A palavra que mata

O cerco a Getúlio

Meu tio Marcos adorava Getúlio Vargas. Aos dezoito anos de idade, recém chegado ao Rio, saído de uma cidadezinha de Minas, viu seu salário mínimo dobrar. Talvez não prestasse atenção à criação das leis do trabalho, da Petrobrás e do BNDES, nem tampouco aos interesses, locais e mais ao norte, que tais atos contrariavam, mas sentiu no bolso uma folga desconhecida na sua vida mista de estudante e trabalhador.

Estou certo, no entanto, que meu tio e muitos outros perceberam que a perseguição a Getúlio fora executada pelo bloco capitaneado pela imprensa que não dera tréguas até sua morte, como conta Jânio de Freitas:

Desde 6 de agosto, dia seguinte ao atentado [a Lacerda e em que morreu um major], o país passou a viver em torno da exaltação concentrada na República do Galeão, e em crescendo permanente sob a agitação furiosa feita por Lacerda.

Logo acusado do crime por Lacerda, Getúlio ficou indefeso, objeto de um ódio coletivo que se propagava sem limites: monolíticos, a imprensa, a incipiente TV e o rádio, mais do que se aliarem à irracionalidade, foram seus porta-vozes sem considerar as previsíveis consequências para o Estado de Direito.

Após o anúncio do suicídio de Getúlio:

A redação de “O Globo” foi atacada, carros do jornal foram destruídos, o “Jornal do Commercio” teve sua oficina invadida, vários dos 17 jornais foram alvos da massa. Lojas, portarias, ônibus, bondes, automóveis, carros da polícia em fuga, a Câmara dos Deputados e o Senado, as cercanias dos guarnecidos ministérios do Exército e da Marinha, tudo devia pagar pelo abandono em que Getúlio fora deixado por todos, e pela própria massa.

No dia 23, o Brasil estava endoidecido de ódio a Getúlio. No dia 24, enlouquecido de paixão e saudade.

O golpe de 1964

Ainda me lembro de, aos 10 anos de idade, de mãos dadas com minha mãe e meu pai, “marchar com a Família, com Deus, pela Liberdade”, em torno da igreja da matriz de São José dos Campos. A Marcha era um dos preparativos para o golpe que se avizinhava. Não sei dizer se meus pais se sabiam manipulados pela imprensa, contudo, certamente não compactuavam com o ideário conservador de direita que tomaria corpo na sequência.

E novamente, lá estava a imprensa, como narra Emir Sader:

A verdade é esta: no momento mais importante da história brasileira recente, a imprensa ficou do lado da ditadura e contra a democracia.

O golpe militar de 1964 foi mais um produto da crise de desestabilização política que os EUA, aliado a forças locais, promoveram na América Latina. Ele se inscreve na lista dos golpes da Guatemala (1954), do Brasil contra o Getulio (1954), da Argentina contra o Peron (1955), entre tantos outros.

Eles foram sempre arquitetados como se fossem levantamentos civis espontâneos contra governos “despóticos, “cripto comunistas”, isolados por movimentos democráticos de resistência na defesa das liberdades ameaçadas. Depois soubemos que são táticas arquitetadas pelas teorias de contra insurgência, que seriam aperfeiçoadas e aplicadas em outros países da própria região, como no Uruguai, no Chile, na Argentina.

É uma engrenagem indispensável a ação da mídia, para campanhas insidiosas contra os governos, levantando falsas acusações, mentindo, forjando circunstâncias e disseminando um clima de terror, de pânico, entre a população.

Que a democracia estaria em perigo, que as liberdades estão acabando, que a liberdade de expressão esta sendo mortalmente atacada, que a liberdade de culto pode acabar, que a educação estaria sendo alvo de campanhas comunistas de formação da juventude, etc. etc.

A imprensa foi um instrumento ideológico na preparação do golpe e da instalação das ditaduras militares. No Brasil, convocava as Marchas com a Família, com Deus, pela Liberdade, distorcia as políticas do governo, pregava abertamente o golpe militar nos seus editorais, apelava ao fantasma do “comunismo”, servindo os ideias da Doutrina de Segurança Nacional na guerra fria.

E fazia tudo – como se conhece hoje pelo acesso que se tem aos jornais daquela época – como se a democracia estivesse em perigo e o golpe militar, que instaurou o regime ditatorial mais selvagem que o país conheceu, fosse a reinstauração da democracia. Em nome dos riscos que correria a democracia, atuaram abertamente para que a democracia brasileira fosse destruída.

Sem a imprensa, não teria sido possível a criação do clima de desestabilização, indispensável à intervenção dos militares, como para impor a ordem em uma situação que a imprensa propagava que fosse de falta de controle institucional, de uma situação supostamente pré-revolucionária.

A imprensa foi a porta voz dos projetos de ruptura da democracia e de apelo aos militares para que intervissem. Ela saudou o golpe como a salvação da democracia, se pronunciou abertamente a favor da instauração da ditadura e apoiou a repressão como se fizesse parte desse esquema de salvação. Sem a imprensa, não teria sido criado o clima de desestabilização que tornou realidade o golpe e a ditadura militar.

São crimes contra a democracia, que mancharam irreversivelmente os órgãos de imprensa que deles participaram. No momento mais importante da historia brasileira recente, a imprensa ficou do lado da ditadura e contra a democracia.

Diretas Já

Aniversário de São Paulo de 1984 e lá ia eu de camisa amarela pela rua, lembrando da canção de Chico Buarque pelas diretas: “quando vi todo mundo na rua de blusa amarela, eu achei que era ela puxando o cordão”. Usávamos um peça de roupa amarela, não era a camisa da CBF. Embora ainda pairasse no ar certo medo de repressão pelo regime militar, formamos uma massa de mais de 300 mil pessoas na Praça da Sé. A Rede Globo, em seu jornal noturno disse que as pessoas estavam comemorando o aniversário de São Paulo. Ali surgiu o slogan: “o povo não é bobo, abaixo a rede Globo”.

Como narra Najla Passos:

“Quando a multidão ocupou a Praça da Sé, a Globo optou por maquiar o ato e alterar suas finalidades. No telejornal mais visto do país, o apresentador Sérgio Chapelin fez a seguinte chamada: “A cidade comemorou seus 430 anos com mais de 500 solenidades. A maior foi um comício na Praça da Sé””.

Conclui ela:

“a hostilidade com que os manifestantes tratavam a emissora só fazia aumentar. Foi nesta época que os protestos de rua passaram a bradar o slogan ouvido até hoje: “O povo não é bobo, abaixo a Rede Globo”. Foi nesta época também que os repórteres da Globo passaram a ser achincalhados nas ruas”.

O debate entre Lula e Collor

Depois de longos e cinzentos anos vivíamos uma esperança rejuvenescedora com um candidato à presidência identificado com as lutas do povo brasileiro: Lula passara ao segundo turno da eleição presidencial de 1989. A última eleição direta havia sido em 1960. Ele e Collor desbancaram Ulisses, Covas, Brizola, Maluf, entre outros. A campanha foi recheada de golpes baixos contra o candidato petista, como a declaração do presidente da Fiesp de que milhares de empresários deixariam o país se Lula vencesse, como o caso Miriam Cordeiro, ex-namorada de Lula com quem tivera uma filha, como a aparição de um dos sequestradores de Abílio Diniz com a camiseta do PT e como a pretensa medição de apartamentos de classe média para “verificar quantas famílias poderiam ocupá-los” já que o comunismo era iminente.

Não obstante o jogo sujo, Lula crescia e Collor caia nas pesquisas. Havia aparente empate técnico às vésperas da votação do segundo turno, quando ocorreu o debate na Globo. A edição feita para a matéria do Jornal Nacional realçou todas as falas positivas de Collor e todas as falas negativas de Lula.

Como conta o jornalista Ronald Carvalho, em artigo de Juca Kfouri:

“Eu mesmo tratei de refazer a edição, porque sabia que era uma missão delicada e não quis expor ninguém. Pensei assim: vou editar como se fosse um jogo de futebol. Se foi 5 a 1, e foi 5 a 1 para o Collor, mostrarei os cinco gols dele e o gol do Lula”.

Naquele dia, de acordo com o escritor Antonio Mello, o Jornal Nacional terminou com as seguintes falas de Cid Moreira:

“E quem venceu o debate? O Instituto Vox Populi fez esta pergunta a 490 telespectadores em 114 municípios. 22% dos entrevistados acharam que o debate foi ótimo; 39,5% o consideraram bom; o debate foi regular na opinião de 28% dos telespectadores; e 7,7% disseram que o encontro ficou entre ruim e péssimo.

Veja agora a avaliação do desempenho dos candidatos:

– Melhor desempenho: Collor: 44,5%,Lula: 32%

– Ideias mais claras: Collor: 45%, Lula: 34,1%

– O mais preparado para governar: Collor: 48%, Lula: 30%

– Melhores planos de governo: Collor: 45,9%, Lula: 33%

– Quem atacou mais o adversário?: Collor: 33%, Lula: 30,8%”

E de Alexandre Garcia (no estúdio):

“O debate dos candidatos teve um alto índice de audiência e o público superou o do debate anterior. Ao transmitir o encontro dos presidenciáveis, a televisão cumpriu mais uma vez o seu papel na democracia.”

Criminologia midiática

O professor Eugenio Raúl Zaffaroni, em A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar, nos conduz para além da criminologia acadêmica. Nos alerta para a a existência e efetividade da criminologia midiática. As duas criminologias conformam as opiniões da média das pessoas e potencializam ao extremo nossa surdez em ouvir a palavra dos mortos.

A criminologia não se reduz a, simplesmente, uma ciência tratada ao nível acadêmico. É preciso atentar para a construção da realidade feita pelos meios de comunicação de massa: a criminalidade midiática, criada pela palavra, “a despeito de estar carregada de preconceitos, falsidades e inexatidões”. A criminalidade midiática., que se opõem a criminalidade acadêmica, forma a atitude da média da pessoas, que se tornam posições politicas que, por sua vez, se transformam em leis.

Às duas criminalidades, acadêmica e midiática, deve-se confrontar a palavra dos mortos: o crime a partir da perspectiva das vítimas da violência mais grave.

“Não se trata apenas, porém, de confrontar, mas também de averiguar se os cadáveres são tais porque as palavras contribuíram para condicionar [ou para não evitar] as condutas que os converteram em cadáveres, posto que é assim que as palavras matam, é assim que a linguagem mortífera opera, ou seja, legitimando, mostrando ou ocultando, descobrindo ou encobrindo”, afirma Zaffaroni.

Se a palavra mata, se a linguagem mortífera, disseminada pelos meios de comunicação, chega ao limite extremo de legitimar assassinatos, milhares de assassinatos, milhões de assassinatos, do que será, a palavra produzida nos meios de comunicação social, capaz em outras violências de discriminação, de opressão, de submissão?

Notas

1 Um dia, um país. Jânio de Freitas (Folha de São Paulo – 24/ago/2014).

http://www1.folha.uol.com.br/colunas/janiodefreitas/2014/08/1505060-um-dia-um-pais.shtml

2 A imprensa brasileira e o golpe de 1964. Emir Sader (Carta Maior – 10/jan/2014).

http://www.cartamaior.com.br/?/Blog/Blog-do-Emir/A-imprensa-brasileira-e-o-golpe-de-1964/2/29985

3 Os 30 anos do comício que a Globo transformou em festa. Najla Passos (Carta Maior – 24/jan/2014).

http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Os-30-anos-do-comicio-que-a-Globo-transformou-em-festa-/4/30084

4 A verdade sobre o debate de 1989. Juca Kfouri (Observatório da Imprensa – 21/ago/2002).

http://observatoriodaimprensa.com.br/artigos/mt210820021.htm

5 O papel da televisão. Antonio de Mello (Blog do Mello – 05/out/2007) expõe a íntegra da edição do debate Lula-Collor em 1989, no Jornal Nacional.

http://blogdomello.blogspot.com.br/2007/10/o-papel-da-televiso-ntegra-da-edio-do.html

6 A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. Eugenio Raúl Zaffaroni, Saraiva, 2012

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