do ensino do inglês para qualificar a mão de obra e tenta se desvincular das críticas que envolvem o passado da Arena, rechaçada por parte da população que enxerga no partido o alinhamento com os interesses da elite nacional em detrimento das classes menos favorecidas.

“As últimas pesquisas pontuam que 40% da população não tem ideologia, é um dado que nos mostra uma mudança de paradigma no plano político. As soluções esperadas pela cidadania deixaram de ser ideológicas e são sobre o bem-estar, os resultados e as oportunidades”, observa a deputada Milena Mayorga, da Arena.

A esquiva de posicionamentos demarcados encontra eco no discurso entoado pelos correligionários de Bukele. “Essa eleição é a menos ideológicas de todas, Bukele vai governar sem ideologias”, afirma o deputado Oziris Meza (Gana). Apesar do esforço, nem todos se convencem com a estratégia especialmente em relação a Bukele, que saiu da esquerdista FMLN para outro campo partidário e sobre cuja campanha paira a suspeita de manipulação nas redes ligada à obtenção de falsos apoios.

“Para conseguir a candidatura não importou a Bukele alinhar-se com um partido de direita. Muitos que iam votar por ele desistiram por essa razão. Foi um ato de desespero”, descreve Dora Quintanilla, de San Salvador, cidade que concentra muitos eleitores de Bukele, prefeito lembrado por doar o salário que recebia e pela revitalização do centro histórico, dentre outras ações na área de infraestrutura.

Tragado pelo discurso que muitas vezes beira a despolitização, discussões de fundo perdem fôlego substituídos pela especulação acerca da religião dos candidatos e por mensagens de Whatsapp sem qualquer comprovação de veracidade dos fatos que expõem. Na outra ponta, temas que interessam ao coletivo como a ameaça de privatização de mananciais de água – utilizados largamente por grandes empresas de bebidas de forma predatória – e a urgência em aumentar o investimento do PIB em educação, atualmente estacionado em 3%, são ofuscados.

Na véspera da decisão, os debates e tentativas de convencimento se concentrarão na militância uma vez que o período oficial da campanha está encerrado. Com o desafio de transformar os tempos de paz iniciados com a pacificação da guerra civil em tempos sem medo e de justiça social, El Salvador volta às urnas a cumprir mais uma fase de sua ainda recente democracia.

A expectativa de confirmação da vitória pela direita e o sonho da virada pela esquerda interessa para além dos sete milhões salvadorenhos a toda comunidade latino-americana na estreia eleitoral do ano na região.

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América Latina e Mundo

Chilenos enterram a Constituição de Pinochet e começam um inédito (e incerto) processo Constituinte

Carta Magna produzida em 1980 era a base do modelo neoliberal chileno, que destruiu a Saúde, a Educação e a Previdência públicas

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Estátua equestre do general Manuel Baquedano, que liderou expedições contra os indígenas do sul, pintada de vermelho - Bárbara Carvajal (@barvajal)

A data 25 de outubro ficará marcada para sempre na história do Chile. Em 2019, foi o dia em que mais de 1,2 milhão de pessoas saíram às ruas para exigir um país mais digno. Um ano depois dessa manifestação, a maior do país, no dia 25 de outubro de 2020 os chilenos decidiram enterrar o último legado da ditadura de Augusto Pinochet: a Constituição de 1980.

Por Amanda Marton Ramaciotti, jornalista brasileira-chilena

No domingo, milhões de chilenos votaram em um plebiscito sobre escrever ou não uma nova Carta Magna, uma medida que nasceu como uma saída política à crise social iniciada em 2019. O resultado foi avassalador: 78,27% da população aprovou a iniciativa, contra 21,73% que a rejeitou.

Além disso, 78,99% dos votantes disse que quer que a nova Constituição seja redigida por uma Convenção Constituinte formada por 155 membros eleitos pela sociedade; versus um 21,01% que expressou que preferia uma Convenção Mista, formada por 172 membros, a metade deles legisladores e o restante constituintes. 

A comemoração durou horas. Em Santiago, milhares de pessoas foram a pé, de carro e de bicicleta em caravana até a avenida principal da capital e à praça central (antes conhecida como Praça Itália e agora, pelas manifestações, chamada popularmente de “Praça Dignidade”). Bandeiras do Chile e cartazes com as palavras “adeus, general” (em referência ao Pinochet) eram vistos em várias ruas.

Nova Constituição: chance de o Chile renascer - @delight_lab_oficial
Nova Constituição: chance de o Chile renascer – @delight_lab_oficial

A sensação era de um êxtase coletivo. “Ainda não consigo acreditar no que está acontecendo… Mais do que isso, é impossível dimensionar tudo que conseguimos”, me disse uma manifestante. Em um dos edifícios emblemáticos de Santiago, foi possível ler uma grande projeção com a palavra “Renasce”.  

“Para mim, é o começo de uma nova era”, comentou um jovem que estava comemorando os resultados do plebiscito.

Ele tem razão. Apesar de que a Carta Magna “do Pinochet” —escrita pelo advogado constitucionalista e ideólogo da direita chilena Jaime Guzmán, sofreu alterações durante a democracia, manteve vários dos seus aspectos principais. Ela continuou sendo a base do modelo neoliberal chileno que se adentrou na saúde, educação e sistema de aposentadoria, e também impedia grandes reformas estruturais pela exigência de um quórum de dois terços ou três quintos que, na prática, sempre foi muito difícil de ser alcançado.  

O novo ciclo

A decisão de escrever uma nova Carta Magna encerra um ciclo doloroso para milhares de pessoas que foram vítimas da ditadura do Pinochet, uma das mais sangrentas na América Latina, e também para tantas outras que até agora vivem em um país desigual devido, em grande parte, às disposições da atual legislação. O ciclo que começa agora é cheio de esperanças, mas também repleto de desafios.

O presidente Sebastián Piñera, quem em nenhum momento do processo deixou claro qual era o seu voto, disse domingo de noite que o plebiscito “não é o fim, é o começo de um caminho que juntos deveremos percorrer para escrever uma nova Constituição para o Chile. Até agora, a Constituição nos dividiu. A partir de hoje todos devemos colaborar para que a nova Constituição seja o grande marco de unidade, de estabilidade e de futuro do país”.

Ainda são poucas as definições que já foram tomadas sobre como será a assembleia constituinte. Sabemos que, em abril de 2021, os chilenos voltarão às urnas para escolher os 155 cidadãos que serão parte do processo. Sabemos que ela estará formada de forma paritária por homens e mulheres (algo inédito no país). Mas ainda falta uma série de decisões, como se poderão participar do processo pessoas que não estejam associadas a partidos políticos e se o órgão terá assentos reservados para os povos originários.

A assembleia contará com até 12 meses para redigir uma nova Carta Magna, cujas normas deverão ser aprovadas por dois terços dos integrantes. Esta será submetida a outro plebiscito, cuja participação será obrigatória.

Esse ponto é o que desperta mais dúvidas na sociedade. É que o plebiscito do domingo passado foi de caráter voluntário, e acudiram às urnas um total de 7,5 milhões de chilenos dos mais de 14 milhões habilitados para votar. Apesar de ter sido a participação mais alta da sociedade desde 2012, quanto o sufrágio começou a ser optativo no país, a votação do dia 25 de outubro não deixa claro qual será o resultado final se as 6,5 milhões de pessoas que não participaram no domingo votarem em 2022.

Mas, como dizem por aqui, isso é uma decisão para o Chile do futuro. O Chile do presente quer comemorar. E tem motivos de sobra para isso.

O estádio nacional, um dos maiores centros de tortura durante a ditadura, neste domingo foi um dos lugares que recebeu mais votantes - Bárbara Carvajal (@barvajal)
O estádio nacional, um dos maiores centros de tortura durante a ditadura, neste domingo foi um dos lugares que recebeu mais votantes – Bárbara Carvajal (@barvajal)

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Chile

Chilenos se preparam para um plebiscito histórico sobre manter ou dar adeus à “Constituição do Pinochet”

Chilenos estão ansiosos para o plebiscito, adiado desde abril por conta da pandemia

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Era uma demanda colocada por alguns setores da sociedade chilena há anos, mas foram os protestos de 2019 os que voltaram exigir a derrubada da Constituição de 1981, imposta pela ditadura militar de Augusto Pinochet. Agora, no domingo 25 de outubro, mais de 14 milhões de chilenos acudirão às urnas em um plebiscito histórico que decidirá se o país “aceita” (aprueba) ou “rejeita” (rechaza) uma nova Carta Magna. A votação foi pensada como um caminho político para aplacar a crise social que o Chile enfrenta.

Por: Amanda Marton Ramaciotti, jornalista brasileira-chilena

Os ânimos estão à flor da pele. Nos muros, nas redes sociais, na mídia praticamente não se fala de outra coisa. Não é para menos, já que o plebiscito, inicialmente marcado para o dia 26 de abril, foi atrasado pelo governo devido à pandemia. Além disso, acontecerá somente uma semana depois do primeiro aniversário do chamado “estallido social”, iniciado em 18 de outubro de 2019, quando milhões de pessoas saíram às ruas para exigir um país mais igualitário. Mas a sociedade chilena -como tantas outras na América Latina e no mundo- está profundamente polarizada e, apesar de as pesquisas dizerem que a maioria votará pelo “aceita”, nada está definido.

Foto: Pablo Gramsch / Instagram: @active_grounds


Por um lado, o “apruebo” reúne intenções diversas, que vão desde exigir uma mudança no modelo neoliberal chileno até entregar mais direitos às mulheres, aos índios e às diversidades sexuais.

Alejandra Saez, uma trabalhadora independente, me disse que vai aprovar porque “se necessita uma mudança imediata, apesar de que o resultado chegue com o tempo, tomar a decisão de transformar o sistema já é um grande avanço”. “Quero que as novas regras validem o bem-estar das pessoas e não os cofres dos outros. Que não nos sintamos atacados pelo sistema”, afirmou.

Já o bioquímico Francisco Pereira me explicou que votará “apruebo” porque considera que é necessária uma “mudança drástica na atual Constituição, já que apesar de que outorga direito a serviços básicos, em nenhum momento garante o acesso a esses serviços, deixando muitos recursos principalmente nas mãos do mundo privado. Além disso, foi escrita para um contexto de desenvolvimento de país determinado muito diferente do atual, e é bastante rígida, o que dificulta que ela seja adaptada às atuais necessidades do Chile”.

Nas campanhas eleitorais, também é possível ver que muitos dos que pedem uma nova Constituição querem reformar as instituições encarregadas da segurança pública, já que, em 2019, pelo menos 30 pessoas morreram, milhares ficaram feridas e o Chile foi cenário de graves violações aos direitos humanos no marco dos protestos sociais, segundo Human Rights Watch, a ONU, entre outros. De acordo com o Instituto Nacional de Direitos Humanos, 460 pessoas sofreram lesões oculares durante as manifestações devido ao uso excessivo da força policial. Delas, pelo menos duas ficaram completamente cegas.

Por outro lado, Natalia C. (que pediu não ser identificada) aposta pelo “rechazo” porque considera que “não há necessidade de escrever uma nova Constituição inteira para realizar as reformas que o país precisa”. Nas redes sociais, as pessoas que chamam a votar por essa alternativa também dizem temer que o Chile se transforme em um país “caótico” e/ou “esquerdista”.

Além disso, muitos sinalizam que votar “apruebo” seria dar um aval à destruição de patrimônio que ocorreu no marco das mobilizações sociais. É que o metrô de Santiago, várias igrejas, ruas e estátuas foram parcialmente destruídos e/ou incendiados desde outubro de 2019, mas não há informação detalhada disponível sobre quem foram os responsáveis de cada um desses atos.

Foto: Pablo Gramsch / Instagram: @active_grounds


Muitos ainda estão indecisos. O microempresário Javier Baltra comentou que achava melhor votar nulo porque “ambas as opções estão cheias de problemas. Aprovar pode ser sinônimo de um Estado maior, e eu acho isso problemático para a economia. E rejeitar é deixar tudo como está até agora e não sei se isso é uma boa ideia”.

Além de escolher entre as opções “apruebo” ou “rechazo” uma nova Constituição, os chilenos devem votar se desejam que a eventual Carta Magna seja escrita por uma Convenção Constitucional formada por 155 constituintes eleitos ou por uma Convenção Mista de 172 membros (metade legisladores e metade cidadãos eleitos).


A LEI ATUAL


Qualquer pessoa que não conheça a história do Chile provavelmente se surpreenderá ao saber que um país como este tenha ainda uma Constituição que foi escrita na época da ditadura militar. “Nossa, mas é um país tão desenvolvido”; “como assim?”; “sério?” foram alguns dos comentários que recebi de amigos brasileiros quando contei sobre o que está acontecendo agora.


A Constituição atual foi aprovada em um questionado plebiscito realizado no dia 11 de setembro de 1980, em plena ditadura do Pinochet, quando milhões de chilenos viviam sob o medo da repressão, sem registros eleitorais e com os partidos políticos dissolvidos.
O texto foi escrito pelo advogado constitucionalista Jaime Guzmán, um dos maiores ideólogos da direita chilena, e que foi assassinado por um comando de ultraesquerda em 1991.

Ele foi escolhido por uma comissão designada pela ditadura. Posteriormente, a redação contou com a revisão e o apoio do Conselho de Estado e a Junta Militar, composta pelos máximos chefes do Exército e o diretor da polícia, que exercia como “poder legislativo”. Guzmán criou uma série de regras muito difíceis de alterar para perpetuar seu modelo econômico e político.

Como ele mesmo disse quando escrevia a Constituição, sua ideia era que, se os adversários chegassem a governar, eles se veriam “obrigados a seguir uma ação não tão distinta ao que alguém como nós gostaria (…) que a margem seja suficientemente reduzida para fazer extremamente difícil o contrário”.

Foto: Pablo Gramsch / Instagram: @active_grounds


Para realizar reformas à Carta Magna, Guzmán detalhou que é necessário alcançar um quórum de dois terços ou três quintos, segundo o caso, algo que, na prática, tem sido praticamente impossível de conseguir, porque nem o oficialismo nem a oposição conta com essa quantidade de votos.

Essa Constituição também instaurou um modelo econômico, político e social neoliberal, que se adentrou na educação e na saúde privada e um sistema de aposentadoria conhecido como AFP baseado na poupança individual e que no ano passado entregou aposentadorias pelo valor de 110.000 pesos chilenos (uns US$ 140). Esse sistema, hoje sumamente questionado pela população chilena, foi elogiado pelo Ministro de Economia do Brasil, Paulo Guedes, em várias ocasiões.

Se bem que o texto legal não estabeleça especificamente que a saúde, a educação ou o sistema de aposentadoria devam ser privados, na prática, sim, impõe princípios que limitam a ação do Estado e promove a atividade privada nesses setores. Por exemplo: não existe no Chile nenhuma universidade que seja gratuita.

Segundo analistas, a Constituição atual também é hierárquica e desconecta a cidadania do poder político, porque não inclui muitos mecanismos de participação.

Ao longo da sua história, sofreu duas modificações: a primeira, em 1989, ano do fim da ditadura, quando foi derrogado um artigo que declarava “ilícitos” a grupos que realizassem “violência ou uma concepção da sociedade do Estado ou da ordem jurídica de caráter totalitário ou fundada na luta de classes”. Outra, em 2005, quando depois de um grande acordo político o presidente socialista Ricardo Lagos conseguiu alterar outros aspectos, como que os comandantes em chefe das Forças Armadas passassem a estar subordinados ao poder civil, e a eliminação de senadores designados e vitalícios. Isto permitiu que em 2006 (há 14 anos!) o Senado fosse totalmente conformado por membros de eleição popular.

Agora, se a opção “apruebo” ganhar o plebiscito, o texto não só será modificado: a sociedade poderá dar adeus à chamada “Constituição do Pinochet”. Sem dúvidas, uma decisão histórica.

Veja também: Chileno preso no RIR: desembargador reconhece ilegalidade da prisão

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Bolívia

Veja a tradução da declaração de Evo Morales

Declaração de Evo Morales, ex-presidente da Bolívia, dada em 18 de outubro, dia da eleição presidencial após o golpe.

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DECLARAÇÃO DE IMPRENSA DO EX-PRESIDENTE EVO MORALES
Buenos Aires, 18 de outubro de 2020

  1. Desde a cidade de Buenos Aires, neste dia histórico, domingo, acompanho nosso povo em seu compromisso com a pátria, com nossa democracia e com o futuro de nossa amada Bolívia, de exercer seu direito ao voto em meio aos acontecimentos em nosso País.
  2. Saúdo o espírito democrático e pacífico com que se desenvolve a votação.
  3. Diante de tantos rumores sobre o que vou fazer, venho declarar que a prioridade é exclusivamente a recuperação da democracia.
  4. Quero pedir a vocês que não caiam em nenhum tipo de provocação. A grande lição que nunca devemos esquecer é que violência só gera violência e que com ela todos perdemos.
  5. Por este motivo, conclamo as Forças Armadas e a Polícia a cumprirem fielmente o seu importante papel constitucional.
  6. Diante da decisão do Tribunal Supremo Eleitoral de suspender o sistema DIREPRE (Divulgação de Resultados Preliminares) para ir diretamente para a apuração oficial, informo que, felizmente, o MAS possui seu próprio sistema de controle eleitoral e que nossos delegados em cada mesa irão monitorar e registrar cada ato eleitoral.
  7. O povo também nos acompanhará nesta tarefa de compromisso com a democracia, como o fez tantas vezes, situação pela qual somos gratos.
  8. É muito importante que todas e todos os bolivianos e partidos políticos esperemos com calma para que cada um dos votos, tanto das cidades como das zonas rurais, seja levado em conta e que o resultado das eleições seja respeitado por todos.
  9. Neste domingo, no campo, nas cidades, no altiplano, nos vales, nas planícies, na Amazônia e no Chaco; em cada canto de nossa amada Bolívia e de diversos países estrangeiros, cada família e cada pessoa participará com alegria e tranquilidade na recuperação da democracia.
  10. É no futuro que todos os bolivianos, inclusive eu, nos dedicaremos à tarefa principal de consolidar a democracia, a paz e a reconstrução econômica na Bolívia.
    Viva a Bolívia!
    Evo Morales

Tradução: Ricardo Gozzi /Jornalistas Livres

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